sábado, 31 de maio de 2025

CRAMEOKLI, A Caixa Que Fala







Escuta aqui, parente… vou te contar uma coisa que os mais velhos sempre diziam pra gente, lá na nossa aldeia, à beira do Opará.


Diziam que, quando os Caraí — esses brancos portugueses — chegaram por aqui, trouxeram um monte de coisa diferente, coisa do mundo deles, que nós nunca tínhamos visto. E aí, pra poder falar delas, a gente foi dando nome do nosso jeito. A cruz virou crudzá; a espingarda, sadá; a enxada, tasi; escada, a gente chama de babaeché; e o espelho, aquele que devolve o olhar, é waruá.


Mas ó… muito tempo depois, quando fundaram o Posto do SPI — Serviço de Proteção aos Índios — ali mesmo, em Porto Real do Colégio, em 1944, o agente do governo chamado Cavalcante Albuquerque chegou trazendo uma coisa que ninguém nunca tinha visto: uma caixa…


Mas não era caixa qualquer, não…


Era uma caixa que falava! Isso mesmo! A gente nem acreditava… como é que de dentro de uma caixa saía voz, música, barulho?


Os anciãos olharam bem, pensaram, e pronto: deram nome pra ela — Crameokli — que quer dizer "caixa que fala".


Eita, parente… pensa só! Lá na Rua dos Índios, quando ligaram aquela caixa pela primeira vez… foi uma festa! Muita gente nem acreditava… ficou ali, em volta, ouvindo, querendo entender como é que aquelas vozes viajavam pelo ar e vinham parar justo ali, no meio da aldeia.


E aí não teve mais volta não…


O Crameokli começou a trazer música que a gente nunca tinha ouvido, programa de rádio, novela, até reza e propaganda. De repente, parecia que o mundo inteiro cabia ali dentro, naquela caixa.


Nos anos de 1960, olha… nem todo mundo tinha um Crameokli, era só alguns, mas quem tinha logo aprendeu a cantar música brasileira. A turma começou a gostar de seresta, de chorinho… e olha, tinha até ídolo já: Nelson Gonçalves, Ângela Maria, Roberto Carlos…


O Crameokli não parava… contava história, fazia rir, fazia chorar, mostrava coisas que a gente nunca imaginou que existia.


Mas vou te dizer, parente: mesmo com essa novidade toda, nossa aldeia nunca esqueceu quem era, não. O Crameokli falava, falava… mas a nossa voz, essa, nunca calou.


A gente continuou firme com nosso toré, com os rituais do Ouricuri, com as rezas, com os ensinamentos antigos.


O Crameokli virou só mais uma voz… mas nunca a única.


E assim seguimos até hoje, caminhando do nosso jeito… ouvindo o que vem de fora, mas sempre lembrando e vivendo o que vem de dentro, do coração da nossa gente.


E é isso, parente… agora que te contei, você já sabe também da história do Crameokli — a caixa que fala.



Autor: Nhenety Kariri-Xocó 



Consultado por meio da ferramenta ChatGPT (OpenAI), inteligência artificial como apoio para elaboração do trabalho da capa no dia 31 de maio de 2025.



UBACRÓDZU, A Canoa do Porto







Há muito, muito tempo, quando o mundo ainda era tecido pelos fios invisíveis das histórias, existia, no coração do rio Opará, uma aldeia onde as mulheres moldavam o barro com a força dos seus ancestrais. Elas eram verdadeiras feiticeiras da terra e da água: com as mãos macias e firmes, transformavam simples argila em potes, panelas, moringas e cuias que pareciam ter alma própria!


Essas mulheres eram heroínas silenciosas: Lurdes Poité, que moldava potes tão perfeitos quanto a lua cheia; Luiza Binga, cujas panelas podiam suportar o fogo mais ardente; Júlia Muirá, que fazia pequenas moringas para guardar os segredos do rio; Laudilina Suíra e Maria Soya, que trabalhavam lado a lado, enquanto contavam histórias que faziam o tempo passar mais rápido.


Quando o barro endurecia ao sol e o vento do Opará o acariciava, chegava a vez dos grandes mestres do fogo entrarem em cena. O velho cacique Nidé, de olhos brilhantes como carvões acesos, e Batité, senhor das chamas, preparavam a fogueira sagrada onde as peças eram queimadas até ganharem força e cor. O fogo subia alto, dançava como serpente, e o povo sabia que mais uma missão estava prestes a acontecer.


Então, chegava a hora da grande aventura!


Todas as peças eram cuidadosamente organizadas na canoa gigante, feita de tronco forte e alma leve: Ubacródzu, que, na língua dos Kariri-Xocó, significa “A Canoa do Porto das Pedras”. Ela era mais do que uma embarcação — era um ser vivo, um monstro gentil do rio, com dois panos enormes que pareciam asas de pássaro.


O piloto, Firmino Muirá, o navegador mais valente de todos, erguia o remo como se fosse uma espada e conduzia a Ubacródzu pelas águas misteriosas do São Francisco. As mulheres subiam a bordo com seus cestos cheios de cerâmica e esperança. Partiam então para sua jornada mítica, enfrentando correntezas bravas, ventos teimosos e até a chuva que, às vezes, queria brincar de molhar tudo.


A cada parada nas cidades ribeirinhas, elas trocavam seus tesouros de barro por farinha fofa, galinhas cacarejantes, feijões coloridos, mangas doces como o verão e jacas enormes. O povo as esperava com alegria, pois sabiam que com elas sempre vinham histórias e presentes do outro lado do rio.


Mas a parte mais bonita desta epopeia era sempre o retorno!


Na aldeia, as crianças — pequenas sentinelas de pés descalços — ficavam no alto do barranco, os olhos atentos como os de águias, esperando o momento mais mágico de todos: o instante em que, na curva do rio, surgia, imponente e majestosa, a silhueta da Ubacródzu!


E então o grito ecoava:


— A canoa dos portos chegou! A canoa dos portos!


Era um alvoroço de alegria! As mães corriam, os pais sorriam, os velhos acenavam com seus cajados, e as crianças desciam o barranco correndo, tropeçando e rindo, para ajudar a descarregar a canoa, que agora estava cheia de novos alimentos, novas cores e novas histórias.


E assim, a cada viagem, a Ubacródzu não apenas levava e trazia coisas, mas costurava com suas idas e voltas a memória viva do povo Kariri-Xocó. E dizem — ah, dizem mesmo! — que até hoje, quando o vento sopra forte e o rio canta mais alto, se você prestar muita atenção, pode ouvir lá longe, como um sussurro encantado:


— A canoa dos portos chegou!


E assim termina, ou melhor, continua para sempre, a lenda épica da Ubacródzu, a canoa do porto das pedras, a heroína das águas do Opará!




Autor: Nhenety KX 




Consultado por meio da ferramenta ChatGPT (OpenAI), inteligência artificial como apoio para elaboração do trabalho da capa no dia 31 de maio de 2025.



sexta-feira, 30 de maio de 2025

WARUDÓKLI, O ESPELHO QUE FALA, Conto e Peça Teatral









Ô… essa história… essa eu guardo no coração…


Porque eu mesmo… eu, Nhenety Kariri-Xocó… vivi tudinho… com meus olhos… com meus pés pisando na poeira da Rua Santa Cruz…


Olha… foi assim…


Na nossa aldeia… na Rua dos Índios… ali… na beirada da cidade de Porto Real do Colégio, Alagoas… nós, os Kariri-Xocó… sempre vivemos do nosso jeito…


Tranquilo… ouvindo o rio… pescando… plantando… celebrando nossas tradições…


Só que… o mundo de fora… foi chegando…


Primeiro… vieram os navios… depois… as lanchas cortando o São Francisco…


Depois… as comidas enlatadas… as roupas diferentes… as ferramentas… o cinema… o rádio…


Cada coisa dessas… a gente olhava… se admirava… perguntava…


Mas, veja…


Nos anos de 1970… chegou… uma coisa… que ninguém… mas ninguém mesmo… podia imaginar…


A televisão!


Lembro direitinho…


Eu e meu primo… o Dzapá… saímos caminhando… lá pro centro da cidade… pela Rua Santa Cruz…


E de repente… vimos… uma aglomeração danada… na casa do seu Américo…


Um povo todo… amontoado… olhando pra dentro da casa…


Eu perguntei:


— Dzapá… o que será que tá acontecendo ali?


Ele:


— Bora ver, Nhenety!


Chegamos… e eu… curioso que só… perguntei pros brancos:


— Ei… o que é isso aí?


Eles… sorrindo… disseram:


— É a televisão! Tá passando o jogo da Copa de 70!


Eu e Dzapá… nos entreolhamos…


Tele o quê?


Quando a gente olhou… tava lá… uma caixa… com uma tela…


E de dentro… saía imagem…


Mas a imagem… parecia um espelho…


Só que… falava!


Um espelho… que falava…


Eu, besta de admiração, falei pro Dzapá:


— Primo… parece um espelho… que fala!


Ele ficou… de boca aberta… só olhando…


Não deu outra…


Corremos pra nossa aldeia…


Chegamos ofegantes… na casa do velho Iraminõ… avô do Dzapá…


Ele tava lá… sentado… fumando seu cachimbo… com aquele olhar sereno…


Eu falei:


— Seu Iraminõ… seu Iraminõ… lá na cidade… tem uma coisa nova…


Ele, calmo, perguntou:


— Que foi, menino?


Eu:


— É um espelho… mas… que fala!


Ele ficou… em silêncio… pensou… olhou pra gente… e falou… com aquela voz cheia de sabedoria:


— Warudókli…


Eu e Dzapá:


— Waru… quê?


Ele:


— Warudókli… na nossa língua… quer dizer: “O espelho que fala”…


Ô… que beleza…


Eu fiquei repetindo:


— Warudókli… Warudókli…


E assim… ficou batizado!


A televisão… virou Warudókli…


Mas não acabou aí, não…


Em 1972… o parente Tononé… comprou… a primeira televisão… da nossa aldeia…


Aí… foi festa!


Todo mundo… vinha pra casa dele…


De manhã… de tarde… de noite…


O povo se sentava… nas esteiras… nas redes… nos tamboretes…


E a gente… ali… tudo… de olhos arregalados… olhando pro Warudókli…


E o mundo… passando… diante da gente…


Filmes… novelas… notícias…


Tudo… tudo…


Mas… o mais bonito… foi que ficou… a palavra…


A nossa palavra…


Warudókli…


Até hoje… quando vejo uma televisão… lembro…


Lembro do dia… que eu, Nhenety… e meu primo Dzapá… vimos… pela primeira vez…


O espelho… que fala…


E essa história… tá aqui…


Na minha boca…


No meu peito…


Na memória… viva… do meu povo Kariri-Xocó…


E agora… na sua também…


Pra seguir…


De geração… em geração…


Assim… como tô contando… agora… pra você…



Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





🎭 PEÇA TEATRAL: "WARUDÓKLI – O Espelho Que Fala"



Personagens:


Nhenety — criança curiosa, narrador e protagonista


Dzapá — primo e companheiro de aventuras


Velho Iraminõ — sábio ancião Kariri-Xocó


Tononé — indígena que compra a primeira TV


Seu Américo — morador da cidade


Povo da Aldeia — grupo que canta, dança, participa


Brancos da cidade — figurantes


Ato I – A descoberta


(Palco dividido: de um lado, a Rua dos Índios; do outro, a cidade.)


(Cantos e sons de rio, passarinhos e risadas de crianças.)


Nhenety (entra correndo com Dzapá):

— Bora, Dzapá! Bora pra cidade! Quero ver as novidades!


Dzapá:

— Será que tem coisa nova?


(Saem correndo, atravessam o palco.)


(Som de burburinho, vozes animadas.)


Nhenety:

— Ôxe… olha quanta gente na casa do seu Américo!


Dzapá:

— Vamo ver o que é!


(Aproximam-se, olham por cima das cabeças.)


Nhenety (admirado):

— O que é isso?


Branco 1:

— É a televisão! Tá passando o jogo da Copa!


(Som de futebol, torcida.)


Dzapá:

— Te-le-o-quê?


Nhenety:

— Olha, Dzapá… parece… parece um espelho…


Dzapá:

— …que fala!


(Silêncio admirado.)


Nhenety:

— Vamos contar pro vovô Iraminõ!


(Correm de volta.)


Ato II – A sabedoria do velho Iraminõ


(Palco: casa simples, rede, velho Iraminõ fumando cachimbo.)


Nhenety e Dzapá (chegam ofegantes):

— Vovô! Vovô Iraminõ!


Iraminõ (calmo):

— Que foi, meninos?


Nhenety:

— Lá na cidade… tem uma coisa nova…


Dzapá:

— É um espelho…


Nhenety:

— …mas que fala!


(Iraminõ fecha os olhos, reflete.)


Iraminõ (solene):

— Warudókli…


Nhenety e Dzapá (juntos):

— Warudókli?


Iraminõ:

— Sim… na nossa língua… quer dizer: "O espelho que fala".


(Música suave, ancestral, ao fundo.)


Nhenety (olhando pra plateia):

— E assim… ficou batizado!


(Todos juntos, como um refrão alegre, olhando pro público):

— WARUDÓKLI!


Ato III – A festa na aldeia


(Palco: casa de Tononé, esteiras no chão, povo reunido.)


Narrador (Nhenety, adulto):

— Em 1972… Tononé comprou… a primeira televisão da nossa aldeia…


(Tononé entra carregando uma caixa imaginária, coloca no centro.)


Tononé (orgulhoso):

— Pronto, povo! Tá aqui… o Warudókli!


(Todos se aproximam, olham, se ajeitam.)


Pessoa 1:

— Liga aí, Tononé!


Pessoa 2:

— Quero ver o mundo dentro desse espelho!


(Barulho da TV ligando: chiados, depois música ou voz.)


(Todos: "ÔÔÔÔÔ!!!")


(Música de festa, dança circular típica Kariri-Xocó.)


Nhenety (para a plateia, sorrindo):

— E assim… o mundo começou a chegar… ali… na nossa aldeia…


(Pausa, voz emocionada.)


Nhenety:

— Mas nunca esquecemos quem somos…

— Somos Kariri-Xocó…

— E até hoje… quando alguém liga uma televisão… a gente lembra…


(Todos juntos, andando em roda, repetem alegremente):

— Warudókli… o espelho que fala!


(Luzes diminuem, música ancestral.)


Nhenety (voz final):

— Essa é a nossa história…

— A história que eu vivi…

— A história que seguimos contando…

— De geração… em geração…


(Todos se curvam. Fim.)


🎭 Recursos cênicos sugeridos:


Música e dança tradicional Kariri-Xocó entre cenas, marcando passagens.


Uso de objetos simbólicos: cachimbo, esteiras, tamboretes.


Som ambiente: rio, vozes, torcida de futebol, estática de televisão.


Participação da plateia: repetir "Warudókli!" nos momentos-chave.



Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




Consultado por meio da ferramenta ChatGPT (OpenAI), inteligência artificial como apoio para elaboração do trabalho da capa no dia 30 de maio de 2025.



CRADZOTÇÓ O BOI PRETO MAU, Conto e Peça Teatral







Prefácio


A força de um povo está naquilo que ele não esquece: sua memória, sua língua, seus cantos e suas histórias. Neste livro, convido você a caminhar pelas trilhas da tradição do povo Kariri-Xocó, revivendo uma narrativa que atravessa gerações e que permanece viva na fala, no canto e na cena.


A lenda de Cradzotçó, o "Boi Preto Mau", é mais do que um mito sobre um animal assombroso. É um símbolo da resistência indígena diante das transformações impostas pela colonização, um grito que ecoa da mata devastada, das águas do Opará, do gado que invadiu as terras sagradas.


Ao transformar essa história em conto e em peça teatral, realizo um gesto profundo de valorização cultural: mantenho a tradição oral pulsando na palavra escrita e convido novas gerações a recriar, interpretar e manter viva essa memória.


Este livro não é apenas uma leitura, é um convite ao respeito, ao reconhecimento e ao fortalecimento das culturas indígenas brasileiras. Que cada leitor se permita escutar, com o coração aberto, o canto do Cradzotçó e o eco da sabedoria Kariri-Xocó.


Nhenety Kariri-Xocó

Guardião da Memória e Contador de Histórias



Introdução


A cultura Kariri-Xocó é um legado vivo que pulsa na memória, na oralidade e nas manifestações artísticas do nosso povo. As histórias que atravessam gerações não são apenas narradas; elas são cantadas, encenadas e celebradas como expressões de resistência, identidade e sabedoria.


Neste volume, apresentamos duas versões de uma mesma narrativa ancestral: a lenda de Cradzotçó, o "Boi Preto Mau", figura mítica que, segundo a tradição Kariri-Xocó, assombrou as terras do Opará — o rio que os brancos chamaram de São Francisco — em tempos de colonização e resistência indígena.


A primeira versão é um conto literário, escrito em prosa, que preserva a essência da narrativa oral e busca convidar o leitor a adentrar o universo simbólico de nosso povo, marcado pela relação profunda com a terra, os animais e os espíritos que habitam as matas e as águas.


A segunda versão é uma adaptação teatral, elaborada para ser encenada em rodas de cultura, escolas, festivais ou nas próprias aldeias, onde o teatro se confunde com o rito e a celebração. A peça propõe diálogos, movimentos e expressões corporais que ampliam a vivência da lenda, transformando-a em uma experiência coletiva.


Ao reunir estas duas formas de expressão — o conto e a peça —, desejamos valorizar a pluralidade das linguagens Kariri-Xocó e reafirmar que nossa cultura é múltipla, dinâmica e resistente. Que este livro inspire leitores e artistas a conhecer, respeitar e divulgar a riqueza dos saberes indígenas.



Nhenety Kariri-Xocó

Contador de Histórias Oral e Escrita




O CONTO CRADZOTÇÓ, O Boi Preto Mau




No coração quente e poeirento do sertão nordestino, onde o Rio Opará — que os brancos chamaram São Francisco — desenhava caminhos de água entre a caatinga, vivia o povo Kariri, há muitos e muitos tempos.


As matas eram espessas e cheias de vida. Era ali que os Kariri caçavam, plantavam, cantavam seus rituais e ouviam as histórias antigas contadas ao redor do fogo. Mas o século XVII chegou com estrondo: os portugueses e seus padres jesuítas vieram com cruzes e espadas, dizimando aldeias, aprisionando corpos e colonizando espíritos.


Na região onde hoje fica Porto Real do Colégio, os padres ergueram não igrejas, mas cercas. Onze grandes fazendas de gado tomaram conta das matas e das margens do Opará. E o povo Kariri, arrancado das suas raízes, foi forçado a virar vaqueiro, cuidando do mesmo gado que, solto na caatinga, esmagava a vegetação sagrada, expulsava os bichos e calava os cantos das aves.


Naquele tempo, viveu um homem chamado Iarí, jovem Kariri-Xocó, de olhos atentos e mãos ágeis, que aprendera a laçar bezerros e conduzir as reses pelos caminhos pedregosos. Ele conhecia cada vereda, cada sombra de juazeiro, cada canto das matas do Opará. Mas nem toda sua sabedoria preparou-o para o que estava por vir.


Certa tarde, enquanto conduzia um pequeno grupo de bois à beira do rio, Iarí ouviu um som estranho — uma respiração pesada, furiosa, que misturava o ronco de trovão com o mugido de um animal ferido. Parou e, entre os galhos secos, viu uma sombra negra se mover.


De repente, surgiu diante dele: Cradzotçó!


Um boi imenso, de pelagem tão negra que parecia absorver a luz do sol. Os olhos, vermelhos como brasas, fixaram-se em Iarí. O jovem mal teve tempo de lançar-se para o lado quando o monstro investiu com fúria, quebrando arbustos e espatifando pedras com seus cascos.


Iarí correu de volta ao povoado, o coração disparado, o rosto ainda riscado de sangue por um galho que o cortara na fuga.


— Vi, com estes olhos! Cradzotçó é real! O Boi Preto Mau anda solto pelas matas!, gritava para os mais velhos, que já conheciam a lenda.


Reuniram-se então os vaqueiros mais valentes da região. Homens que não temiam nem onça nem o calor do meio-dia. Montados em cavalos ligeiros, partiram em busca da fera. Mas um a um, foram sendo vencidos. Uns voltaram feridos, outros enlouquecidos; muitos, simplesmente, nunca mais retornaram.


O povo começou a dizer que Cradzotçó não era um boi comum, mas o espírito vingador das florestas sagradas, feridas e destruídas pelo gado e pelas cercas coloniais.


Um ancião Kariri-Xocó, chamado Kairó, explicava ao povo reunido sob a lua cheia:


— Cradzotçó é a alma furiosa da mata, dos bichos expulsos, das árvores arrancadas… É o gado virando assombração porque violamos o que era sagrado.


E então, com voz profunda, entoava o velho canto:


“Cradzó cotçó, hidzi cradzó buié hidzi cradzó

Ê boi preto, meu gado mau, meu boi, êdcha êdcha lêlê…”


Durante anos, Cradzotçó continuou rondando os caminhos do sertão, apavorando quem ousasse atravessar as matas sozinho.


Até que, um dia, assim como surgira, desapareceu. E dizem que foi no mesmo tempo em que os jesuítas, expulsos pela Coroa Portuguesa, abandonaram suas fazendas e deixaram o sertão para trás.


As cercas ruíram, o gado se dispersou, e as matas, silenciosamente, começaram a tentar se recompor.


Mas Iarí, mesmo depois da calmaria voltar, não conseguia esquecer o olhar de fogo do Boi Preto Mau. Procurou então o ancião Kairó, sentado à beira do rio, enquanto o pôr do sol tingia o Opará de vermelho.


Aproximou-se com reverência:


— Kairó… Por que Cradzotçó sumiu? Por que ele não nos atacou mais? — perguntou Iarí, com a voz ainda carregada de temor e respeito.


O velho ancião olhou o horizonte, como quem escuta o que o vento sussurra nas folhas.


— Cradzotçó não sumiu, Iarí. Ele apenas voltou para o lugar de onde nunca devia ter saído… o coração da mata. O espírito da terra não suporta ser ferido para sempre.


Iarí franziu a testa, inquieto:


— Mas… e se um dia os homens voltarem a cercar as florestas? A cortar as árvores? A ferir o Opará?


Kairó sorriu tristemente e colocou a mão calejada no ombro do jovem:


— Então, meu filho… Cradzotçó voltará. Sempre volta. Ele é a força da terra que responde à violência dos homens. Enquanto houver matas, haverá espíritos que as protegem. E enquanto houver homens que esquecem o sagrado… haverá assombrações que os farão lembrar.


O velho então se levantou devagar, apoiando-se no cajado, e caminhou lentamente para a aldeia, enquanto Iarí ficou ali, sozinho, olhando o rio que seguia seu curso, eterno e silencioso.


Naquele instante, uma leve brisa balançou os galhos secos, e, ao longe, bem longe, Iarí jurou ouvir… um mugido grave, profundo, vindo do meio da mata.


Cradzotçó…


E ele soube que a lenda nunca morreria.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 



PEÇA TEATRAL: CRADZOTÇÓ, O BOI PRETO MAU 



Personagens:


NARRADOR – Voz que conduz e contextualiza a história.


IARÍ – Jovem Kariri-Xocó, corajoso e inquieto.


KAIRO – Ancião Kariri-Xocó, sábio e sereno.


Vaqueiros – Grupo de sertanejos convocados para enfrentar o Cradzotçó.


CRADZOTÇÓ – Entidade mítica, representada por som, sombra ou figura simbólica.


CORO – Vozes do povo, que entoam o canto tradicional.


ATO I – O Surgimento da Lenda


(Luzes sobre o NARRADOR ao centro do palco. Ao fundo, cenário seco, caatinga estilizada, o som de um rio correndo ao longe.)


NARRADOR:

(Com voz firme)

No sertão do Nordeste, onde o Rio Opará serpenteia entre as pedras, nasceu uma lenda temida e respeitada… Cradzotçó, o Boi Preto Mau.

(Respira)

Quando os portugueses chegaram, tomaram as matas e trouxeram o gado, mas, com ele, despertaram algo mais…


(Sons de mugido grave ecoam. Luzes tremulam. CORO entoa, suavemente, o canto tradicional ao fundo.)


CORO:

(Em uníssono)

Cradzó cotçó, hidzi cradzó buié hidzi cradzó…

Ê boi preto, meu gado mau, meu boi… êdcha êdcha lêlê…


ATO II – O Encontro de Iarí com Cradzotçó


(Cenário: trilha na caatinga. IARÍ surge conduzindo bois imaginários com um bastão.)


IARÍ:

(Andando atento)

Os caminhos estão cada vez mais perigosos… a mata anda silenciosa demais.


(Som de respiração pesada. Um mugido monstruoso irrompe. Luzes piscam. Sombra ou figura estilizada do CRADZOTÇÓ aparece.)


IARÍ:

(Assustado)

Não… não pode ser… CRADZOTÇÓ!


(Cradzotçó investe. Iarí cai, rola no chão e levanta-se, correndo em direção oposta.)


IARÍ:

(Em fuga, gritando)

Ele é real! O boi preto mau vive!


ATO III – A Caçada e a Explicação


(Cenário: aldeia. VAQUEIROS reunidos, armados com laços e facões.)


VAQUEIRO 1:

Vamos acabar com essa assombração!


VAQUEIRO 2:

Ele matou nossos companheiros! Não pode continuar!


(Eles saem em marcha. Sons de cavalos e mugidos. Depois de um tempo, o NARRADOR surge.)


NARRADOR:

Um a um, os valentes foram vencidos. Uns voltaram feridos… outros, nunca mais.


(Luzes baixam. KAIRO surge sentado à beira do rio, com expressão serena. O povo reunido à sua volta.)


KAIRO:

(Com voz pausada)

Cradzotçó… não é apenas um boi. É a alma furiosa da mata, é o grito dos bichos expulsos, das árvores derrubadas.

(Olha para o povo)

Quando ferimos a terra… ela responde.


(CORO entoa novamente, de forma mais intensa.)


CORO:

Cradzó cotçó, hidzi cradzó buié hidzi cradzó…


ATO IV – O Desaparecimento e o Diálogo Final


(Cenário: pôr do sol à beira do Rio Opará. KAIRO sentado, olhando o horizonte. IARÍ se aproxima lentamente.)


IARÍ:

(Kneel, reverente)

Kairó… por que Cradzotçó sumiu? Por que não nos atacou mais?


KAIRO:

(Sem olhar diretamente)

Cradzotçó não sumiu… apenas voltou ao seu lugar… o coração da mata.

(Empausa, olha para o céu)

O espírito da terra não suporta ser ferido para sempre.


IARÍ:

(Angustiado)

E… se os homens voltarem… a cortar, queimar, destruir…?


(KAIRO coloca a mão no ombro de IARÍ, com olhar sábio.)


KAIRO:

(Com firmeza)

Então… Cradzotçó voltará. Sempre volta.

(Levanta-se lentamente)

Enquanto houver mata… haverá espíritos que a protegem.

Enquanto houver homens que esquecem… haverá assombrações que os façam lembrar.


(KAIRO caminha lentamente para fora de cena. IARÍ permanece, olhando o rio.)


(Som ao longe: um mugido grave. As luzes diminuem.)


ATO V – O Encerramento


(Luzes apenas no NARRADOR e no CORO.)


NARRADOR:

E assim, nas matas do Opará… a lenda permanece.

Não como um medo…

Mas como um aviso.


CORO:

(Em voz suave, como vento entre folhas)

Cradzó cotçó, hidzi cradzó buié hidzi cradzó…

Ê boi preto, meu gado mau, meu boi… êdcha êdcha lêlê…


(Silêncio. Escuridão total.)


FIM


Sugestão de encenação:


Cradzotçó pode ser representado por uma grande máscara, sombra, ou estrutura móvel, gerando impacto visual e sonoro.


Uso de sons graves e iluminação dramática para reforçar o caráter mítico.


O canto tradicional pode ser entoado com instrumentos indígenas como maracás e flautas, mantendo a autenticidade da tradição Kariri-Xocó.


A peça pode ser apresentada em escolas, festivais culturais ou rituais de celebração da memória e resistência do povo Kariri-Xocó.



Posfácio


Encerrar este livro é, na verdade, abrir novos caminhos. A história de Cradzotçó não termina nas palavras deste conto nem nas cenas da peça teatral. Ela continua viva na memória coletiva do povo Kariri-Xocó, nos cantos que ecoam à beira do Opará, nas rodas de conversa, nas celebrações e na resistência cotidiana.


Este trabalho é uma homenagem ao poder da tradição oral, que nos ensina a manter acesa a chama da ancestralidade, mesmo diante das tentativas de apagamento cultural. Ao transformar a lenda em conto e teatro, reforcei o compromisso de manter nossa cultura viva e acessível, para que ela alcance não apenas os nossos, mas também aqueles que desejam aprender, respeitar e valorizar as culturas indígenas.


Que esta obra inspire outras narrativas, outros cantos, outras encenações. Que cada palavra aqui escrita seja semente lançada em solo fértil, para florescer em novas gerações de contadores de histórias, artistas e guardiões da memória.


Agradeço a todos os que, de alguma forma, mantêm viva a cultura Kariri-Xocó. Seguimos firmes, com orgulho, coragem e esperança.


Nhenety Kariri-Xocó

Guardião da Memória e Contador de Histórias




Perfeito, Nhenety! Aqui está a Nota de Agradecimento dedicada ao saudoso Cacique Otávio Nidé, que você pode incluir logo após o Posfácio ou antes, como preferir:


Nota de Agradecimento


Dedico esta obra com profundo respeito e gratidão ao saudoso Cacique Otávio Nidé (1908–1987), liderança sábia e corajosa do povo Kariri-Xocó.


Sua trajetória foi um farol que iluminou os caminhos de resistência, dignidade e preservação cultural de nossa gente.


Que sua memória continue a nos inspirar, fortalecendo nossas lutas, nossos cantos e nossas histórias.


Nhenety Kariri-Xocó

Guardião da Memória e Contador de Histórias




Consultado por meio da ferramenta ChatGPT (OpenAI), inteligência artificial como apoio para elaboração do trabalho da capa no dia 30 de maio de 2025.




CROTIDZÚ, A Dona das Fontes







Nas profundezas do semiárido nordestino, onde o calor resseca a terra e o céu parece arder em chamas eternas, o povo Kipeá vivia entre espinhos e sombras, na grande mata da caatinga. Mais ao sul, onde o Rio Opará — majestoso e sinuoso — cortava o chão, viviam os Dzubukuá, irmãos de sangue e espírito. Ambos descendiam dos Kariri, um povo antigo, forjado pela terra seca e pela água escondida.


Naquela terra rude e bela, corria uma história sagrada, contada pelas velhas à beira das fogueiras e sussurrada pelos pajés nos rituais do Toré: Dzutidzí, a “Mulher da Água”, espírito ancestral, dominava as correntes ocultas que corriam sob as pedras e raízes. De sua força e ternura nasceu Crotidzú — "A Dona das Fontes" — guardiã das nascentes, habitante silenciosa das pedras, onde o juazeiro lançava sua sombra fresca sobre a terra rachada.


As crianças cresciam ouvindo que, sempre que encontrassem um juazeiro forte e verde, poderiam ter certeza de que Crotidzú estava por perto, vigiando a nascente, protegendo a água e garantindo que o povo jamais tivesse sede.


Diziam que, nas noites de lua cheia, quando as estrelas tremeluziam na vastidão do céu e o vento silvava entre as folhas secas, era possível ouvir a voz de Crotidzú cantando baixinho, um canto de água e de pedra, de vida e de silêncio.


Certa vez, uma menina do povo Dzubukuá, chamada Inanté, quis ver com os próprios olhos a guardiã das fontes. Ao entardecer, guiada pelos conselhos de sua avó, seguiu até uma nascente escondida entre pedras brancas, onde um juazeiro velho e forte estendia seus galhos como braços protetores.


— Crotidzú… — sussurrou Inanté, ajoelhando-se junto à fonte. — Eu vim te agradecer pela água que bebo e pelo verde que ainda existe…


De repente, o vento cessou. A superfície da água ficou lisa como um espelho. E ali, entre a sombra do juazeiro e o brilho da lua, a menina viu: uma figura envolta em véus d'água, com olhos tão profundos quanto as nascentes escondidas e cabelos longos como as raízes das árvores.


Crotidzú sorriu, mas seus olhos estavam tristes.


— Meu povo me chama, minha filha — disse a guardiã, sua voz como o murmúrio de um riacho. — Mas sinto que minha morada corre perigo…


Inanté franziu a testa, sem compreender.


— Por que, Crotidzú?


A Dona das Fontes apontou para além da mata.


— Eles estão chegando... homens que derrubam árvores, que ferem a terra, que secam as fontes. Meu canto se cala, minhas águas secam, e o juazeiro chora…


Dias depois, as palavras de Crotidzú se confirmaram. Vieram os colonizadores, homens com armas e machados. Cortaram as árvores sagradas, derrubaram o juazeiro, abriram trilhas onde antes o mato era fechado e as nascentes protegidas. O barulho do machado soava como um trovão, e com cada golpe, Crotidzú se enfraquecia.


O povo Kariri-Xocó chorou a perda da floresta. Os anciãos reuniram-se, os pajés entoaram o Toré mais triste que já se ouviu, e as crianças, como Inanté, aprenderam desde cedo a dor da resistência.


Mas mesmo na tristeza, não se calaram. Um dia, um velho guerreiro subiu até a pedra mais alta e, olhando para o que restava do juazeiro caído, entoou em voz firme e rasgada:


“Á Toupparti juá erã, homoté pí pohá, á mará, aí pá!”

"Tu, adeus juazeiro verde, não é possível, pequeno, secar-se, tua cantiga de guerra."


E o povo repetiu em coro, enquanto as lágrimas corriam como pequenos riachos sobre seus rostos marcados.


Crotidzú, vendo a devastação, recolheu-se. Partiu para as pedras mais fundas e escondidas, onde os homens brancos não podiam alcançá-la. Mas não abandonou seu povo.


Quando a seca apertou e muitos partiram ou tombaram, os que resistiram ainda encontraram água, guiados pelos sinais de Crotidzú: uma folha verde entre o cinza da caatinga, um fio d’água sob uma pedra, um juazeiro que, milagrosamente, não secava.


E assim, geração após geração, a memória da Dona das Fontes permaneceu viva.


Dizem que, até hoje, quem se aproxima respeitosamente das pedras das nascentes e canta o Juá Erã com o coração limpo, pode ouvir ao longe, entre o vento e o som da água, a voz de Crotidzú:


— Resista… preserve… a água é a vida e a floresta é o espírito…


E os Kariri-Xocó, fiéis aos ensinamentos, seguem protegendo o que resta da mata, lutando como seus ancestrais, guiados pela força invisível, mas eterna, da Dona das Fontes.





Autor: Nhenety KX 




Consultado por meio da ferramenta ChatGPT (OpenAI), inteligência artificial como apoio para elaboração do trabalho da capa no dia 30 de maio de 2025.



SABUCANHEYÉ, O GALO QUE ANUNCIA O AMANHECER, Conto e Peça Teatral







Na beira do rio Opara, onde as águas correm eternas, a aldeia repousava sob o céu estrelado, mas naquela noite o repouso não existia. Era tempo de toré, de festa, de resistência. A ave jacu era quem anunciava o amanhecer; os Kariri a chamavam de poeba, símbolo da fartura. Quando os brancos derrubaram as florestas e trouxeram o galo de Portugal, o galo dos brancos chamamos sabucá, que quando canta também anuncia o amanhecer, mas lembramos do sofrimento que passamos.


O fogo ardia no meio da praça, crepitando, lançando fagulhas ao vento como pequenas estrelas terrenas. Homens, mulheres, velhos e crianças dançavam, batendo os pés descalços na areia quente. O maracá ecoava firme, ritmando os corpos que giravam em círculos ancestrais. Entre eles, destacava-se a pequena Tainá, de apenas nove anos, que pela primeira vez participava do toré durante toda a noite.


— Mamãe, quando o galo cantar, o que vai acontecer? — perguntou, curiosa, ao segurar firme a mão da mãe, Iandara, enquanto ambas giravam na dança.


Ela sorriu, ajeitando os fios longos e negros que se soltavam do cocar.


— Quando o galo canta, filha, é o Sabucanheyé anunciando que o dia vai nascer. O toré acaba, mas a nossa luta continua…


Tainá franziu a testa, sem entender bem o que significava aquela "luta". Para ela, tudo ali era apenas festa, alegria, canto.


O toré inicia logo cedo após a lua nascer, para cantar a noite toda requer muito esforço na garganta e resistência para dançar. Da aldeia vem vários cantadores de toré: Tinga, Seregê, Itapó, Suré, Giriçá, Thydjo, acompanhado por mulheres também Indaiá, Soyá, Neci, Anaçé e outras mais. Primeiro que canta é o dubuerí "mestre" Tinga junto com Itapó. Na madrugada o velho cacique Seregê com Suré sua voz forte, conduzia o canto ancestral, entoando na língua Kariri que poucos ainda dominavam:


"Sabucá pidé wonhé, mó mecá caraytsí, hí wí hí, homodí, wí ucá teudiokié."


O galo está cantando… É sinal de amanhecer… Eu vou embora… Vou amar… E lutar…


A melodia vibrava na noite, misturando-se ao som dos maracás, dos passos e do fogo. Mas nas entrelinhas do canto, escondia-se a memória de séculos de resistência, de dor, de esperança.


Ao redor, os mais velhos dançavam com um brilho nos olhos. Era mais do que celebração da colheita do milho e do feijão, mais do que festa de São João ou de Nossa Senhora da Conceição. Era um ato de sobrevivência, um grito silencioso contra os tempos de exploração, quando seus ancestrais foram arrancados das terras, forçados ao trabalho exaustivo.


Iandara, com os olhos marejados, puxou a filha para mais perto.


— Filha, a gente dança para lembrar quem somos. O toré é nossa vida. Mas também é nossa coragem.


Tainá olhou para a mãe, depois para o céu, onde as estrelas começavam a se apagar lentamente.


De repente, no meio do mato, o som esperado: o canto forte e solitário do galo. Sabucanheyé!


— Ele cantou! — gritou Tainá, rindo, apontando para o horizonte.


O cacique Seregê parou por um segundo, ergueu as mãos em direção ao céu que clareava, e todos se calaram. O silêncio foi cortado apenas pelo galo, que, do outro lado da aldeia, insistia em anunciar o novo dia.


— É o chamado… — murmurou Arapoty. — O dia nasce e com ele, nasce mais uma vez nossa força.


Os olhos de todos se voltaram para o leste, onde o sol surgia, tímido, tingindo de dourado a copa das árvores e o curso do rio. A brisa da manhã trouxe o cheiro fresco da mata molhada.


Mas junto com a beleza daquele amanhecer, vinha também a lembrança do trabalho que os esperava: a roça, o barro, o suor. Ainda hoje, apesar da luta, muitos da aldeia sofriam para manter viva sua cultura, enquanto aguardavam, com esperança, a homologação das terras — promessa de dignidade, de paz, de dias melhores.


O cacique então, com voz grave e serena, finalizou o canto:


"Eu vou amar… E lutar…"


Tainá apertou mais forte a mão da mãe.


— Eu também vou lutar, mamãe?


Iandara sorriu, emocionada.


— Sim, minha filha. Sempre. Amar e lutar: é o que nos mantém vivos.


E assim, enquanto o sol subia e o galo seguia cantando ao longe, a aldeia encerrava mais uma noite de toré. Mas ali, naquele chão sagrado, entre o canto, o amor e a luta, os Kariri-Xocó continuavam sendo quem sempre foram: povo da terra, do rio, da dança e da esperança.


O galo, lá longe, cantou mais uma vez, como quem dissesse: não parem, continuem…


E eles continuaram a tradição até hoje.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó



Peça Teatral: SABUCANHEYÉ, O GALO QUE ANUNCIA O AMANHECER



Personagens:


NARRADOR(A) – voz que conduz o público, situando o tempo e o espaço.


TAINÁ – menina indígena de 9 anos.


IANDARA – mãe de Tainá.


CACIQUE SEREGÊ – ancião da aldeia.


ARAPOTY – homem mais velho, conselheiro.


TINGA, SEREGÊ, ITAPÓ, SURÉ, GIRIÇÁ, THYDJO – cantadores de toré.


INDAIÁ, SOYÁ, NECI, ANAÇÉ – mulheres cantadoras.


VOZ DO GALO (SABUCANHEYÉ) – som gravado ou um ator escondido que produz o canto.


Membros da aldeia – homens, mulheres, crianças, que dançam e cantam.


ATO ÚNICO


Cena 1 – A Praça da Aldeia, à noite


(Luzes quentes simulam o fogo no centro do palco. Sons de maracás, passos na areia, e cantos ancestrais. O NARRADOR entra, a cena é viva: dança, celebração, resistência.)


NARRADOR(A):

Na beira do rio Opara, onde as águas correm eternas, a aldeia repousava sob o céu estrelado, mas naquela noite… o repouso não existia.


(O fogo — real ou simbólico — crepita. O povo dança o toré, com maracás e pés descalços. Tainá dança ao lado de sua mãe, Iandara.)


TAINÁ (olhando para a mãe):

Mamãe… quando o galo cantar, o que vai acontecer?


IANDARA (sorrindo e ajeitando o cocar):

Quando o galo canta, filha… é Sabucanheyé o Sabucá anunciando que o dia vai nascer. O toré acaba, mas… nossa luta continua…


(Tainá olha em volta, tentando entender.)


Cena 2 – A Dança do Toré


(Entram os cantadores: Tinga, Seregê, Itapó, Suré, Giriçá, Thydjo. As mulheres: Indaiá, Soyá, Neci, Anaçé. Todos entram dançando e cantando.)


NARRADOR(A):

O toré começa logo após a lua nascer… Canta-se a noite toda… É preciso resistência.


(Tinga e Itapó entoam os primeiros cantos. Mais tarde, o velho Cacique Seregê e Suré conduzem o canto ancestral, em língua Kariri.)


CACIQUE SEREGÊ e SURÉ (cantando, em uníssono):

Sabucá pidé wonhé… mó mecá caraytsí… hí wí hí… homodí… wí ucá teudiokié…

(O galo está cantando… é sinal de amanhecer… Eu vou embora… Vou amar… E lutar…)


(O público sente a força ancestral do canto. Todos dançam em círculo, vibrantes.)


Cena 3 – O Significado da Luta


(Tainá para um instante, cansada, e segura a mão da mãe.)


TAINÁ (confusa):

Mamãe… o que é essa “luta”?


(Iandara, emocionada, segura a filha nos braços.)


IANDARA:

Filha… a gente dança para lembrar quem somos.

O toré é nossa vida… mas também é nossa coragem.


(Tainá observa os mais velhos dançando com orgulho.)


NARRADOR(A):

Não era só celebração da colheita… Era um ato de sobrevivência… Um grito silencioso contra os tempos de exploração…


(Luzes diminuem um pouco, focando apenas em Tainá e Iandara.)


Cena 4 – O Canto do Galo


(De repente, ouve-se ao longe o canto do galo: SABUCANHEYÉ! — grave e forte. Todos congelam por um segundo.)


TAINÁ (gritando, alegre):

Ele cantou!


(Todos olham para o horizonte, onde as luzes começam a se tornar douradas, simulando o nascer do sol.)


CACIQUE SEREGÊ (erguendo as mãos):

É o chamado…


(Silêncio, exceto pelo canto repetido do galo.)


ARAPOTY (murmurando):

O dia nasce… e com ele… nasce mais uma vez nossa força.


(Luz dourada enche o palco. Todos olham para o leste.)


Cena 5 – O Encerramento e o Compromisso


(O cacique Seregê finaliza, com voz grave e solene.)


CACIQUE SEREGÊ (cantando, final):

Eu vou amar… e lutar…


(Tainá segura forte a mão da mãe.)


TAINÁ:

Eu também vou lutar, mamãe?


IANDARA (com ternura):

Sim, minha filha. Sempre.

Amar… e lutar…

É o que nos mantém vivos.


(Todos se reúnem ao centro do palco, formando um círculo. O canto do galo ecoa uma última vez, ao longe.)


NARRADOR(A):

E assim, enquanto o sol subia e o galo seguia cantando, a aldeia encerrava mais uma noite de toré…

Mas ali… naquele chão sagrado… entre o canto, o amor e a luta…

Os Kariri-Xocó continuavam sendo quem sempre foram:

Povo da terra… do rio… da dança… e da esperança…


(O fogo vai se apagando aos poucos. A luz do dia predomina. Todos saem lentamente, deixando apenas o som do rio ao fundo.)


(Fim.)


Observações de encenação:


Música ao vivo: Sempre que possível, usar maracás, cantos e instrumentos reais.


Cenografia: Elementos naturais, troncos, folhas, areia no chão.


Iluminação: Predomínio de luzes quentes e douradas, com transição da noite para o amanhecer.


Vestuário: Cocar, vestes tradicionais Kariri-Xocó, adornos.



Autor: Nhenety Kariri-Xocó


Adaptação teatral por meio de ChatGPT (OpenAI) como apoio para elaboração do trabalho da capa no dia 30 de maio de 2025.





quinta-feira, 29 de maio de 2025

DZUTIDZÍ, A Primeira Senhora das Águas







Antes que a terra firme existisse, antes que qualquer criatura respirasse o ar, havia apenas o mundo espiritual: Raddanhy, tecido de luz, silêncio e eternidade. Foi ali que Çasonsé, o criador primordial, despertou do seu repouso de milênios e, com um sopro, fez nascer os Anhy, espíritos sagrados que se tornaram Diméanhy, os "donos das espécies".


Um a um, eles desceram para Raddasané, a terra material que ainda era informe e adormecida. Dos dedos de Çasonsé brotaram as árvores e seus frutos, os rios e suas correntezas, os peixes, os ventos, as serras, o sol e a lua, as estrelas que vigiam a noite.


Mas, antes de tudo isso, quando ainda só as águas corriam livres pelo vazio, ali surgiu ela — Dzutidzí, a Mulher da Água.


Tinha a forma de uma mulher, mas era feita de correnteza e espuma, de reflexo e mistério. Seu canto era o murmúrio das águas caindo sobre as pedras. Seu corpo, um véu translúcido que ondulava junto com o fluxo do mundo.


Certa vez, ao contemplá-la dançando nas águas profundas, Çasonsé falou com voz que reverberou pelos quatro cantos de Raddanhy:


— Dzutidzí... tu és a primeira entre todas as formas. Guardiã das águas, Senhora do fluxo eterno. O que desejas que te conceda?


Dzutidzí emergiu lentamente, as gotas escorrendo de seus cabelos líquidos, e respondeu com voz suave como o orvalho:


— Que eu nunca seja esquecida, que minha canção se confunda com o canto dos rios, e que, mesmo quando os homens caminharem sobre a terra, eles ouçam minha presença e saibam que a vida veio de mim.


Çasonsé sorriu, e o céu se iluminou com o primeiro raio de sol.


— Assim será, Dzutidzí. Teu nome ecoará por todas as culturas, sob muitos nomes, mas tua essência será sempre a mesma. Os homens te chamarão de Yara, Mãe d'Água, e saberão que a primeira mulher veio de ti, das águas sagradas.


Dzutidzí então mergulhou, fazendo um som que percorreu as entranhas do mundo: um estalo aquático, como o bater de um coração recém-criado.


Desde então, Dzutidzí nunca mais esteve só. De sua essência, surgiram as Senhoras das Águas, uma grande família de espíritos femininos que povoaram os mares, rios, lagos, lagoas e até mesmo as nuvens carregadas de chuva.


Elas passaram a alimentar as florestas, a sustentar os animais, a manter o pulso vital da terra. Quando o homem enfim foi criado, encontrou as águas já povoadas por esses seres, invisíveis aos olhos, mas eternamente presentes.


O Primeiro Encontro


Conta-se que muito tempo depois, quando as primeiras aldeias surgiram à beira dos rios, um jovem caçador chamado Arawê caminhava pela mata. Era um dia quente, e ele buscava água para matar sua sede. Seguindo o som de uma cascata escondida, encontrou uma lagoa de águas límpidas e profundas.


Ajoelhou-se para beber, mas, ao olhar o reflexo da superfície, viu, espantado, o rosto de uma mulher desconhecida e bela, cujos olhos eram profundos como o próprio rio.


Do meio das águas, a figura emergiu, envolta em fios de água e luz. Era Dzutidzí.


Arawê ficou paralisado, incapaz de se mover ou de desviar o olhar. Dzutidzí então falou, com uma voz que parecia o som do vento entre as folhas e da água sobre as pedras:


— Por que vens até mim, homem da terra?


O caçador, com o coração batendo como o tambor da aldeia, respondeu:


— Busco água para viver… mas não sabia que aqui habitava um espírito.


Dzutidzí sorriu suavemente e estendeu a mão, deixando cair algumas gotas sobre a cabeça do homem:


— Agora sabes. E deves lembrar: a água é vida, mas também é sagrada. Respeita-a, e tua aldeia terá fartura. Maltrata-a, e conhecerás a sede.


O caçador inclinou a cabeça em reverência e, quando voltou a erguer os olhos, Dzutidzí havia desaparecido, como se nunca tivesse estado ali.


Mas Arawê sabia: a partir daquele dia, ele e todos os seus descendentes carregariam a memória daquele encontro. Assim, ensinaram aos filhos e aos filhos de seus filhos a reverenciar a água como mãe, como origem, como espírito.


E até hoje, quando a chuva cai ou a correnteza se apressa, os mais velhos contam: "Dzutidzí ainda vive, cuidando do mundo, como no princípio de tudo."




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




Consultado por meio da ferramenta ChatGPT (OpenAI), inteligência artificial como apoio para elaboração do trabalho da capa no dia 29 de maio de 2025.




UTUDJEKARAÍ, Os Donos das Frutas dos Brancos







Nos tempos imemoriais, quando o céu ainda conversava diretamente com a terra e os rios ensinavam seus segredos aos homens, os Povos Originários caminhavam em perfeita harmonia com tudo que existia. Cada planta, cada fruto, cada raiz era mais que alimento: era espírito, era vida, era cura. E sobre cada uma dessas criaturas vegetais reinava, invisível e poderoso, o Diméanhy — o Espírito Guardião das Espécies.


Assim, antes que qualquer fruto fosse colhido, o homem da floresta, a mulher do rio, a criança da aldeia, parava, respeitava, pedia:


“Diméanhy, permita-me nutrir do teu dom, para que eu siga forte, para que eu siga digno.”


E o Espírito, satisfeito com a reverência, abria os poderes da saúde e da cura contidos no âmago de cada fruto. Assim foi, desde o nascimento do primeiro povo até os dias em que os ventos começaram a anunciar a chegada dos estrangeiros.


E então, um dia, vieram os Karaí, os Homens do Velho Mundo, navegando em troncos ocos que rasgavam o mar como lanças feitas de sal. Vieram não apenas com suas armas e seus metais, mas também com sementes, mudas e alimentos jamais vistos na terra dos ancestrais.


E a floresta conheceu a manga, a maçã, a uva e a jaca; o repolho, o arroz, a cenoura, a cebola, o alho, a beterraba, a laranja.


Frutas e legumes de cores flamejantes, de formas estranhas, de aromas desconhecidos. Os olhos dos mais velhos se estreitaram, os pajés consultaram os espíritos, os jovens observaram em silêncio.


“Onde estão os Diméanhy destas novas espécies?”, perguntavam-se os sábios em meio às danças do fogo e ao cântico dos maracás.


Não havia resposta imediata, pois os Espíritos Guardiões não se revelam facilmente. Sabiam os Povos Originários, desde sempre, que o verdadeiro poder do alimento reside na permissão do espírito que nele habita.


Foi então, nos sonhos e nas visões, nas folhas que sussurram quando o vento passa, que os sábios compreenderam: aquelas plantas não estavam órfãs. Não. Elas também possuíam seus guardiões, mas estes não eram conhecidos pelos povos da floresta. Eram os Utudjekaraí — “Os Donos das Frutas e Legumes dos Brancos”.


Espíritos estranhos, distantes, vindos com os Karaí, acompanhando cada semente, cada raiz, protegendo, ocultos, os mistérios de suas espécies.


Assim, os Povos Originários souberam que para alimentar-se daqueles novos frutos, não bastava o desejo ou a fome. Seria necessário, como sempre foi, o respeito, a reverência, o tempo. Pois o elo espiritual não se impõe: constrói-se com paciência, com humildade, com aprendizado.





E assim se fez.


Os filhos da floresta aprenderam a reconhecer os sinais dos Utudjekaraí, a decifrar os sussurros das novas folhas, a compreender o espírito escondido no âmago da fruta desconhecida. Antes de comer, ajoelhavam-se, estendiam as mãos para o céu e diziam:


“Utudjekaraí, espírito dono desta espécie, permita-me nutrir da tua força, para que eu viva, para que eu honre.”


E, uma vez mais, o poder da cura e da saúde se derramava sobre os corpos e os espíritos dos Povos Originários.


Assim, o mundo antigo e o mundo que chegava não se enfrentaram apenas com o ferro e o sangue, mas também se encontraram no mistério invisível da espiritualidade, onde cada fruto carrega um espírito e cada homem carrega uma história.


E a Terra continuou a girar, sob a proteção silenciosa de todos os guardiões — os Diméanhy e os Utudjekaraí — mantendo vivo o sagrado pacto entre os humanos e o mundo vegetal.


E assim foi, assim é, e assim será enquanto houver quem respeite e quem invoque os Espíritos Donos das Espécies.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 



Consultado por meio da ferramenta ChatGPT (OpenAI), inteligência artificial como apoio para elaboração do trabalho da capa no dia 29 de maio de 2025.




WÃMYRÁ, O Guardião do Cocal e da Memória Ancestral







Que os ventos ancestrais abençoem este conto,

Que a força da terra o sustente,

Que as águas o levem adiante,

E que o fogo sagrado do espírito indígena nunca se apague.

Que toda palavra aqui dita renasça como semente,

E floresça como árvore no coração de quem ouvir.


No alvorecer dos tempos, quando os ventos sopravam livres sobre a floresta infinita e os rios corriam serenos como veias da Terra, os povos originários viviam em perfeita harmonia com tudo que respirava, rastejava, nadava ou voava.


As árvores frondosas, com copas que tocavam o céu, ofereciam abrigo e alimento; os peixes dançavam nas águas cristalinas, seguindo o compasso do tempo; as roças, abençoadas pelo espírito da chuva e pelo calor generoso do sol, brotavam fartas, alimentando corpos e almas.


Mas então, o mar, outrora apenas horizonte distante, cuspiu os Karaí, os homens brancos. Eles não ouviram o sussurro das folhas nem compreenderam a língua dos rios. Vieram armados com ferro e fogo, derrubaram árvores milenares que guardavam a memória da floresta, envenenaram as águas sagradas, aprisionaram os ventos e asfaltaram a terra.


O mundo, antes pleno e orgânico, se fragmentou.


Foi nesse tempo de transição e dor que nasceu Wãmyrá, cujo nome significa "Peixe Dançador", do povo Kariri-Xocó, criatura que, como ele, deslizava entre mundos com graça e resistência. Wãmyrá era filho da terra vermelha, do som dos pássaros e do perfume das flores silvestres; conhecia o segredo do voo das araras e a dança das antas na beira do rio.


Mas a fome e o cerco aos territórios obrigaram-no a uma escolha difícil: partiria da aldeia, deixando para trás a mata onde seu espírito se forjou, para buscar o sustento de sua família no mundo dos Karaí.


Antes de partir, ajoelhou-se à beira do grande rio, tocou a água fria, ouviu a última canção do sabiá, e prometeu que a floresta, embora distante, jamais seria esquecida. Levou consigo o que nenhum invasor poderia destruir: seu cocal de penas — fragmentos das aves que guardavam os céus; sua maracá — o eco dos trovões e do balançar das folhas; o cachimbo — feito da argila sagrada que o vento e a água moldaram; e sua sabedoria — herança dos antigos, que escutaram a voz da terra desde o começo do mundo.


Ao adentrar as cidades de concreto e fumaça, Wãmyrá parecia um ser de outro tempo. Os homens das máquinas e dos prédios de ferro se assombraram com sua presença. Queriam ver de perto aquele que carregava na pele o tom da terra e, nos olhos, o brilho dos rios.


E Wãmyrá, mesmo longe da mata, permaneceu firme: não tirava o cocal da cabeça, que agora era sua morada espiritual. Quando agitava a maracá, fazia vibrar o som do vento cortando as copas das árvores; quando fumava o cachimbo, evocava a névoa das manhãs na floresta; quando contava histórias, ressuscitava jaguatiricas, capivaras, tamanduás, e os cantos ancestrais do toré ressoavam, mesmo entre muros frios e estradas de asfalto.


Porém, em meio aos aplausos e à curiosidade, Wãmyrá sentia a ausência latejante dos rios que conhecia pelo nome, das trilhas que seus pés descalços sabiam de cor, do cheiro da terra molhada após a chuva.


E num entardecer, quando o céu se tingia com as cores que só a floresta sabia pintar, Wãmyrá ergueu sua maracá e, com a voz carregada de saudade e força, cantou:


“Tçambusebé erá, buibú keru, paewí sambéá”

"O cocal é minha casa, a maracá meu coração, o cachimbo um instrumento de união."


As árvores invisíveis, os rios calados e os ventos ausentes o escutaram.


Cumprida sua missão entre os homens do asfalto, Wãmyrá retornou à aldeia, trazendo não apenas recursos para o sustento de sua gente, mas também novos saberes sobre o mundo que o cercava e amigos que acreditaram na sua causa.


Ali, de volta à floresta, o vento voltou a cantar para ele, as águas o saudaram com peixes saltando em festa, e as árvores se curvaram, reconhecendo o retorno do filho da terra.


Wãmyrá, o Peixe Dançador, tornara-se mais que homem: era agora lenda viva, guardião do cocal e da memória ancestral, ponte entre mundos, defensor da floresta e do seu povo.


Que as palavras de Wãmyrá voem como sementes levadas pelo vento,

Que seu canto ecoe entre as árvores e corra com os rios,

E que sua história jamais se perca, enquanto houver alguém que a conte,

E alguém que a escute, com o coração aberto para a floresta e seus mistérios.

Assim seja, assim se ouça, assim se viva.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




Consultado por meio da ferramenta ChatGPT (OpenAI), inteligência artificial como apoio para elaboração do trabalho da capa no dia 29 de maio de 2025.



UTUDJEANIEÁ: A Guardiã das Sementes Sagradas






Nos tempos mais antigos, quando o mundo ainda era feito de névoa e música, o Deus Sonsé caminhou sobre a terra que ainda não tinha nome. Onde seus pés tocavam, nasciam árvores. Onde sua mão repousava, brotavam frutos. E onde soprava, cresciam flores e raízes profundas.


Em um dia de festa celeste, Sonsé reuniu os primeiros povos à margem do grande rio que ele mesmo havia traçado com seu cajado: o Opará. O rio, largo como um abraço, corria desde as entranhas da terra até o abraço do mar, aqui vivia o Kariri e o Tupi.


Diante de todos, Sonsé ergueu kludimu um cesto feito de cipós de taboca e disse:


“Aqui estão as sementes da vida. Cada uma delas possui um Anhy o espírito chamado Diméanhy "espírito dono das espécies" entre os povos Kariri. Os nossos parentes Tupi chamam Ijá "os espíritos donos das espécies" entre estes: Cajú-Ijá o dono do caju, doce como o amor.  O Kariri chamam Muicudé "a mãe da mandioca", a Muicú "mandioca" , forte como a resistência; o Masidianhy "dono do milho" chamado Masichi o milho, dourado como o sol; o Ghinhedimeanhy "dono do feijão" chamado Ghinhè o feijão, companheiro nas lutas. Os Tupi chamam 

Maracu-Ijá "dono do maracujá", o maracujá, perfumado como os sonhos. Cuidem delas, pois são parte de mim.”


E assim foi feito.


Os povos guardaram as sementes como quem guarda o próprio coração. Os anciãos ensinavam os jovens a plantá-las com respeito, a colher apenas o necessário e a devolver à terra parte do que ela ofertava.


Em cada planta, morava um Dimé ou Dé  "senhor ou mãe uma senhora", um espírito guardião. O Espírito do Cajueiro, com sua coroa de flores alaranjadas, protegia os que caminhavam na mata. O Senhor do Milharal dançava com os ventos, soprando a fertilidade sobre a terra. A Serpente de Luz do Opará, de escamas translúcidas, descia do céu às noites de lua cheia para abençoar as águas e as plantações.


Foi assim até o dia em que nasceu Utudjeanieá, a menina que as estrelas haviam prometido. Diziam que, na noite em que sua mãe a concebeu, a Serpente de Luz subiu do rio e envolveu seu ventre, abençoando a criança com o dom de ouvir as vozes das plantas e dos Anhy espírito dos antepassados .


Desde pequena, Utudjeanieá passeava pela floresta, conversando com as árvores. Sentava-se sob o Umbuzeiro Ancião, que com sua voz grave lhe contava:


“Somos mais antigos que o tempo dos homens. Quem nos ouve, nunca se perde.”


E Utudjeanieá ouvia, aprendia, guardava.


Mas um dia, nuvens estranhas surgiram no horizonte. Homens brancos chegaram em grandes barcos, e com eles trouxeram nomes novos para as coisas antigas. Chamaram o Opará de Rio São Francisco e, sem pedir permissão aos Anhy "os espíritos", arrancaram sementes e frutos para levar além-mar.


Modificaram as plantas, cruzaram as sementes, e com isso despertaram doenças adormecidas, que nem os anciãos conheciam.


Os Anhy adoeceram junto com a terra. O Espírito do Cajueiro murchou suas flores. O Dono do Milharal parou de dançar. A Serpente de Luz mergulhou nas profundezas do rio e não voltou mais à superfície.


Utudjeanieá, já moça, chorava à beira do Opará, quando ouviu, do fundo das águas, a voz de Sonsé, grave como o trovão, mas doce como o orvalho:


“Minha filha, não temas. O que foi dado não pode ser tomado à força. Enquanto existir quem lembre, as sementes sagradas não morrerão.”


E das profundezas emergiu a Serpente de Luz, enrolando-se suavemente ao redor de Utudjeanieá. Ela ouviu então outra voz, a do 

Masidianhy "Dono do Milharal", fraca, mas ainda viva:


“Ensina aos jovens. Não basta apenas lembrar, é preciso compreender, estudar, proteger.”


Então, como em um rito antigo, Utudjeanieá convocou todos os jovens da aldeia. Reuniu-os sob Uchehé a "Árvore do Tempo", e ali, com os potes de barro que continham as sementes sagradas, falou com a força dos antigos:


“Estas são nossas raízes. Não são só alimento: são memória, são espírito. Precisamos protegê-las não apenas com os rituais, mas também com a ciência da vida, para que os Encantados possam voltar a dançar e o Opará volte a brilhar com a luz de Sonsé.”


Os jovens choraram e prometeram aprender, plantar, guardar e resistir.


Naquela noite, enquanto todos dormiam, Utudjeanieá caminhou até a margem do rio. A Serpente de Luz emergiu, brilhando como nunca, e sussurrou:


“Enquanto houver quem escute, estaremos vivos.” Os Brancos têm a matéria das frutas e legumes, mas não tem o poder e nembpermissão dos Diméanhy "espírito dono das espécies". 


E assim, Utudjeanieá se tornou não apenas a guardiã das sementes, mas também a ponte entre o mundo visível e o invisível, entre o humano e o divino, entre o tempo que foi e o que ainda virá.


Desde então, quando as folhas do cajueiro dançam ao vento e o milho cresce alto e forte, sabe-se que Utudjeanieá segue viva, caminhando pela floresta, semeando esperança, protegendo o legado sagrado do Deus Sonsé.


E o Opará, com suas águas eternas, continua a contar essa história para quem souber ouvir.




Autor: Nhenety KX 




Consultado por meio da ferramenta ChatGPT (OpenAI), inteligência artificial como apoio para elaboração do trabalho da capa no dia 29 de maio de 2025.



quarta-feira, 28 de maio de 2025

MYDZEHÉPYDZU, A Pescaria de Caniço







Vou contar.


Lá no rio Opará, nas beiradas, cresce o caniço. Tem também calumbi, aguapé, ingá. É ali que o peixe gosta de ficar. Tem muito peixe. Sempre teve.


O nosso povo, Kariri-Xocó, aprendeu desde cedo a pescar ali. Com o jereré, que a gente chama de "muhé". É uma rede com arco de juá-mirim. Madeira boa, curva, feita pra cercar o peixe.


A essa pescaria, a gente chama mydzehépydzu. Quer dizer: pescaria de caniço.


Quando chega o dia, saem dois grupos de mulheres. Cada grupo tem um homem que guia. Eles entram na água. A água bate na cintura.


Vão cercando o caniço, devagar. Um grupo de um lado, outro grupo do outro. Até se encontrar. Fazem um grande semicírculo. Assim o peixe fica preso ali, no meio.


Aí vem a parte mais bonita: as crianças! Elas entram na água, vão pisando o caniço, fazendo barulho. O peixe se assusta, corre… e cai na rede.


É uma festa! Riso, grito, alegria! Todo mundo junto. Homem, mulher, criança, peixe.


E assim vão indo, andando pelas margens, onde tiver caniço. Até o dia acabar. Aí voltam pra aldeia, com os peixes, com a fartura.


Mas hoje… hoje o rio não é mais o mesmo.


Vieram as máquinas. Cortaram as matas. Fizeram barragem.


A água ficou pouca. O peixe sumiu. O caniço quase não cresce mais.


O mydzehépydzu parou.


Agora a gente pergunta: será que ainda vamos pescar como antes? Será que a tradição vai viver?


Eu digo… sim.


Enquanto a gente lembra, enquanto alguém conta, enquanto tiver quem ouça… o saber não morre.


Um dia, quem sabe, o rio volta a encher. O caniço cresce de novo. O peixe volta a nadar.


E a gente volta a pescar.


Como sempre foi.


Assim conto. Assim fica guardado.




Nhenety Kariri-Xocó




Consultado por meio da ferramenta ChatGPT (OpenAI), inteligência artificial como apoio para elaboração do trabalho da capa no dia 28 de maio de 2025.




NHIKIENKARAÍ, O Branco de Compaixão




 



Em tempos antigos, quando a região da Aldeia de Colégio ainda pertencia à imensa Capitania de Pernambuco, os colonizadores haviam se assenhoreado das terras indígenas, tomando para si as margens férteis do Opará, o grande rio.


Os nativos, privados de plantar e de pescar livremente, lutavam para sobreviver. Certo dia, sob o sol que cintilava nas águas do rio, o ancião Ehêbá saiu com seu filho, o pequeno Wianã, para tentar a sorte na pesca. Caminharam até as margens do Opará, lançaram as redes, mas o dia todo se passou sem que um único peixe mordesse a isca.


Quando o sol já começava a declinar, tingindo o céu de laranja e púrpura, pai e filho permaneceram à beira do rio, junto a uma vasta roça de milho que se estendia, verde e dourada, até onde a vista alcançava.


Wianã, com os olhos suplicantes, virou-se para o pai e disse:

— Pai, estou com fome...


Ehêbá, com o coração apertado, respondeu com tristeza:

— Meu filho, não pegamos peixe... e nada temos para comer.


O menino, então, apontou com esperança para as espigas maduras que se balançavam suavemente ao vento:

— Olha, pai! Quanto milho!


Mas o ancião, com o peso dos ensinamentos de seus ancestrais, murmurou:

— Filho, esse milho não é nosso...


Wianã permaneceu em silêncio, mas sua fome era visível, seu rosto abatido. Ehêbá, tomado pela compaixão, não resistiu. Aproximou-se da plantação e, com cuidado, retirou três espigas, assando-as ali mesmo, na brasa improvisada entre as pedras.


Enquanto o cheiro doce do milho assado se espalhava pelo ar, surgiu, entre as fileiras da plantação, o dono da roça — João do Brejo, um homem robusto, com o olhar severo de quem zela pelo que é seu.


Ao ver os dois indígenas, perguntou em tom áspero:

— Vocês plantaram alguma roça aqui para tirar milho sem minha ordem?


Ehêbá, com serenidade e dignidade, ergueu o olhar e respondeu:

— Olá, seu João. Quem plantou essa roça aqui, nas terras dos índios, foi Nhikienkaraí "O branco de compaixão" um filho de Deus. A criança chorava de fome… e eu tirei três espigas para saciar a fome dele.


João do Brejo permaneceu em silêncio por um instante. Seu olhar endurecido se desfez, amolecido pela cena que presenciava: um pai que, mesmo diante da penúria, ensinava ao filho o respeito, mas que, diante da fome, cedia por amor.


Então, com um gesto de rara compaixão, João disse:

— Ehêbá, me perdoe por tê-lo repreendido. Vou tirar mais milho, feijão e abóbora para o senhor levar.


Ehêbá, surpreso e emocionado, curvou a cabeça em agradecimento. E assim, naquele dia, entre o som manso do rio e o crepitar da brasa, nasceu o respeito mútuo entre dois homens, marcando a memória do Opará com a história de Nhikienkaraí — o Branco de Compaixão.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




Consultado por meio da ferramenta ChatGPT (OpenAI), inteligência artificial como apoio para elaboração do trabalho da capa no dia 28 de maio de 2025.




SUBATEWAERÁ, O Colégio dos Jesuítas







Muito antes de os homens de cruz e ferro cruzarem os caminhos do sertão, a aldeia Natiá florescia no alto da colina, abrigada pelo abraço generoso das árvores antigas e protegida pelos espíritos da floresta. Lá, o povo Kariri vivia em comunhão com a terra, o rio e o céu, em grandes casas de palha trançada, os picriá, onde as gerações se reuniam para comer, cantar, dançar e aprender as lições do mundo.


O Rio Opará — a artéria viva da terra — corria majestoso, levando os segredos dos ancestrais para além das serras e das planícies. Nele, os Kariri pescavam, se banhavam e realizavam seus rituais, honrando os ciclos da natureza. Era ali, à sombra das árvores e ao som das águas, que o povo conversava em seu doce mewonhé, a língua que os deuses lhes ensinaram.


Mas um dia, o vento mudou de direção.


Vieram homens diferentes, com roupas pesadas, barbas compridas e olhos que pareciam ver, mas não enxergar. Trazendo cruzes de madeira e livros de capa grossa, disseram que portavam a "verdadeira palavra" e a "única salvação". Suas vozes eram mansas, mas seus gestos eram firmes; seus sorrisos, frios como a lâmina de um machado.


Subiram à colina e, com palavras enfeitadas de promessa e poder, convenceram — ou forçaram — os Kariri a deixar suas casas, seus picriá, e descerem para junto de uma capela frágil, feita de folhas de palmeira e barro, que dedicaram a uma santa: Nossa Senhora da Conceição.


Na nova aldeia, aos pés da colina, ergueu-se o que os brancos chamavam de Subatewaerá, o Colégio dos Jesuítas. Ali, o povo Kariri deveria aprender novas palavras, novos costumes, nova religião… e esquecer tudo o que antes fazia deles quem eram.


O velho Piragibá, outrora cacique de muitos feitos e sabedor de velhas histórias, via agora seus dias se alongarem sob o peso da tristeza. Sentia-se como uma árvore cujas raízes haviam sido cortadas, mas que teimava em se manter ereta.


Numa tarde em que o céu ardia em tons de sangue e ouro, ele chamou o neto Maruandá para junto de si. Sentaram-se sob o angico velho, cuja copa ainda se estendia como um abrigo silencioso.


Piragibá olhou para a linha do horizonte, onde o Rio Opará cintilava, e disse com a voz cansada:


— Maruandá... nosso povo sempre viveu junto, nas grandes casas que chamamos de picriá. Ali, compartilhávamos o fogo, os alimentos, os sonhos. Agora, nos separaram, como se quisessem que esquecêssemos que somos um só corpo, uma só alma.


O menino, ainda com a pureza nos olhos, ouviu em silêncio, como quem grava cada sílaba no coração.


— Fomos forçados a morar nessas pequenas casas, que eles chamam de erá. Nos fizeram vestir o croteró, essa roupa de pano que prende nossos corpos e nos distancia da pele da mata.


Piragibá abaixou a cabeça, como quem reverencia a dor, e continuou:


— Eles nos proibiram de falar nosso mewonhé. Dizem que nossa língua é rude, errada… querem que falemos apenas a língua deles: o português.


O ancião ergueu o olhar, agora mais firme:


— Tomaram de mim o nome de nanhe, que meus antepassados me deram com honra e amor. Agora sou chamado de capitão-mor, como se fosse um título, mas que, na verdade, é uma prisão.


Maruandá apertou as mãos do avô, sentindo nelas a força e o cansaço acumulados por gerações.


— Nosso bidzamu, o pajé, que sabia ouvir as árvores, os animais e os espíritos, foi silenciado. No lugar dele, há um padre, que nos fala de um deus que não conhece nossa mata, que nunca ouviu o canto dos nossos pássaros, que não entende o sopro dos nossos ventos.


Piragibá respirou fundo, o peito subindo e descendo lentamente, como as ondas do rio ao longe.


— Estão apagando nossa Warakidzã, nossa religião Kariri, que nos ensinava a respeitar e agradecer a tudo: ao sol, à chuva, à caça, à semente.


O velho deixou que o silêncio pairasse entre eles, preenchido apenas pelo canto distante de uma araponga e pelo farfalhar das folhas.


Depois, com um suspiro, completou:


— Estamos muito tristes, meu neto… Não sabemos como será no uché, o tempo futuro.


Maruandá, com os olhos marejados, abraçou o avô com força, tentando, naquele gesto, costurar novamente as raízes que o vento da colonização tentava arrancar.


Piragibá afagou os cabelos do menino, e, mesmo com o peso das perdas, sorriu.


— Mas eu acredito… acredito que vocês, os mais jovens, vão mudar isso.


O menino assentiu em silêncio, como quem jura diante dos deuses e dos ancestrais.


Ao longe, o Rio Opará seguia seu curso, indiferente e eterno, levando nas suas águas as lágrimas e os sonhos de um povo que, apesar de ferido, jamais seria esquecido.


E sob o angico velho, entre o menino e o ancião, nasceu a semente de uma promessa: a de que a memória Kariri continuaria viva, enquanto houvesse quem a contasse.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




Consultado por meio da ferramenta ChatGPT (OpenAI), inteligência artificial como apoio para elaboração do trabalho da capa no dia 28 de maio de 2025.




UCHENHEKIÉ, O Tempo de Brincar

 







Nas margens serenas do Opará, entre árvores frondosas e os caminhos de areia branca, viviam Aruã, Jaci e Giriçá . As estações marcavam o tempo, e cada mudança na natureza era uma nova oportunidade de brincar, aprender e honrar as tradições dos Kariri-Xocó.


O Tempo da Tanajura


Certa manhã, quando o chão da aldeia começou a se encher com as grandes formigas aladas, as crianças souberam: havia chegado o tempo da tanajura. Com ramos de mato nas mãos, Aruã correu em direção ao formigueiro, puxando Giriçá e Jaci.

— Vamos! Temos que ser rápidos antes que elas entrem todas no buraco! — gritava, animado.


Enquanto sacudiam os galhos e entoavam a cantiga tradicional:

— "Cai, cai tanajura, na panela da cordura!"

as formigas rainhas, gordas e brilhantes, caíam na peneira trançada que Jaci segurava com cuidado.


O velho Txopó, sentado sob a sombra do cajueiro, assistia às risadas e à correria.

— Lembrem-se — alertou —, peguem só o que for necessário. A natureza sempre dá, mas também precisa descansar.


As crianças assentiram respeitosamente. Ao final da coleta, levaram as tanajuras para a avó Cauaí, que as prepararia para a culinária tradicional. E, enquanto o cheiro das formigas assadas se espalhava pela aldeia, Jaci sussurrou:

— Como é bom o Uchenhekié… cada tempo tem sua alegria.


O Tempo do Milho


Dias depois, o calor trouxe o tempo do milho maduro. Os milharais se tingiram de dourado, e os cabelos louros das espigas balançavam suavemente ao vento. Jaci, com olhos brilhantes, correu entre as plantas, procurando as menores espigas.

— Olha, Aruã! Esta tem os cabelos mais lindos! — disse, arrancando uma espiga e começando a trançar as folhas, transformando-a numa bonequinha.


Enquanto isso, Giriçá e Aruã recolhiam palhas secas para fazer petecas. Com a ajuda do pai de Aruã, aprenderam a enfeitar as bolas com penas de pato, deixadas na margem pelo caçador da aldeia.

— Vamos ver quem consegue manter a peteca no ar por mais tempo! — desafiou Giriçá.

— Eu aceito! — respondeu Aruã, já se posicionando.


As palmas batiam, as petecas voavam e as risadas ecoavam pelos campos de milho. O velho Txopó, passando devagar, parou para assistir.

— Vocês sabem por que batemos a peteca com as mãos? — perguntou.

As crianças ficaram em silêncio, curiosas.


— Porque é o jeito do nosso corpo se unir ao vento. Cada batida é como um sopro, mantendo a vida do brinquedo… e nos lembrando que, como o milho, também temos que crescer fortes e flexíveis.


As crianças sorriram, guardando mais aquela lição.


O Tempo das Canoas


Quando os ventos começaram a soprar do sertão, eles sabiam: era o momento de soltar as ubairim nas águas quietas da lagoa dzurioá.


O velho Txopó chamou-os antes de partirem:

— Venham cá. Quero lembrar-lhes que, ao lançarem as canoas, lancem também seus desejos.


Aruã, Jaci e Giriçá se aproximaram e ouviram atentos, como sempre.


Na lagoa, cada um soltou sua ubairim com um pedido silencioso. Aruã desejou ser um grande canoeiro, Giriçá quis ser o melhor caçador, e Jaci, com ternura, pediu:

— Que eu aprenda a fazer as panelas de barro mais bonitas da aldeia…


As canoas dançaram sobre as águas, empurradas pela brisa suave.


O Tempo do Barro


Pouco depois, quando o sol ficou mais quente, marcando o tempo da cerâmica, Jaci e outras meninas começaram a moldar o barro molhado à beira do Opará.

— Veja, Aruã! Minha runhuhupi está quase pronta! — exclamou, mostrando a pequena panela modelada com capricho.

— Vai ser a melhor da aldeia! — elogiou o irmão, orgulhoso.


Enquanto isso, Giriçá tentava, desajeitadamente, fazer uma panela também, arrancando risadas de todos.


O velho Txopó se aproximou mais uma vez:

— No tempo do Uchenhekié, tudo se transforma… O barro vira panela, o milho vira boneca, o vento vira canoa… e vocês, crianças, viram adultos, carregando nossas tradições.


As crianças ficaram em silêncio, olhando para o ancião com respeito e carinho.


E assim, entre brincadeiras, risadas e ensinamentos, o Uchenhekié se renovava a cada estação, como sempre foi e como sempre será, nas margens do sagrado Opará.



A Benção de Txopó


Naquela tarde, quando o sol se despedia tingindo o céu de vermelho e dourado, as crianças se reuniram ao redor do velho Txopó, sentadas sobre a areia morna, com os pés ainda úmidos da lagoa.


O ancião ergueu o cajado e, com a voz grave e terna, disse:

— Uchenhekié… o tempo das brincadeiras… é também o tempo de aprender a ouvir a voz da natureza. O Opará fala com sua correnteza, o vento com seu sopro, o barro com seu silêncio… e cada brincadeira que vocês fazem é um modo de lembrar quem somos.


Fez uma pausa, olhando para cada um, como se enxergasse não apenas as crianças, mas os adultos que elas um dia seriam.


— Nunca deixem de brincar… porque quem brinca com a natureza, respeita e protege a vida. E quem respeita, permanece… assim como os nossos ancestrais permanecem em nós.


As crianças se entreolharam em silêncio, com um sorriso calmo, sentindo o peso doce das palavras.


Então, Txopó estendeu as mãos abertas, como quem oferece um presente invisível:

— Que o Uchenhekié nunca falte em seus corações. Que o tempo da brincadeira seja sempre também o tempo do saber, da alegria e do amor pela terra.


As cigarras começaram a cantar entre as árvores, como se respondessem à bênção. As crianças, então, se levantaram, correram de volta para a aldeia, levando consigo não apenas seus brinquedos, mas a certeza de que, enquanto houvesse o ciclo das estações, sempre haveria o tempo de brincar… e de viver plenamente junto ao Opará.


E, assim, o Uchenhekié seguia, como o rio: eterno, renovado a cada curva, a cada estação, a cada geração.





Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





Consultado por meio da ferramenta ChatGPT (OpenAI), inteligência artificial como apoio para elaboração do trabalho da capa no dia 28 de maio de 2025.