Um conto de memória sonora do toca-disco
Na beira do rio Opará, onde o tempo caminha descalço e as histórias vivem soltas no ar como folhas secas dançando com o vento, havia uma aldeia que conhecia a fala dos pássaros, o choro da chuva e o riso do fogo.
Mas certo dia, no início de 1970, uma nova voz ecoou entre os cajueiros e mangabeiras: uma voz que vinha de dentro de uma caixa de madeira escura, com fios como cipós e um disco preto que girava sem parar.
O velho Morã, conhecedor dos ventos, da cura e dos encantos, foi o primeiro a ver a engenhoca. Passou a mão enrugada sobre o tampo liso, olhou com olhos de jaguar e declarou:
— Crai-won-hé!
— O que disse, meu avô? — perguntou a netinha Aruã, de olhos atentos e tranças longas.
— Cramenu, menina... a caixa. Wonhé, o tocar e o cantar. E Iworó, rodar. É Craiwonhé, a caixa que roda, toca e canta!
Desde aquele momento, a aldeia ganhou um novo espírito.
O dia da festa
A máquina mágica chegou trazida por cacique Cícero Ireçê, que a comprou na cidade para o casamento de seu filho José Heleno. No dia da cerimônia, os maracás soaram primeiro, como sempre. Depois, as vozes dos cantadores entoaram o toré em homenagem aos noivos. Mas foi quando a Craiwonhé começou a girar que o espanto se espalhou.
— Olha! Ela canta sem boca! — disse Marieta, a parteira.
— E dança sem perna! — brincou o pajé Tuíra, rindo com os olhos.
Era o forró do Trio Nordestino que ecoava pela aldeia. Depois veio Waldick Soriano, cantando dores que pareciam ter saído do peito de algum ancião. E logo depois, Fagner, Odair José, Os Incríveis, The Fevers e até Roberto Carlos chegaram à aldeia sem nunca terem posto os pés nela.
A cada LP, a aldeia girava junto com Craiwonhé. Os jovens se apaixonavam nas danças sob o luar. As meninas copiavam as roupas das capas coloridas. Os meninos sonhavam em formar suas bandas, mesmo sem instrumentos.
O tempo gira como disco
Crai-won-hé virou companheira das noites sem lua. Enquanto o rádio embutido nela contava as notícias do mundo, as crianças se deitavam em redes para ouvir histórias. Mas agora, era a voz de Evaldo Braga que narrava as tristezas, e de Diana que cantava as esperanças.
Aruã cresceu ouvindo aquele som. Um dia, sentou-se ao lado do avô Morã e perguntou:
— A Craiwonhé tem alma, vovô?
— Tem sim. Alma de muitos. Quando gira, ela chama os espíritos da música para dançar com a gente.
Anos depois, Aruã se tornaria contadora de histórias. E cada vez que contava sobre a Craiwonhé, seu rosto se iluminava, como se o som ainda estivesse ali.
A memória não se desliga
Com o passar dos anos, chegaram o gravador, o CD, o celular. Craiwonhé passou a descansar num canto, coberta por um pano bordado. Mas ninguém se atrevia a jogá-la fora.
O jovem Piratã, neto do cacique Ireçê, limpou a vitrola um dia e colocou um LP antigo. A aldeia parou. Os mais velhos choraram. As crianças riram. O som ainda era puro.
— Ela canta! Ela ainda canta! — gritou Aruã, agora com cabelos grisalhos.
Por que contar essa história?
Porque Craiwonhé não foi só uma caixa de som. Foi uma caixa de memórias, de encontros, de mudanças. Ela trouxe o mundo para dentro da aldeia sem arrancar a raiz de ninguém.
Ela foi ponte, não invasão.
Hoje, quando a lua cresce redonda no céu e o vento sopra do rio, ainda se pode ouvir, lá dentro das lembranças:
“Lado A: Forró. Lado B: Emoção.”
E a Craiwonhé continua a girar — na alma do povo Kariri-Xocó.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó