Algumas palavras demonstram que esse idioma, sendo ou um dialeto do Tremembé ou uma língua a parte, tinha sofrido influências de línguas que temos pouca documentação, mas alguns registros de mapas coloniais demonstram que, no passar de algumas décadas, essa língua estava evoluindo.
Note a anotação do nome dos dois rios Aracati, cujo em 1649, era chamado de Orecatu (Pompeu Sobrinho, 1945, p. 166, Orecatu-mirim & Orecatumirim), em 1680, 29 anos depois, são documentados as variantes dos nomes Curu e Aracati, no formato de Croo e Aracat, o salto fonético de Orecatu para Aracat (Pompeu Sobrinho, 1945, p. 166, r. Croo, r. Aracat) demonstra um processo extremamente rápido de evolução dessa língua, sendo que as mudanças são:
1º) A mudança das vogais /o/ e /e/ para, o que se pode presumir /ə/ ou /ɐ/, assim: oɾe‘katu > əɾə‘kat(i)
2º) A mudança da vogal /u/ para /i/, assim: oɾe‘katu > əɾə‘kat(i)
3º) Queda de vogais fracas em palavras paroxítonas, criando codas nesse dialeto, assim: oɾe‘katu > əɾə‘kat(i)
Também, além das codas novas criadas, nota-se que encontros consonantais, não vistos no Vale do Curu, são criados nesse dialeto, assim o rio Croo é chamado, ao invés de Curu, como na foz do rio do mesmo nome, território dos Anacés e Guanacés. A partir de 1690 é que vemos variantes que parecem recuperar a vogal perdida, resultando no termo moderno: Aracati. É possível que a vogal não tivesse sido perdida, e sim que haviam dialetos que a deletava e recuperava em variação livre.
Há também a mudança sonora de antigos ditongos para monotongos, como no nome Cauron, que é o ancestral do moderno Curu, onde /au/ virou /o/, como visto no nome Coruybe, e posteriormente /u/. Ainda no tópico de vogais, escrevo a ortografia dessa língua usando o [e] como base para o /ə/ (schwa), que parece ter sido a vogal principal donde os sons de /e/ e /o/ evoluiram para, isso é visto no nome do rio Ubatuba, na cidade de Chaval-CE, que era chamado de Josari /(d)ʒosarɪ/, posteriormente de Sosara /sosaɾə/, demonstrando a evolução de /ɪ/ > /ə/ e de /(d)ʒ/ > /s/.
Outra evolução vista no Cauron é a geminação, que resultou em fonemas surdos nas formas modernas dos topônimos, isso é demonstrável no nome Siupé moderno, que tem variantes antigas em Siebeba e Siebba, o processo aqui sendo:
*j-epe-pa ‘3-fruta-NEG’
> sʲ-ebe-ba (parcial fricativização de j- > sʲ; vozeamento de /p/ > /b/)
> sʲ-eb-ba (redução de vogal fraca; possivelmente redução do fonema /e/ > /ə/ em ambos ambientes tônicos e átonos, em ambientes átonos, a vogal é perdida e cria coda (consoante final); A coda nesse ambiente se reduz à proxima consoante, criando uma consoante geminada /bː/)
> sʲ-əp-pɛ (concretização na forma Siopé; desvozeamento da consoante geminada /bː/ > /p(ː)/; Alçamento da vogal /a/ final para /ɛ/)
> sʲ-u-pɛ (redução da vogal /ə/ para /u/ em ambiente átono; Possível perda da consonate geminada, tornando-a em uma consoante simples: /p(ː)/ > /p/, concretizando-se na forma atual Siupé)
Outras mudanças são comparáveis por meio de seus cognatos, como Dequeamamene, cujo o prefixo de-, cognato do Kaliña ty-, nos indica que houve uma evolução do som de /ɨ/ > /e/ em ambiente átono, cujo alofonicamente, também virava /ə/. Mas existe a possibilidade de, na verdade, a primeira mudança (/ɨ/ > /e/) ter acontecido e ter sido sucedida pela mudança geral de /e/ > /ə/, visto que Dequeamamene é um nome registrado em 1614, enquanto Sosara, variante sucessora de Josari, foi documentado em 1698, quase um século depois.
O fonema /a/ parece ser o mais estável, apesar de sabermos que ele pode mudar para /ɛ/ em ambiente tônico, possivelmente pois o sotaque já pronunciava o som de /a/ como /æ/, logo elevando-o para o som visto em Siupé.
O fonema /o/ deriva tanto do fonema /o/ do Kaliña propriamente dito, como também do som de /ə/ (aproximação ortográfica por parte dos portugueses), o som de /o/ próprio parece ter sobrevivido, como no caso do rio Timônha, que deriva de antigos Temona e Pemona, estes possuindo a posposição pona ‘contra’. Enquanto isso, os que representam a vogal fraca central /ə/ logo parecem ter virado /u/ em ambientes átonos, ou desaparecido em posição de sílaba final, criando consoantes finais em muitos dos nomes, como araca-t ‘coisa rápida’ e eb ‘fruta’ de Si-eb-ba. Conclue-se então que:
VOGAIS
Proto-Cauron */a/ > /a/
ex.: moña ‘deixar, abandonar, ir contra’, em Ti-moña ‘rio Timonha’, cognato do Puri-Coroado tamriponam ‘escuro, noite’ (ta ‘escuro’ + mri ‘olho, ver’ + ponam ‘deixar, largar’) e do Kaliña pona ‘contra’
Mas também */a/ > /ɛ/
ex.: -pé ‘negação’, em Sy-u-pé ‘sem frutas’, cognato do Kaliña -pa ~ -pyra ‘negação’
Proto-Cauron */e/ > /ə/ ou /Ø/ (em posição de sílaba final)
ex.: wase ‘indígena’, de Wase-puy-na ou Was-puy-na ‘Guasapuina, Guaspuina, riacho Tapuiú’, cognato do Kariri wãye/woyên ‘tapuya bravo’, Pankararú mãye ‘mato, floresta’, Puri-Coroado mae ‘mato’ de mae-kü ‘milho’ (mae-kü ‘semente do mato’) e do Boróro boe ~ woe ‘indígena Boróro’
Mas também */e/ > /ə/ > /u/
ex.: sy-ebe-ba > sy-u-pé ‘sem frutas’
Proto-Cauron */i/ > inicialmente preservado, porém /ə/ a partir de 1689
ex.: josari, cognato do Kaliña j-oja-ry ‘amontoado’, tradução de Ubatuba (yba ‘fruta’ + tyba ‘abundância’), em 1689 virou sosara.
Proto-Cauron */o/ > /o/, em algumas palavras também vira /u/
ex.: moña ‘deixar, abandonar, ir contra’, em Ti-moña ‘rio Timonha’, cognato do Puri-Coroado tamriponam ‘escuro, noite’ (ta ‘escuro’ + mri ‘olho, ver’ + ponam ‘deixar, largar’) e do Kaliña pona ‘contra’
ex.: kauron ‘rio’, depois koru, porfim kuru.
Mas também */o/ > /ə/
ex.: oreka-tu ‘coisa rápida’ > ârâka-t(i) ‘coisa rápida’
Proto-Cauron */u/ > /u/
ex.: puy ‘fazer’, de Wase-puy-na ou Was-puy-na ‘Guasapuina, Guaspuina, riacho Tapuiú’, cognato do Puri-Coroado puy ‘fazer’ de guara puy ‘construir’ (lit.: casa fazer) e do Kariri wi ‘fazer-se’.
Mas também */u/ > /i/ ~ /Ø/ (em posição de sílaba final)
ex.: oreka-tu ‘coisa rápida’ > ârâka-t(i) ‘coisa rápida’
Proto-Cauron */ɨ/ > /e/, /i/ (este último virando /ə/ a partir de 1689)
ex.: de- ‘terceira pessoa correferencial’, em dê-quêama-me-ne ‘lugar que contém superfície aberta e elevada’, cognato do Kaliña ty- ‘terceira pessoa correferencial’
ex².: josari, cognato do Kaliña j-oja-ry ‘amontoado’, tradução de Ubatuba (yba ‘fruta’ + tyba ‘abundância’), em 1689 virou sosara.
CONSOANTES
Proto-Cauron */p/ > /b/, mas em casos de geminação: /b/ > /bː/ > /p/
ex.: sy-ebe-ba > sy-u-pé ‘sem frutas’
Proto-Cauron */m/ > /m/
ex.: kuama ‘alto’, de a-kuama-mu-ne ‘lugar que contém superfície aberta e elevada’, cognato do Kaliña kawo
Proto-Cauron */t/ > /t/ ou /d/
ex.: de- ‘terceira pessoa correferencial’, em dê-quêama-me-ne ‘lugar que contém superfície aberta e elevada’, cognato do Kaliña ty- ‘terceira pessoa correferencial’
Proto-Cauron */n/ > /n/
ex.: muna ‘pegar tubérculos’ de muna-aseri ‘lugar novo de pegar tubérculos’
ex².: -tu (depois -t(i)) ‘nominalizador’ de oreka-tu ‘coisa rápida > ârâka-t(i) ‘coisa rápida’
Proto-Cauron */ɾ/ > /ɾ/
ex.: -ri (depois -ra) ‘possessivo’ de j-osa-ri, depois s-osa-ra
Proto-Cauron */s/ > /s/
ex.: aseri ‘novo’ de muna-aseri ‘lugar novo de pegar tubérculos’
Proto-Cauron */j/ > /sʲ/
ex.: sy- ‘terceira pessoa’, de sy-ebe-ba ‘sem frutas’, cognato do Kaliña j-epe-pa
Mas também /dʒ/ por um curto período de tempo, em 1689 virou /s/
ex.: josari, cognato do Kaliña j-oja-ry ‘amontoado’, tradução de Ubatuba (yba ‘fruta’ + tyba ‘abundância’), em 1689 virou sosara.
Proto-Cauron */k/ > /k/
ex.: oreka-tu ‘coisa rápida > araka-t(i) ‘coisa rápida’
Mas também */k/ > /kʲ/ > /tʃ/ > /dʒ/ (possivelmente em ambiente próximo de vogais altas /e/ e /i/)
ex.: dê-quêa-ma-me-ne > je-ma-me
Exemplo de reconstrução baseado nos estudos fonológicos
tapita morokon pomyi man
ty- api -ta moro -kon pomyi man
3aml- red_colour -Vii that -pln pepper is
‘those peppers have become red’
Fonte: Courtz, 2008, p. 140
Frase do Cauron reconstruída:
*data muruku bom ma
d-a-ta muru-ku bom ma
3RFLX-vermelho-tornar aquilo-PL pimenta ser
‘aquelas pimentas tornaram-se vermelhas’
Aplicando as regras fonéticas, justificativa principais:
1º) O Cauron demonstra uma abreviação vista no Kaliña moderno, a negação -ba (atual -pé) deriva de um antigo -pyra/-myra, que é comumente abreviado para -pa/-ma no Carib, assim, justifico que as abreviações vistas na documentação do Kaliña de 1655 (anotadas por Courtz, derivadas da documentação de Pelleprat) são aproximadas do que vejo no Cauron.
Regra 1: Vozeamento
Como visto em si-ebe-ba, o som de p virou /b/, e o ty- Kaliña corresponde ao de- Cauron, a única consoante que não vejo vozeada na documentação é /k/, que se mantém surdo, exceto quando é palatalizado para /tʃ/, cujo alofonicamente vira /dʒ/ (cf.: Dêquêamamene > Jemame), assim tapita, que é ty-api-ta ‘3CORRF-vermelho-Vii’ (Vii significa nominalizador de verbos ingressivo, significa basicamente ‘tornar’, assim api-ta ‘vermelho-tornar’), regularmente viria como dabida no Cauron.
Regra 2: Desnasalização
A única palavra nasal documentada e preservada é Curu de Paracuru-CE e do rio Curu, que deriva de um antigo Kauron, demonstrando que as vogais nasais se tornaram orais em algum momento da história da língua.
Regra 3: A neutralização das vogais /i/ e /e/ para /ə/
Nos registros mais antigos, as duas vogais são conservadas, mas a partir do final do século 17, elas convergem na pronúncia de /ə/, em alguns casos, isso causou geminação e posterior desvozeamento (si-ebe-ba > si-eb-ba > si-əb-bæ > si-əp-pɛ > si-u-pɛ), isso faria com que tapita, que foi reconstruído acima para dabida passasse por:
dabida > dabəda > dabda > dadːa > datːa > data
Autor da matéria: Ari Llusan