sexta-feira, 28 de novembro de 2025

WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ, CRENÇAS DO MUNDO ESPIRITUAL, Contos – Volume 12 – Coletânea, Nhenety Kariri-Xocó"







⭐ FALSA FOLHA DE ROSTO



WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ,

CRENÇAS DO MUNDO ESPIRITUAL

Contos – Volume 12 – Coletânea

Nhenety Kariri-Xocó




⭐ VERSO DA FALSA FOLHA DE ROSTO


Todos os direitos reservados.

Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida sem autorização do autor.


Blog oficial: kxnhenety.blogspot.com





⭐ FOLHA DE ROSTO (FRONTISPÍCIO)


Nhenety Kariri-Xocó


WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ,

CRENÇAS DO MUNDO ESPIRITUAL

Contos – Volume 12 – Coletânea


Porto Real do Colégio – AL

2025





⭐ FICHA CATALOGRÁFICA / FICHA TÉCNICA



(modelo formal adaptado ao padrão bibliográfico brasileiro)


Kariri-Xocó, Nhenety.

Woroy história, Kariri-Xocó, crenças do mundo espiritual: Contos – Volume 12 – Coletânea.

Nhenety Kariri-Xocó – Porto Real do Colégio, AL: Edição do Autor, 2025.


Povos Indígenas – Kariri-Xocó.


Contos espirituais.


Tradições orais.


Cosmologia indígena.


Seres espirituais.


CDD: 398.2089

CDU: 392.2





⭐ DEDICATÓRIA



Aos ancestrais que caminham comigo,

aos espíritos guardiões das matas e das águas,

e ao meu povo Kariri-Xocó,

cuja memória vive em cada palavra.







⭐ AGRADECIMENTOS



Agradeço à força dos Espíritos, às histórias que atravessaram o tempo,

e ao grande rio Opará, cuja voz ecoa em cada conto.

Aos que preservam, escutam e respeitam a tradição oral,

meu mais profundo axé e gratidão.





⭐ EPÍGRAFE



"Onde a palavra vive, o espírito respira.

E onde o espírito fala, a tradição permanece."

— Sabedoria Kariri-Xocó





⭐ SUMÁRIO (ÍNDICE)


Parte I – Aberturas do Mundo Espiritual

Prefácio

Apresentação

Introdução


Parte II – Contos do Volume 12


01. Ipupiara, O Ser Que Surge das Águas Profundas


02. Caipora, A Protetora dos Animais


03. Çamarabóya, A Cobra do Olhar Malígno


04. Munewo Ãmbá, O Caboclo de Casco


05. Tidzicuté, A Mulher Raposa


06. Guarawá Caraí, O Homem Lobo dos Brancos


07. Nambú, A Ave Protegida da Caipora


08. Anran e Nienuo, O Ser de Luz e o das Sombras


09. Dunhá, A Fogueira do Morto


10. Natiankié, Visão Kariri Pós a Morte e Outras Tradições Antigas


Parte III – Apêndices e Complementos

Glossário Kariri-Xocó de Termos Sagrados

Notas de Tradição Oral

Referências


Parte IV – Sobre o Autor

Dados Biográficos

Orelha do Livro


Capa e Contracapa – Ao Final





⭐ PREFÁCIO



Por Nhenety Kariri-Xocó


Os contos que habitam este livro não nasceram de tinta ou papel, mas da respiração antiga da mata, do sopro quente das fogueiras e da memória dos anciãos que caminham comigo desde o começo do tempo. Cada palavra aqui escrita não é apenas relato: é flecha de lembrança, é raiz que desce ao chão de Woroy, é luz que retorna ao espírito de quem lê.


Muitos pensam que a história dos povos originários vive apenas no passado. Enganam-se. O povo Kariri-Xocó sabe que o passado é vivo, que o presente é sagrado, e que o futuro já conversa conosco através dos Espíritos dos ancestrais que atravessam a noite. Por isso este livro não é um simples volume: é um território espiritual onde seres, visões e ensinamentos se encontram. Aqui moram Ipupiara, Caipora, Çamarabóya, Munewo Ãmbá e tantos outros que guardam e desafiam, protegem e ensinam. Eles não surgem para assustar, mas para lembrar quem somos.


Este é o Volume 12 de uma travessia iniciada há muito, e que continuará enquanto houver uma voz para contar e um ouvido para escutar. Escrevo como quem acende o fogo do Ouricuri: com respeito, com amor ao meu povo e com consciência de que cada história é um pedaço do espírito ancestral que não pode se perder.


Que este livro seja ponte e reverência.

Que seja lembrança e continuidade.

Que toque o coração de quem lê e fortaleça o caminho de quem caminha.


Assim abro estas páginas como quem abre um rito:

com o coração voltado para os Espíritos,

e os pés firmes na terra sagrada de nossos antepassados.





⭐ APRESENTAÇÃO



Por Nhenety Kariri-Xocó



Este livro nasceu da voz da tradição oral do meu povo, dos passos que nossos mais velhos deixaram na areia do Opará, e do espírito que se move por entre as árvores, rios e sonhos. Quando escrevo cada conto, não estou apenas registrando histórias; estou devolvendo ao papel aquilo que sempre pertenceu ao espírito da terra.


“Woroy História, Kariri-Xocó, Crenças do Mundo Espiritual” é um mapa, uma trilha aberta no mato sagrado para orientar quem busca compreender os seres que vigiam, protegem, ensinam e guardam as fronteiras entre os mundos. E cada ser aqui presente tem sua função espiritual, seu lugar no equilíbrio da natureza e sua lembrança na memória ancestral.


Ao leitor, deixo um convite:

não leia estas histórias com olhos de pressa.

Leia com o coração aberto, com o respeito de quem pisa em território sagrado.

Pois aqui não há fantasia: há verdade espiritual.

Há visão.

Há ensinamento.


Este livro é também ponte de encontro entre mundos:

o mundo indígena e o mundo dos brancos,

o mundo físico e o mundo espiritual,

o mundo do agora e o mundo dos antigos.


Que esta obra sirva para fortalecer a identidade dos povos originários e iluminar o caminho de todos que buscam compreender o que vive além do olhar cotidiano. As histórias são sementes. E cada leitor, ao abri-las, torna-se terra fértil para que floresçam.





⭐ INTRODUÇÃO



O povo Kariri-Xocó vive há séculos em contato direto com o mistério. Para nós, o mundo não termina onde os olhos alcançam. Há caminhos invisíveis, camadas espirituais, seres que habitam a mata, o rio, o céu e o silêncio. O que chamamos de “realidade” é apenas uma das moradas do espírito. Por isso, desde tempos imemoriais, nossos anciãos contaram histórias que nascem do encontro entre o visível e o invisível.


Este livro reúne dez desses encontros.

São contos que atravessam o tempo, preservando o que somos.

São narrativas que carregam o peso da tradição e a leveza da sabedoria.


A cada conto, o leitor encontrará um ser, uma força, uma lição:

– Ipupiara, guardião das águas profundas;

– Caipora, protetora incansável dos animais;

– Çamarabóya, a serpente que vigia e pune;

– Munewo Ãmbá, espírito que assume a forma humana;

– Tidzicuté, a mulher-raposa capaz de cruzar mundos;

– Guarawá Caraí, a fera híbrida que nasce do encontro entre culturas;

– Nambú, ave sagrada tocada pelo poder da Caipora;

– Anran e Nienuo, as duas forças opostas que equilibram o espírito;

– Dunhá, chama ritual que conversa com os mortos;

– Natiankié, a visão espiritual do caminho pós-vida.


Essas histórias não foram inventadas.

Foram reveladas, vividas, testemunhadas e transmitidas.

São parte do patrimônio espiritual do meu povo, e meu compromisso é preservar sua força e sua dignidade.


Assim, esta introdução marca o início de mais uma travessia:

uma caminhada entre mundos, guiada pela memória dos antigos e pela força dos Espíritos.





⭐ CONTOS COMPLETOS 




01. IPUPIARA, O SER QUE SURGE DAS ÁGUAS PROFUNDAS 





Nas noites enluaradas, quando o silêncio repousa sobre as margens do Opará, o rio sagrado dos antigos, há uma calma que parece esconder segredos. As águas dormem serenas, como se embalassem os sonhos dos peixes em suas tocas de pedra. Mas nem tudo dorme. Nem tudo repousa.


Lá, nas profundezas escuras, algo permanece desperto.


Os mais velhos da aldeia falam com reverência de um ser que habita esse mundo aquático. Chamam-no de Ipupiara, o Ser Que Surge das Águas Profundas. Para alguns, é o Negro D’Água. Para outros, apenas o Homem da Água. Mas todos o temem — e o respeitam.


Dizem que o Ipupiara aparece quando menos se espera, com a metade do corpo à tona, seus olhos penetrantes vigiando as margens, como um guardião silencioso. Seu corpo é semelhante ao de um indígena moreno, moldado pelas águas e pelo tempo, envolto numa energia que mistura mistério e poder.


Aqueles que se banham nas águas com humildade, que colhem o que precisam e partem em silêncio, não têm o que temer. O Ipupiara os observa, mas não os toca. Porém, os pescadores ambiciosos, que lançam suas redes à noite, que perturbam o descanso dos peixes e o equilíbrio sagrado do rio, estão sujeitos a um destino sombrio. Há relatos de pescadores puxados pelas pernas, afogados nas águas profundas — levados sem aviso.


— O Ipupiara levou mais um — murmuram os anciãos, quando um corpo não retorna da pescaria noturna.


Nas noites em que a lua cheia toca o rio com seus dedos prateados, há quem veja o Ipupiara emergir. Um instante apenas. Um olhar. Depois, um mergulho profundo, e o silêncio volta a reinar.


Com o tempo, no entanto, as aparições se tornaram raras. O rio foi represado. As margens ganharam luzes artificiais. Os motores das máquinas ecoam onde antes se ouvia o canto dos pássaros e o murmúrio dos ancestrais. As águas sagradas estão sendo esquecidas... desconectadas dos humanos.


— Os Ipupiaras e as Yaras não querem mais voltar — dizem os velhos. — O mundo ficou barulhento demais para o sagrado.


Mas mesmo agora, em meio às transformações, permanece um fio de esperança. Uma memória viva. Pois sempre que pronunciamos seu nome — Ipupiara — algo se agita nas profundezas. Um eco espiritual nos alcança. Ele nos ouve. Ele está lá. Os seres do rio não morrem — vivem onde são lembrados.


E enquanto houver quem conte essas histórias, os guardiões das águas continuarão vivos, nadando nos corações de quem escuta.





02. CAIPORA, A PROTETORA DOS ANIMAIS 

 




Nas  profundezas das florestas do Opará, onde o rio canta antigas canções e os ventos sussurram segredos aos ouvidos atentos, habita um ser sagrado. Na terra dos Kariri-Xocó, em Porto Real do Colégio, estado de Alagoas, vive a Caipora – pequena em tamanho, mas gigante em poder e sabedoria.


Dizem os mais velhos, e confirmam os que já se perderam nas trilhas, que a Caipora não é apenas uma lenda: é guardiã da floresta, espírito feminino que protege os animais e castiga quem fere a ordem sagrada da mata.


Ela aparece como uma pequena índia, de olhos vivos e corpo ágil como o do próprio veado que ela protege. Carrega um chicote feito de cipó e sombra. Com ele, pune sem piedade os caçadores que entram na mata sem respeito, sem pedir licença, sem oferecer o fumo sagrado no tronco das árvores, como manda a tradição.


Não se trata de proibir a caça, mas de reconhecer a floresta como um ser vivo, cheio de leis e espíritos. Quem caça por necessidade, com coração humilde e oferenda sincera, pode seguir. Mas quem entra com ganância, com pressa, sem escutar o canto da mata, esse... se perde. Literalmente. Fica rodando em círculo, ouvindo risos nas sombras, caindo e levantando, como se o mundo tivesse se virado do avesso. E é ela — a Caipora — que guia esse castigo.


Em Kariri-Xocó já se ouviram muitas histórias. Caçadores jovens, inexperientes, voltaram assustados, dizendo que viram olhos brilhando entre as árvores, ou que uma mão invisível os puxava para o chão. Alguns não quiseram contar tudo. Preferiram o silêncio dos que aprenderam a lição.


A floresta do Ouricuri, que é sagrada para nosso povo, segue viva porque também fazemos a nossa parte. Ajudamos os protetores invisíveis. Plantamos, cuidamos, cantamos, oramos. E assim, quando caminhamos entre as árvores, ouvimos o canto alegre dos pássaros, o zumbido dos beija-flores, vemos pegadas de antas e cutias. Tudo respira em harmonia.


E se um dia você for à mata do Opará e sentir um arrepio leve na nuca, não se assuste. Talvez seja a Caipora apenas observando. Se estiver em paz com a floresta, ela deixará você passar. Mas lembre-se sempre: peça licença. E leve um pouco de fumo, não como moeda, mas como sinal de respeito.





03. ÇAMARABÓYA A COBRA DO OLHAR MALÍGNO





Dizem os antigos que, antes do machado dos brancos riscar a terra, a floresta era imensa. Ultrapassava o horizonte, onde o céu beija o chão e o rio Opara, o velho São Francisco, serpenteia como veia da terra.


Naquele tempo, entre os galhos e sombras do interior da mata, vivia uma cobra imensa e temida. Os mais velhos a chamavam de Çamarabóya — “Olhos Mal da Cobra”. Não era bicho comum. Seus olhos brilhavam como brasas, e quem os encarasse sentia o corpo obedecer, os pés caminharem sozinhos até o bote fatal. Era como se a cobra puxasse a alma do homem com o olhar.


Mas Çamarabóya não atacava qualquer um. Ela guardava a lei da floresta. Caçadores gananciosos, que matavam além do necessário, que feriam a mata por prazer ou ambição, esses sim eram levados. Os outros, aqueles que caçavam só o bastante pra alimentar a família — um tatu, um veado, um pouco de mel — esses voltavam em paz, como se a mata os conhecesse pelo nome.


Com o tempo, vieram os homens de fora. Cortaram a floresta, abriram estrada, queimaram o que era verde. A caça fugiu. E Çamarabóya também. Os velhos dizem que ela foi embora, sumiu no silêncio da floresta que morreu.


Hoje, quase ninguém se lembra dela. Só em roda de conversa com algum caçador indígena, quando a noite é longa e a mata, mesmo pequena, sussurra. Eles dizem: "Çamarabóya aqui não vive mais."


Mas o que se perde quando a floresta cai? Não é só madeira. Vai junto o canto dos pássaros, o perfume das flores, o segredo das raízes. Vai também a cultura, o espírito do lugar, a memória do povo. Esquecemos os mitos, os seres encantados, os acordos invisíveis que mantêm o equilíbrio.


Tudo na floresta está em relação — planta, bicho, água, homem, lenda. A beleza está no todo. E quem desobedece as leis da convivência perde o direito de viver plenamente.


Talvez Çamarabóya ainda esteja por aí, escondida em algum sonho de mata que restou. Esperando o dia em que voltaremos a ouvir e respeitar os olhos da floresta.





04. MUNEWO ÃMBÁ, O CABOCLO DE CASCO





Nas vastas matas que um dia cobriram as terras do povo Kariri-Xocó, existiam segredos que se escondiam entre as sombras das árvores centenárias. Eram tempos antigos, em que o canto dos pássaros era a melodia do amanhecer e o sussurro do vento trazia histórias de seres que não eram deste mundo.


Juarez Itapó, velho conhecedor das lendas de seu povo, costumava lembrar o relato de seu pai, Kirino, caçador experiente que conhecia cada rastro e cada silêncio da floresta. Certa vez, Kirino subira em um pé de kruirí, esperando pacientemente a passagem de um bando de porcos-do-mato. O dia inteiro passou em vão. Nenhuma presa. Só o calor e os pensamentos.


Mas, ao cair da tarde, algo mudou. O canto dos pássaros cessou de repente, como se o tempo tivesse prendido a respiração. Um silêncio espesso cobriu a mata. Foi então que Kirino ouviu. Ao longe, um som estranho: "Eiii... Eiii..." — gritos que se aproximavam, ganhando força, como se arrastassem o próprio mundo consigo.


As árvores pareciam estremecer. Galhos se partiam. Animais corriam em debandada. O coração de Kirino acelerou.


Do meio da mata surgiu uma criatura indescritível. Um ser gigantesco, de pele encouraçada como casco de jabuti, com um único olho flamejante cravado no meio da testa. Tinha apenas uma perna, mas saltava com a rapidez de um veado. No centro do corpo, o umbigo brilhava em vermelho vivo, abrindo e fechando toda vez que soltava um grito que fazia as folhas tremerem.


Kirino reconheceu de imediato: era ele, Munewo Ãmbá, o temido Caboclo de Casco. Desde menino ouvira as histórias — de como o ser era invulnerável a flechas e balas, de como muitos caçadores haviam desaparecido na floresta ao cruzar seu caminho, deixando esposas e filhos apenas com a dor da ausência.


O Caboclo farejou o ar, procurou ao redor com seu único olho. Não viu Kirino, que permanecia imóvel, colado à árvore, silencioso como o musgo. Não encontrando o que buscava, o ser soltou um último grito aterrador e desapareceu novamente entre os galhos e os caminhos secretos da mata.


Kirino desceu da árvore com o coração disparado e as pernas trêmulas. Correu de volta para a aldeia, sem presa, sem palavras. Quando enfim contou o ocorrido, os mais velhos o cercaram espantados.


— Home, você teve a maior sorte do mundo, disse um.


— Escapou do Caboclo de Casco!


Kirino apenas assentiu:


— Escapei porque tava em cima do pé de kruirí. Fiquei quietinho, nem respirei direito...


Hoje, a grande mata não existe mais. Derrubada pelo tempo e pelas mãos do progresso. Mas dizem que o Caboclo de Casco seguiu adiante, procurando novas florestas virgens para habitar. E quem sabe, entre as sombras de algum outro mundo verde, ainda ecoem seus gritos, assustando quem ousar desafiar os segredos da mata.





05. TDZICUTÉ, A MULHER RAPOUSA





Naqueles tempos em que a aldeia começou a ser chamada de cidade, tudo mudou. As terras foram divididas com cercas e papéis, e nasceu Porto Real do Colégio. Os indígenas ficaram sem chão, sem proteção, e o sofrimento se espalhou feito fumaça no vento.


Dizia o velho Cacique Cícero Irecé, em conversa com o senhor Germídio, que a cidade nasceu mal-assombrada. Era como se as almas da mata e do rio tivessem se revoltado. Mas o que mais assombrava mesmo era a história de Kasturina — uma mulher indígena valente, sábia como o luar sobre o rio.


Dizem que, de tanta dor e revolta por ver sua terra sendo tomada pelos brancos, Kasturina aprendeu com os saberes indígenas a mudar de forma. Quando o sol se escondia e as primeiras estrelas nasciam, ela se transformava em raposa. Sim, uma raposa grande, de olhos de brasa e uivo que cortava a alma. Seu grito atravessava a cidade, gelando o sangue dos invasores.


As pessoas trancavam portas cedo, temendo cruzar com a fera. Muitos homens armados saíam à caça da tal raposa, mas quando pensavam estar perto, ela já havia sumido, uivando em outra rua. Era como vento entre árvores — impossível de pegar.


O senhor Germídio contava que, certa vez, um homem viu a transformação. Kasturina, de pé no terreiro, ergueu os braços à lua e sua pele virou pêlo, seu corpo virou fera. Diziam os antigos: isso aconteceu porque tomaram as terras dos índios, e a terra não aceita ser ferida sem reagir.


O tempo passou. Kasturina envelheceu. Quando partiu para o mundo dos ancestrais, a raposa nunca mais foi vista. A cidade dormiu em paz pela primeira vez. Mas os brancos aprenderam, ou fingiram aprender, a respeitar o povo da terra.


Hoje, os descendentes de Kasturina vivem em paz, numa rua que virou aldeia dentro da cidade. Mas todos sabem: essas terras têm dono. E quem ousar esquecê-lo, poderá ouvir, certa noite, um uivo distante, vindo do coração da mata...





06. GUARAWÁ CARAÍ, O HOMEM LOBO DOS BRANCOS 





O Conto do Homem Lobo



Dizem os antigos que, quando os brancos atravessaram o mar e chegaram a estas terras, não trouxeram apenas ferro, pólvora e novos costumes. Trouxeram também seus medos e maldições.


Entre eles, vinha a história do lobisomem, o homem que, sob a lua cheia, se transformava em fera.


Nas vilas coloniais, muitos falavam de galinhas mortas, de pegadas estranhas na terra e de uivos que gelavam a noite. E esses boatos chegaram até as aldeias.


Certa noite, a lua estava grande e clara no céu. Os cães latiam sem parar, os cavalos batiam as patas no chão, e no galinheiro restavam penas espalhadas e aves mortas.


Os jovens, assustados, correram até o velho Tanuã, que estava diante da fogueira.


— Avô — disseram eles —, que bicho é esse que anda pela noite? É espírito da mata?


O ancião olhou as chamas dançantes e respondeu com voz grave:


— Não, meus filhos. Esse ser não nasceu aqui. É o Guarawá, o Homem-Lobo. Ele veio dos Caraí, os brancos. Carregam essa maldição em sua essência. Entre nós, nunca houve criatura assim. Foi por isso que lhe demos esse nome em nossa língua.


O fogo estalava, e o silêncio se fez ao redor. Os jovens se entreolharam, entre medo e curiosidade, enquanto o vento soprava na mata.


E desde aquela noite, sempre que a lua cheia aparece redonda no céu, o sussurro do Guarawá Caraí percorre a aldeia — lembrança de que até os medos podem atravessar oceanos e ganhar novo nome em outras terras.






07. NAMBÚ - A AVE PROTEGIDA DA CAIPORA 





Era tempo de escassez na aldeia. As matas já não eram como antes, tomadas agora por plantações de cana e pelo gado dos brancos. Os bichos da floresta andavam raros, e o silêncio das árvores parecia carregar uma tristeza ancestral. O índio Kirino, sentindo o peso da necessidade, decidiu partir em busca de caça.


Mas, em vez do velho arco e flecha, companheiro dos tempos antigos, levou consigo uma espingarda — arma barulhenta, de cheiro forte, mas eficaz, aprendida com o branco invasor. Kirino sabia que aquilo desagrava os espíritos da mata, mas a fome não lhe deixava escolha.


Ao adentrar a floresta, caminhou até um pequeno poço d’água, onde os animais silvestres costumavam aparecer. Acomodou-se na espreita, escondido entre as folhas, os olhos atentos.


Foi quando surgiu uma nambú — ave pequena, de andar sereno, que se aproximou calmamente da água. Kirino, com os olhos fixos, ergueu a espingarda e atirou. Mas a ave nada sofreu. Espantado, ele recarregou a arma e atirou outra vez. Nada. A nambú apenas bateu as asas suavemente, como a zombar de sua tentativa. Uma terceira vez tentou, e de novo, a ave saiu ilesa, serena, intocada pelo chumbo.


Com o coração apertado e os olhos arregalados, Kirino sentiu um arrepio subir pela espinha. Nunca, em toda sua vida, havia visto algo assim. Abandonou a tocaia e voltou à aldeia sem nada trazer. Ali, reunido com os anciãos, contou o que presenciara.


O Cacique Otávio Nidé ouviu com atenção e, após breve silêncio, falou:


— Kirino, meu irmão, não foi uma ave qualquer que você encontrou. A Caipora, protetora da floresta e das caças, tomou a forma da nambú para te dar um aviso. A espingarda é arma do branco, e perturba a harmonia da mata. O barulho assusta os espíritos, e a floresta se entristece.


O Cacique continuou, com voz firme e serena:


— Se queremos caçar para alimentar nosso povo, devemos primeiro pedir licença à Caipora. E contar que estamos com necessidade. Só assim, com respeito, ela talvez aceite nossa súplica. Mas jamais devemos esquecer: somos filhos da floresta, e não devemos virar contra ela as armas que nos foram impostas.


Desde esse dia, Kirino guardou sua espingarda. Voltou ao arco e flecha, e, antes de qualquer caçada, deixava oferenda e palavra à Caipora, lembrando que a floresta vive, sente e protege.





08. ANRAN E NIENUO, O SER DE LUZ E O DAS SOMBRAS 





 Um Conto do Ser de Luz e o das Sombras



Foi numa noite de lua clara.


O povo se reunia em volta da fogueira, e as brasas brilhavam como olhos de espírito.


As crianças corriam, os jovens escutavam, e os mais velhos guardavam silêncio.


Então um menino, chamado Iary, se aproximou do ancião.


E perguntou com voz curiosa:


— Avô, o que é Anran? E o que é Nienuo?


O ancião respirou fundo.


Olhou para o céu, olhou para o fogo, e disse:


— Escuta, meu neto.


Quando nascemos, todos nós somos Anran.


Anran é o humano verdadeiro.


Anran vive em comunidade, divide o alimento, compartilha o trabalho, cuida da família, honra a natureza.


O coração de Anran é cheio de amor, amizade e respeito.


Quem caminha como Anran, caminha na luz do Criador e junto aos ancestrais.


O menino ouviu, mas quis saber mais:


— E Nienuo, avô? Quem é Nienuo?


O ancião fechou os olhos, como quem fala com os antigos, e respondeu:


— Nienuo é o humano que se perdeu.


É aquele que abandona a comunidade, que escolhe o ódio, a violência, o egoísmo.


No início ainda é humano... mas pouco a pouco vai esquecendo o sagrado.


Pouco a pouco vai regredindo.


Pouco a pouco vai se tornando sombra.


E quando a sombra toma conta, ele já não é Anran.


Ele é Nienuo.


O menino ficou assustado:


— Então, avô, Nienuo também já foi gente?


E o ancião respondeu:


— Sim, meu neto. Todo Nienuo já foi Anran um dia.


Mas esqueceu quem era.


Esqueceu o Criador.


Esqueceu os ancestrais.


E ao esquecer... tornou-se prisioneiro da escuridão.


O fogo estalou alto, como se concordasse com as palavras.


E o ancião disse ainda:


— Por isso, Iary, escuta bem:


Quem deseja ser Anran deve escolher a cada dia.


Escolher a vida, o amor, a amizade, a partilha.


Escolher o caminho do Criador.


O menino ergueu a cabeça e prometeu:


— Eu serei Anran, avô.


Para que meus passos sejam lembrados pelos ancestrais.


Então o ancião sorriu.


E a lua sorriu.


E as estrelas também sorriram.


E naquela noite, todos souberam:


Enquanto houver quem escolha ser Anran,


Nienuo jamais vencerá.






09. DUNHÀ, A FOGUEIRA DO MORTO 





Na aldeia Kariri-Xocó, desde tempos que os mais velhos não sabem contar, existe um costume que atravessa as gerações como o próprio rio que serpenteia a mata. Quando alguém parte desta vida, a família do finado acende uma fogueira na porta de sua casa, uma chama que ilumina a noite e aquece as memórias.


Assim foi com o velho Aruanã, que naquela tarde descansou sua última vez sob a sombra da gameleira. Quando a noite caiu, a fogueira já ardia firme diante de sua porta. Um a um, os membros da tribo começaram a chegar, como se atraídos pelo calor das brasas e pelo chamado silencioso do finado.


Entravam na casa e ali ele estava, estendido na sala, com os pés apontando para a porta — sinal de que sua alma havia partido e jamais retornaria ao mundo dos vivos. Ninguém falava alto; apenas os olhos se cruzavam, e os passos lentos cercavam o corpo, respeitosos, atentos ao rito que se cumpria.


Do lado de fora, ao redor da fogueira, o povo se acomodava como mandava a tradição: uns traziam cadeiras de madeira, outros esteiras para se deitarem junto às crianças. Alguns preferiam permanecer em pé, sentindo o calor do fogo misturado ao frio da madrugada.


E então começava a roda de histórias.


Falavam de Aruanã como ele fora: forte nas pescarias, habilidoso na roça, incansável nos mutirões e caçadas que enfrentava mata adentro. Os mais velhos, companheiros de sua juventude, lembravam as travessuras de menino, os primeiros trabalhos, os cantares nas festas, as lutas e os feitos que marcaram sua vida entre o povo.


Enquanto isso, isso, a família cuidava dos que ali velavam. Colocavam o café para ferver sobre o fogo, serviam pães e entregavam os canecos de alumínio, onde o café fumegante espantava o sono e aquecia o corpo — “bofes quentes”, como gostavam de dizer.


O terreiro se enchia. Uns resistiam ao sono contando causos, outros, vencidos pelo cansaço, adormeciam sobre as esteiras junto às crianças embaladas pelo crepitar das chamas. E assim a noite seguia, até que, aos poucos, a escuridão dava lugar ao primeiro brilho do dia.


Quando o Sol começava a nascer, todos sabiam: era hora de ir para casa, tomar banho e se preparar para acompanhar o morto em sua última caminhada até a terra.


Na aldeia, ninguém via a "Fogueira do Morto" apenas como um momento de tristeza. Era, antes, um tempo de lembrança, de memória viva. Ali, ao redor do fogo, se celebrava não apenas a morte, mas a vida que Aruanã deixara marcada na cultura da tribo — seja pela sua luta, pela arte, pelo canto, pela dança, ou simplesmente pelo fato de ter sido quem foi: um homem, com virtudes e falhas, mas que, como as brasas daquela fogueira, jamais seria totalmente apagado.






10. NATIANKIÉ, VISÃO KARIRI PÓS A MORTE E OUTRAS TRADIÇÕES ANTIGAS 





Conto de Visão Sobre Pós Morte



A brisa da tarde soprava sobre a aldeia, trazendo o som das cigarras e o cheiro de terra molhada. Namara, uma jovem curiosa e cheia de perguntas, aproximou-se do ancião Kamyá, que descansava à sombra de um pé de jatobá. Seus olhos, já cansados pelo tempo, guardavam a memória de muitas gerações.


— Ancião Kamyá — disse Namara com respeito —, tenho estudado a espiritualidade dos povos indígenas e também o que os Caraí, os brancos, falam sobre a vida e a morte. Mas o que eu mais desejo saber é: para onde vamos quando deixamos este mundo?


O velho sorriu, ajeitou o cachimbo de barro e respondeu com voz serena:


— Minha filha, cada povo tem seus caminhos e suas moradas sagradas. Mas nós, do povo Kariri, sabemos que, quando o sopro da vida se despede, seguimos para Natiankié, a Aldeia Espiritual dos Antepassados.


Namara franziu o rosto, intrigada, e pediu que lhe contasse mais.


— Em Natiankié — continuou Kamyá —, todos se reencontram. Os que vieram antes de nós vivem lá, dançam em roda, caçam, pescam e cuidam da terra sagrada, como faziam aqui. É uma aldeia sem dor e sem fome, onde o fogo nunca se apaga e a memória dos ancestrais se mantém viva. Lá, os espíritos nos observam, aconselham e fortalecem nosso caminho neste mundo.


Um silêncio respeitoso tomou conta do espaço. O coração de Namara se aqueceu com aquelas palavras, como se pudesse ouvir os tambores de Natiankié ecoando além do tempo.


Ela agradeceu ao ancião com um gesto de reverência. No entanto, sua curiosidade a levou a buscar ainda mais. Partiu para estudar outras tradições, navegando pelas histórias da humanidade, comparando caminhos e crenças, como quem costura um grande manto de sabedoria.


E assim começou a viagem de Namara entre mundos, onde a aldeia dos Kariri se encontrava com o Egito, a Grécia, Roma, os Celtas, os Hebreus e os Germânicos. Mas no fundo, em todos os povos, ela via a mesma chama: a esperança de que a vida não termina, apenas muda de morada.





Autor dos Contos: Nhenety Kariri-Xocó 





🌿 APÊNDICES / GLOSSÁRIO / INFORMAÇÕES ADICIONAIS


(Versão pronta para entrar no livro após a Introdução)


Apêndice A — Glossário de Termos Kariri-Xocó e Conceitos Culturais



Ãmbá — o nome de origem Kariri que vem de Sãmbá "cágado", réptil que tem casco ou carapaça. 


Anran — o humano verdadeiro, vive em comunidade, divide o alimento, compartilha o trabalho, cuida da família, honra a natureza.


Caipora — a Protetora dos dos animais e árvores da floresta, punindo com um cipó invisível surrando aqueles que não respeitar a natureza. 


Caraí — o homem branco, europeu, portugueses, pessoas com muito saber, magia, poderoso.


Çamarabóya — “Olhos Mal da Cobra”, neologismo do Tupi que vem do Cá "olho", Mara "mal" do Kariri e Bóya "cobra" também do Tupi, pelos Kariri-Xocó. 


Dunhá — a "Fogueira do Morto", o fogo que se faz defronte a casa do falecido a noite, onde as pessoas (sentinelas) vai fazer sua última homenagem. 


Guarawá — o Homem-Lobo, aquele que se transforma em lobo, tem origem no Tupi com neologismo Kariri-Xocó, vem de Guara "animal" e Awa "Homem adulto".


Ipupiara — o Ser Que Surge das Águas Profundas; para alguns, é o Negro D’Água,  outros, apenas o Homem da Água. 


Juremá — Árvore sagrada e também nome de um sistema espiritual ancestral presente entre diversos povos indígenas do Nordeste.


Kariri-Xocó — Povo indígena da região de Porto Real do Colégio (AL), resultado de ancestralidades Kariri e Xocó, com forte tradição oral e espiritual.


Munã — Sabedoria antiga transmitida pelos mais velhos, vinculada ao tempo do aprendizado e da observação.


Munewo — o espírito de caboclo, do indígena, da mistura entre nativos e portugueses. 


Nambú — a ave do sertão nordestino, também conhecida por Inambu, preferida pelos caçadores. 


Natiankié — a Aldeia Sagrada Espiritual, onde vive os antepassados, a palavra é um neologismo Kariri-Xocó, vem de Natiá "aldeia" e Arankié "céu".


Nienuo —  o humano que se perdeu, no início ainda é humano... mas pouco a pouco vai esquecendo o sagrado.


Tidzicuté — A Mulher Raposa, um neologismo Kariri-Xocó que vem de Tidzi "mulher" e Cuté "cachorro, rapouza", pessoa que se transforma num canídeo. 


Toré — Dança indígena sagrada, com cantos e maracás, presente em várias etnias do Nordeste, símbolo de resistência cultural.



Apêndice B — Notas Sobre os Seres, Mitos e Tradições


Sobre os Seres Encantados

As entidades presentes nos contos refletem a tradição ancestral e a visão de mundo Kariri-Xocó, onde cada animal, cada rio, cada árvore possui espírito e caminho próprio.


Sobre a Travessia do Tempo

A estrutura espiritual Kariri-Xocó entende que o tempo não é linear, mas circular: passado, presente e futuro coexistem nos passos do Toré e nas histórias dos mais velhos.


Sobre a Relação com a Natureza

Nos contos, a natureza não é cenário — ela é personagem viva, consciente, dona de suas regras.


Apêndice C — Notas do Autor


Estas histórias são parte de um contínuo caminho espiritual, guardadas na memória dos ancestrais e renovadas a cada nova geração. São contos que surgem do chão, do rio, da floresta, e também da experiência viva do povo Kariri-Xocó.






🌿 DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR



Nhenety Kariri-Xocó

Filho do povo Kariri-Xocó de Porto Real do Colégio, em Alagoas, guardião da palavra ancestral e contador de histórias.

Desde jovem, cresceu ouvindo narrativas dos mais velhos, aprendendo a força dos Espíritos, o respeito à natureza e o valor da memória oral.


Poeta, cordelista, pesquisador das tradições indígenas, Nhenety dedica sua escrita à preservação do espírito do seu povo e à construção de pontes entre mundos — o antigo e o moderno, o espiritual e o cotidiano.


Suas obras transitam entre contos, cordéis, estudos culturais e narrativas que honram a resistência e a sabedoria indígena.

É também autor de diversas coletâneas e criador de projetos que unem ancestralidade, poesia e imaginação viva.





🌿 ORELHA DO LIVRO (ESQUERDA)



(Texto que aparece na aba interna esquerda da capa)


WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ — RUA DOS ÍNDIOS, TRAVESSIA DO TEMPO

reúne contos ancestrais que caminham como passos de Toré entre mundos, mostrando seres, mistérios e sabedorias que habitam as terras e rios do povo Kariri-Xocó.


Nesta coletânea, os Espíritos surgem não apenas como personagens, mas como guardiões culturais que acompanham o leitor em cada página.

É um livro para ser sentido com o corpo, com o coração e com a memória.


A obra convida a atravessar o portal da imaginação indígena, onde cada história revela algo da força espiritual, da relação com a natureza e da identidade viva de um povo que resiste pelo canto e pela palavra.





🌿 ORELHA DO LIVRO (DIREITA)



(Texto que aparece na aba interna direita da contracapa)


Nhenety Kariri-Xocó — poeta, contador de histórias e guardião da tradição oral — apresenta aqui uma coletânea que honra seus ancestrais e amplia o horizonte literário indígena contemporâneo.


Sua escrita combina suavidade e firmeza, unindo poesia, mito e espiritualidade.

Cada conto deste volume é um fragmento de mundo, um sussurro vindo da mata, do rio, da aldeia e do tempo antigo que nunca se quebra.


Este livro é uma celebração da continuidade cultural, um espelho para quem deseja conhecer a visão indígena sobre o invisível, o espírito e o sagrado.







Autor: Nhenety Kariri-Xocó 



WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ, O ESPORTE E AS BRINCADEIRAS, Contos – Volume 11 – Coletânea, Nhenety Kariri-Xocó






📄 FALSA FOLHA DE ROSTO



WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ,

O ESPORTE E AS BRINCADEIRAS

Contos – Volume 11 – Coletânea


Nhenety Kariri-Xocó




📄 VERSO DA FALSA FOLHA DE ROSTO



Esta é uma obra literária de autoria de

Nhenety Kariri-Xocó,

guardião da palavra que atravessa o tempo

e ilumina o caminho dos que aprendem pela escuta.


Todos os direitos pertencem ao autor.

Proibida a reprodução total ou parcial sem autorização expressa.





📄 FOLHA DE ROSTO



WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ,

O ESPORTE E AS BRINCADEIRAS

Contos – Volume 11 – Coletânea


Por

Nhenety Kariri-Xocó

Povo Kariri-Xocó – Porto Real do Colégio (AL)


Cidade de publicação: __________

Ano de publicação: 2025





📄 FICHA CATALOGRÁFICA (MODELO BASE)



(Modelo de referência para futura ficha oficial por bibliotecário.)


Kariri-Xocó, Nhenety.

Woroy História, Kariri-Xocó, O Esporte e as Brincadeiras: contos – Volume 11 – Coletânea / Nhenety Kariri-Xocó. – [Cidade], 2025.

___ p. ; il.


ISBN: (reservado)


Literatura indígena brasileira.


Contos tradicionais.


Cultura Kariri-Xocó.


Esporte indígena.


Brincadeiras tradicionais.


Narrativas orais.


I. Título.

II. Kariri-Xocó, povo.

CDD: 869.93

CDU: 821.134.3-31






📄 DEDICATÓRIA



Dedico este livro

aos mestres do corpo e da alegria,

que ensinaram a correr, pular, brincar

e transformar movimento em celebração.


Dedico às crianças e jovens Kariri-Xocó,

que fazem do esporte um território de união

e das brincadeiras um caminho

para fortalecer o espírito do nosso povo.


Dedico aos antigos,

que mesmo sem quadras, bolas ou pistas,

sabiam que o corpo é templo,

e que brincar também é aprender a viver.


E dedico, com respeito profundo,

a todos que reconhecem

que a cultura do brincar

é tão sagrada quanto a cultura de rezar.





📄 AGRADECIMENTOS



Agradeço aos Anciãos e Anciãs que preservam a memória viva do nosso povo, relembrando que o conhecimento não nasce nos livros, mas nos conselhos compartilhados à sombra das árvores sagradas.


Agradeço às lideranças Kariri-Xocó, que mantêm acesa a chama da resistência, garantindo que nossas tradições, nossas brincadeiras e nossos modos de celebrar o corpo continuem florescendo entre as novas gerações.


Aos pais, mães e mestres, que transmitem, com paciência e carinho, as brincadeiras que moldam a infância e fortalecem a identidade.


Às crianças e jovens, que correm, pulam, dançam e reinventam o mundo todos os dias, lembrando-nos que o futuro tem pés ligeiros e coração alegre.


Agradeço também aos pesquisadores, aliados e guardiões da cultura que respeitam a voz indígena e reconhecem o valor das histórias que brotam da terra e da tradição.


E agradeço, sobretudo, ao Espírito Ancestral que nos guia, que protege nossas jornadas e que inspira cada palavra que aqui repousa.





📄 EPÍGRAFE



"Brincar é aprender o caminho do mundo.

Mover o corpo é lembrar que somos parte da Terra.

E contar histórias é manter viva a respiração dos antigos."

— Sabedoria Kariri-Xocó





📄 SUMÁRIO


Prefácio


Apresentação


Introdução



Contos 



01. Byghitó, Jogar Pé Na Coisa Redonda;


02. Cropodzú, Lutar na Água;


03. Uchenhekié, O Tempo de Brincar;


04. Ubapiné Dzurió, Canoinhas da Lagoa;


05. Dabukasá, A Galinha Gorda; 


06. Hebacabarú, O Cavalo de Pau;


07. Ibapiné Benhekié, Carrinhos de Brincar;


08. Duboherí Benhekié Bunhá, O Mestre dos Brinquedos de Barro;


09. Amínhekié, Brincar de Cozinhada;


10. Tsepinehekié, Gente Pequena de Brincar. 



Considerações Finais


Sobre o Autor


Agradecimentos Finais


Orelha do Livro


Capa e Quarta Capa 





📄 PREFÁCIO



Este volume da coleção Woroy História, Kariri-Xocó convida o leitor a entrar em um território onde o corpo, a alegria e a tradição se entrelaçam.

Aqui, o esporte e as brincadeiras não são apenas passatempos: são ferramentas de resistência, formas de educação e caminhos para compreender a alma de um povo.


Cada conto desta coletânea guarda um pedaço da infância indígena — aquela que corre livre entre o rio e a aldeia, que aprende com a natureza, que molda o espírito enquanto fortalece o corpo.

Nestas páginas, o leitor sentirá a força de uma cultura que transforma movimento em sabedoria e transforma brincadeira em ritual.


O autor, Nhenety Kariri-Xocó, mais uma vez demonstra sua sensibilidade como contador de histórias e guardião da memória. Sua escrita é ponte entre passado e presente, entre tradição e contemporaneidade, entre a aldeia e o mundo.


Que este livro inspire respeito, reflexão e encantamento.

Que cada leitor reencontre aqui a criança que um dia foi e aprenda a olhar o mundo com o mesmo brilho e liberdade.





📄 APRESENTAÇÃO



O povo Kariri-Xocó é um povo de caminhada longa, de corpo firme e de espírito alegre.

Desde tempos antigos, entre o Velho Chico e as aldeias que resistem, as brincadeiras, os jogos e os desafios físicos serviram como escola, celebração e fortalecimento coletivo.


Este livro apresenta uma coleção de contos que revelam esses ensinamentos:

como se aprende a correr ouvindo os conselhos dos mais velhos;

como se descobre a coragem através de jogos tradicionais;

e como cada brincadeira carrega dentro de si uma lição sobre convivência, disciplina, respeito e ancestralidade.


A obra nasce do compromisso de registrar a cultura viva, as memórias e os saberes transmitidos de geração em geração.

É um convite para que o mundo conheça a riqueza lúdica do povo Kariri-Xocó e compreenda que o brincar é também um ato de preservar a identidade.





📄 INTRODUÇÃO



O esporte e as brincadeiras sempre fizeram parte da construção social e espiritual dos povos indígenas. Entre os Kariri-Xocó, correr, saltar, disputar, cooperar e brincar são ações que ultrapassam o simples gesto físico.

São práticas que moldam o caráter, fortalecem o corpo e aproximam o indivíduo das energias da natureza.


Neste volume, apresento contos que nasceram da tradição oral, das memórias de infância, das palavras dos antigos e da vivência cotidiana na aldeia.

São histórias que atravessam o tempo e se conectam com o presente, revelando como cada gesto — por mais simples que pareça — carrega dentro de si um significado profundo.


Aqui, o leitor encontrará narrativas que dialogam com o rio, com a mata, com a aldeia, com os rituais e com o espírito lúdico do nosso povo.

Cada conto é uma janela que se abre para a sabedoria Kariri-Xocó, mostrando que o aprendizado nasce do corpo em movimento, da alegria compartilhada e da comunhão com nossos ancestrais.


Que este livro seja caminho, memória e brincadeira.

E que cada leitor encontre nestas páginas algo de sua própria infância, algo de sua própria jornada, algo de sua própria alma.





📄 CONTOS COMPLETOS 



01. BYGHITÓ, JOGAR PÉ NA COISA REDONDA 





Um Conto Sobre o Futebol na Aldeia 



Na beira do Rio São Francisco, onde o vento sopra histórias antigas e o tempo caminha com passos de espírito, nasceu uma paixão que balança os corações como folhas nas árvores da aldeia: o Byghitó, “Jogar Pé na Coisa Redonda”.


Foi nos anos de 1950 que a novidade chegou com força a Porto Real do Colégio, cidade marcada pela presença ancestral dos Kariri. O povo ainda vivia reunido na Rua dos Índios, mas mesmo com a luta diária por respeito e identidade, seus olhos brilhavam diante daquela coisa redonda que rolava pelo chão e fazia os pés dançarem.


Na língua Kariri, chamaram o novo jogo de Byghitó — nome bonito e verdadeiro:


By, que é o "Pé".


Canghité, a "Coisa".


Totó, o "Redondo".


Naquele tempo, formou-se o primeiro time da cidade: o Colegiense. Entre os que vestiram a camisa, estava Miguel Suíra, indígena de coragem, que driblava como se estivesse traçando caminhos no mato e corria como quem foge de espírito antepassado. Não demorou para Miguel se destacar. Seus pés, acostumados com o chão batido da aldeia, fizeram história também nos campos profissionais de Alagoas.


Os anos passaram como o rio, sempre em movimento. Vieram outros times, outras camisas, e os Kariri estavam lá — firmes, chutando com força e alma. Nasceu o Cruzeiro da Rua da Aurora, onde muitos indígenas mostraram sua força. Depois veio o Kariri Esporte Clube, fundado em 1975, feito com suor, sonho e união. Mais tarde, em 1980, foi a vez do Esporte Clube Guarani, fundado por filhos da terra e do tronco ancestral.


E a paixão virou tradição.


O Guarani conquistou três campeonatos municipais — tricampeão com orgulho. O Kariri também levantou taça. E até o time PSG da Aldeia, com nome moderno, mostrou que os pés da aldeia ainda dançam bem com a bola.


Hoje, aos domingos, o campo de futebol da aldeia enche-se de vida. Crianças, jovens e anciãos se reúnem. Não é apenas um jogo. É um ritual de alegria. Um momento em que a cultura ancestral encontra o presente. Cada chute é memória. Cada gol é vitória sobre o esquecimento.


Porque para os Kariri-Xocó, o Byghitó não é só esporte.


É parte do coração.


É identidade correndo no campo.





02. CROPODZÚ, LUTAR NA ÁGUA 





Um Conto Espotivo Kariri-Xocó 



Era verão no Opará. O sol brilhava como um olho maravilhado sobre as águas, e o vento que descia pelas margens do rio trazia risos, cantigas e cheiro de peixe fresco. As pedras aquecidas pareciam acolher os pés de quem ali passava, e a areia morna anunciava o tempo das brincadeiras.


Ali, entre capinzais e remansos, o povo Kariri-Xocó se reunia. Crianças corriam com os cabelos ao vento, as mulheres lavavam roupa e trocavam histórias, e os mais velhos observavam em silêncio, com os olhos cheios de lembranças. Era tempo de Cropodzú — o tempo de lutar na água.


— Cropodzú! — gritou um menino, com os olhos acesos de alegria.


Logo se formaram os pares. Dois rapazes ergueram os amigos sobre os ombros, firmes até a cintura dentro d’água. As moças, rindo, fizeram o mesmo. Os corpos reluziam ao sol, e os corações pulsavam como tambores. O desafio era simples, mas ancestral: derrubar o outro com equilíbrio, força e risos. Quem caísse, ria também — pois ali, vencer era participar.


O nome da brincadeira ecoava como encantamento: cropobó, que é lutar, e dzú, que é água — palavras vivas da língua Kariri. Cropodzú era mais que um jogo. Era memória líquida, era elo entre os jovens e os antigos, era o modo do rio ensinar.


Sempre que o calor esticava as horas, as lutas aquáticas se multiplicavam. E o Opará acolhia todos com seu corpo d’água generoso. O rio era tudo: peixe, banho, conversa, sustento e festa.


Mas o tempo mudou.


Veio a água encanada em 1997. Vieram as barragens, os muros frios das hidrelétricas. O Opará, antes cheio de voz e vida, foi silenciando. Suas águas recuaram, sua alegria também. O Cropodzú foi ficando raro, feito canto esquecido entre as pedras.


Hoje, escrevo esta história para que os ventos a levem às novas gerações. Para que as águas escutem e, um dia, voltem a cantar. Que o Cropodzú, luta brincante das águas, nunca desapareça da alma do nosso povo.


Porque lutar na água é também lutar pela memória.




03. UCHENHEKIÉ, O TEMPO DE BRINCAR 





Nas margens serenas do Opará, entre árvores frondosas e os caminhos de areia branca, viviam Aruã, Jaci e Giriçá . As estações marcavam o tempo, e cada mudança na natureza era uma nova oportunidade de brincar, aprender e honrar as tradições dos Kariri-Xocó.



O Tempo da Tanajura



Certa manhã, quando o chão da aldeia começou a se encher com as grandes formigas aladas, as crianças souberam: havia chegado o tempo da tanajura. Com ramos de mato nas mãos, Aruã correu em direção ao formigueiro, puxando Giriçá e Jaci.


— Vamos! Temos que ser rápidos antes que elas entrem todas no buraco! — gritava, animado.


Enquanto sacudiam os galhos e entoavam a cantiga tradicional:


— "Cai, cai tanajura, na panela da cordura!"


as formigas rainhas, gordas e brilhantes, caíam na peneira trançada que Jaci segurava com cuidado.


O velho Txopó, sentado sob a sombra do cajueiro, assistia às risadas e à correria.


— Lembrem-se — alertou —, peguem só o que for necessário. A natureza sempre dá, mas também precisa descansar.


As crianças assentiram respeitosamente. Ao final da coleta, levaram as tanajuras para a avó Cauaí, que as prepararia para a culinária tradicional. E, enquanto o cheiro das formigas assadas se espalhava pela aldeia, Jaci sussurrou:


— Como é bom o Uchenhekié… cada tempo tem sua alegria.



O Tempo do Milho



Dias depois, o calor trouxe o tempo do milho maduro. Os milharais se tingiram de dourado, e os cabelos louros das espigas balançavam suavemente ao vento. Jaci, com olhos brilhantes, correu entre as plantas, procurando as menores espigas.


— Olha, Aruã! Esta tem os cabelos mais lindos! — disse, arrancando uma espiga e começando a trançar as folhas, transformando-a numa bonequinha.


Enquanto isso, Giriçá e Aruã recolhiam palhas secas para fazer petecas. Com a ajuda do pai de Aruã, aprenderam a enfeitar as bolas com penas de pato, deixadas na margem pelo caçador da aldeia.


— Vamos ver quem consegue manter a peteca no ar por mais tempo! — desafiou Giriçá.


— Eu aceito! — respondeu Aruã, já se posicionando.


As palmas batiam, as petecas voavam e as risadas ecoavam pelos campos de milho. O velho Txopó, passando devagar, parou para assistir.


— Vocês sabem por que batemos a peteca com as mãos? — perguntou.


As crianças ficaram em silêncio, curiosas.


— Porque é o jeito do nosso corpo se unir ao vento. Cada batida é como um sopro, mantendo a vida do brinquedo… e nos lembrando que, como o milho, também temos que crescer fortes e flexíveis.


As crianças sorriram, guardando mais aquela lição.



O Tempo das Canoas



Quando os ventos começaram a soprar do sertão, eles sabiam: era o momento de soltar as ubairim nas águas quietas da lagoa dzurioá.


O velho Txopó chamou-os antes de partirem:


— Venham cá. Quero lembrar-lhes que, ao lançarem as canoas, lancem também seus desejos.


Aruã, Jaci e Giriçá se aproximaram e ouviram atentos, como sempre.


Na lagoa, cada um soltou sua ubairim com um pedido silencioso. Aruã desejou ser um grande canoeiro, Giriçá quis ser o melhor caçador, e Jaci, com ternura, pediu:


— Que eu aprenda a fazer as panelas de barro mais bonitas da aldeia…


As canoas dançaram sobre as águas, empurradas pela brisa suave.



O Tempo do Barro



Pouco depois, quando o sol ficou mais quente, marcando o tempo da cerâmica, Jaci e outras meninas começaram a moldar o barro molhado à beira do Opará.


— Veja, Aruã! Minha runhuhupi está quase pronta! — exclamou, mostrando a pequena panela modelada com capricho.


— Vai ser a melhor da aldeia! — elogiou o irmão, orgulhoso.


Enquanto isso, Giriçá tentava, desajeitadamente, fazer uma panela também, arrancando risadas de todos.


O velho Txopó se aproximou mais uma vez:


— No tempo do Uchenhekié, tudo se transforma… O barro vira panela, o milho vira boneca, o vento vira canoa… e vocês, crianças, viram adultos, carregando nossas tradições.


As crianças ficaram em silêncio, olhando para o ancião com respeito e carinho.


E assim, entre brincadeiras, risadas e ensinamentos, o Uchenhekié se renovava a cada estação, como sempre foi e como sempre será, nas margens do sagrado Opará.



A Benção de Txopó



Naquela tarde, quando o sol se despedia tingindo o céu de vermelho e dourado, as crianças se reuniram ao redor do velho Txopó, sentadas sobre a areia morna, com os pés ainda úmidos da lagoa.


O ancião ergueu o cajado e, com a voz grave e terna, disse:


— Uchenhekié… o tempo das brincadeiras… é também o tempo de aprender a ouvir a voz da natureza. O Opará fala com sua correnteza, o vento com seu sopro, o barro com seu silêncio… e cada brincadeira que vocês fazem é um modo de lembrar quem somos.


Fez uma pausa, olhando para cada um, como se enxergasse não apenas as crianças, mas os adultos que elas um dia seriam.


— Nunca deixem de brincar… porque quem brinca com a natureza, respeita e protege a vida. E quem respeita, permanece… assim como os nossos ancestrais permanecem em nós.


As crianças se entreolharam em silêncio, com um sorriso calmo, sentindo o peso doce das palavras.


Então, Txopó estendeu as mãos abertas, como quem oferece um presente invisível:


— Que o Uchenhekié nunca falte em seus corações. Que o tempo da brincadeira seja sempre também o tempo do saber, da alegria e do amor pela terra.


As cigarras começaram a cantar entre as árvores, como se respondessem à bênção. As crianças, então, se levantaram, correram de volta para a aldeia, levando consigo não apenas seus brinquedos, mas a certeza de que, enquanto houvesse o ciclo das estações, sempre haveria o tempo de brincar… e de viver plenamente junto ao Opará.


E, assim, o Uchenhekié seguia, como o rio: eterno, renovado a cada curva, a cada estação, a cada geração.




04. UBAPINÉ DZURIÓ, CANOINHAS DA LAGOA 





Um Conto Sobre as Canoinhas de Brinquedo



Na velha Rua dos Índios, ainda ecoam os murmúrios do tempo na Lagoa do Cordeiro — Dzurineiró, como os antigos Kariri-Xocó a chamam em sua língua. Ali, entre as águas calmas e as memórias guardadas, resistem não só algumas moradias indígenas, mas também lembranças vivas de uma infância moldada pelas mãos da terra, da madeira e da água.


Era antes de 1978. A lagoa fervilhava de risos, brincadeiras e sonhos flutuantes. As crianças, pequenas e inquietas, se reuniam às margens para brincar de Ubapiné Dzurió — “Canoinhas da Lagoa”, como se dizia em voz clara e alegre. “Ubapiné” vinha da antiga palavra tupi “ubá”, que significava canoa, enquanto “Dzurió” nascia do reflexo das águas da lagoa onde o vento soprava histórias ancestrais.


Para dar vida à brincadeira, havia um ritual de respeito e admiração. As crianças corriam até Zé Taré, o velho mestre da madeira, um marceneiro indígena conhecido por sua sabedoria na arte de esculpir. Com mãos pacientes e olhos que pareciam ver dentro dos troncos, ele escolhia cuidadosamente raízes leves da timbaúba — aquela árvore do nome tupi cujas raízes brancas, chamadas tinga, boiavam como sonhos prontos para navegar.


Ali, nas mãos de Zé Taré, nasciam as canoinhas: pequenas, leves, moldadas com delicadeza e sempre prontas para correr as águas como se tivessem alma. As crianças então enfeitavam suas embarcações com pedacinhos de pano — velas improvisadas — ou penas de galinha e peru, recolhidas do quintal. Pintavam as canoinhas com cores vivas, traçando nelas símbolos e esperanças.


A grande corrida começava. Todos esperavam o vento certo, e com um gesto solene, as canoinhas eram lançadas à lagoa. Quem atravessasse primeiro a extensão da Dzurineiró, levada pela brisa, ganhava o orgulho de ser o campeão daquele dia. Mas, na verdade, todos ganhavam. Porque naquela corrida, mais que competição, o que corria era a memória do povo Kariri-Xocó.


Era uma forma das crianças reviverem em miniatura as canoas do grande Opará — o São Francisco — que, todos os anos, no último domingo de fevereiro, cortava as águas em homenagem ao Bom Jesus dos Navegantes. Nessa festa, os adultos deslizavam em grandes canoas de panos coloridos, revivendo uma tradição ancestral dos povos ribeirinhos.


Hoje, aqui e acolá, ainda se pode encontrar uma ubapiné esquecida, guardada com carinho por alguém que não deixou morrer a lembrança. Mas a corrida de canoas grandes ainda vive, cortando as águas do Opará como testemunho vivo da resistência e da beleza dos povos do rio.


Porque enquanto houver correnteza, vento e memória, haverá também canoinhas cruzando a lagoa.





05. DABUKASÁ, A GALINHA GORDA 





Um Conto Sobre a Natação 



Na beira do grande Opará, onde o rio corre do norte para o sul até encontrar o mar, vive nosso povo Kariri-Xocó. As canoas deslizam como flechas na água, os peixes pulam entre as pedras, e as garças brancas dançam no céu.


É ali, nos barrancos da aldeia, que a alegria da infância faz morada.


Quando o sol esquenta a areia e o vento canta nos bambuzais, a meninada desce correndo em festa. É hora de brincar de Dabukasá, a Galinha Gorda. Um de nós se oferece, pega um pedaço de pau e grita com força:


— Galinha gorda!


E todos respondem:


— Gorda!


O voluntário continua:


— Para o meio ou na beirada?


E a criançada, num coro só:


— Para o meio!


Então, o pedaço de pau é lançado longe, nas águas do rio, como um desafio. Começa a corrida! Quem alcançar primeiro o pau boiando vence a brincadeira. Risos, respingos, gritos de vitória. A alma da infância molhada nas águas do Opará.


Mas essa história não é só brincadeira.


Certa tarde, o menino Tarinã, curioso como são os bons aprendizes, se aproximou do velho Marã, que estava sentado à sombra do jatobá.


— Senhor Marã, disse o menino com respeito, me disseram que a galinha, a dabuká, foi trazida pelos brancos. E essa nossa brincadeira, a Dabukasá, também veio deles?


O velho sorriu com os olhos fechados, como quem busca nas raízes do tempo uma resposta.


— Olha, Tarinã, isso eu não alcancei não. Mas escuta bem… Antes da galinha do branco chegar por aqui, nós, Kariri, já tínhamos o Poeba, o Jacu. Essa sim, era nossa galinha verdadeira. Possa ser que, antes da dabuká, já existisse a brincadeira com o Poeba. Mas naquele tempo eu ainda nem era nascido.


— Então… a galinha virou nossa também? — perguntou Tarinã.


— Virou sim, meu filho. A gente não rejeita o que chega — a gente acolhe e transforma. A galinha hoje é Kariri também, porque entrou na nossa vida, no nosso roçado, na nossa panela, e até na nossa brincadeira. Ela virou tradição.


Tarinã olhou para o rio e viu um pedaço de pau boiando bem longe. Sem dizer mais nada, saiu correndo, gritando:


— Galinha gorda!


E das margens ecoou:


— Gorda! Para o meio!


E assim o Opará riu mais uma vez com a meninada.


E a memória viva do nosso povo continuou fluindo… como o rio, como o tempo, como a tradição.





06. HEBACABARÚ, O CAVALO DE PAU 





Um Conto Sobre o Cavalo de Pau 



Na terra distante dos povos brancos, onde castelos se erguiam e reinos travavam guerras com lanças e espadas, os guerreiros cavalgavam pelos campos como trovões sobre a relva. Era um mundo antigo, cheio de tradições guerreiras, onde os cavaleiros defendiam seus impérios com honra e bravura.


As crianças desse Velho Mundo, mesmo sem escudos nem armaduras, brincavam como se fossem parte dessa tradição. Seguravam bastões com cabeças de cavalo feitas de madeira e corriam pelas vilas, sonhando com o dia em que também seriam guerreiros. A esse brinquedo, deram o nome de Cavalo de Pau.


Com o tempo, os ventos sopraram as caravelas até as terras do Brasil. Vieram os portugueses, montados em cavalos de verdade, com espadas na cintura e armas que soltavam fogo e barulho. Os povos nativos observaram aqueles homens a cavalo, e logo, as crianças indígenas, curiosas e criativas, reinventaram o brinquedo com o olhar de sua própria língua e cultura.


Assim nasceu o Hebacabarú.


Do vocabulário Kariri veio a junção de duas palavras: Cabarú, que significa cavalo, e Hebarú, que quer dizer pau ou madeira. Hebacabarú — o Cavalo de Pau — ganhou vida nas mãos habilidosas dos anciãos artesãos, que esculpiam com amor a cabeça do animal na madeira. Um longo cabo era encaixado no pescoço do cavalo talhado, e com ele, os pequenos guerreiros da aldeia montavam e partiam para suas aventuras de faz-de-conta.


Era comum ver os meninos e meninas cavalgando pelos caminhos de barro, simulando corridas, travando batalhas imaginárias, ou apenas troteando em grupo sob o céu azul da aldeia. O brinquedo era mais que uma simples diversão — era um espelho dos tempos, uma ponte entre mundos, entre memórias e sonhos.


Com os anos e a presença do branco, a indústria passou a fabricar Hebacabarús de plástico colorido. Mesmo assim, o bastão de madeira permaneceu. E, mesmo entre as novas formas e cores, a essência do brinquedo continuava viva: brincar para sonhar, sonhar para viver.


Na aldeia ainda há cavalos de verdade pastando na várzea, mas o Hebacabarú continua firme nos quintais de barro batido, correndo nas mãos das novas gerações. Ele é feito de madeira, imaginação e memória — o primeiro cavalo que toda criança pode montar para galopar entre o real e o imaginado.





07. IBAPINÉ BENHEKIÉ, CARRINHOS DE BRINCAR 





Um Conto Sobre Carrinhos de Brinquedos



O sol já passava da metade do céu quando Nhenety, ainda menino, viu a poeira subir na Rua dos Índios. Era Antônio, seu irmão mais velho, empurrando com cuidado um carrinho feito de madeira, com rodas de borracha cortadas de um pneu velho e faróis desenhados com carvão. As crianças corriam ao redor, os olhos brilhando como se estivessem diante de um carro de verdade.


— Olha o caminhão novo que o Antônio fez! — gritou um dos meninos, puxando uma cordinha amarrada no para-choque de seu próprio carrinho, feito com uma lata de óleo marca Lubrax, bem colorida.


Naquele tempo, as vozes dos motores eram feitas com a boca:


— Vruuuuum! Grrrrrr! Póóó!


A rua inteira se enchia de sons, risos e poeira dançante.


Naquele ano, 1970, a aldeia Kariri-Xocó sentia a mudança do mundo. A BR-101 recém-construída havia cortado as terras próximas como uma serpente de pedra e fumaça. Os carros agora passavam mais frequentemente, máquinas pesadas de ferro surgiam como bichos estranhos sobre rodas. Mas para as crianças, aquele novo mundo era apenas mais um motivo para sonhar.


— Ibapiné Benhekié! — dizia Nhenety, orgulhoso, enquanto mostrava o novo modelo feito de inhame seco e pregos.


— Carrinhos de brincar, explicava ele, misturando sua língua ancestral com o brilho nos olhos da invenção.


Havia de tudo: caminhõezinhos com carroceria feita de madeira, escavadeiras com colheres como pás, ônibus de duas latas coladas com cera de abelha. Os mais corajosos andavam nos carrinhos de rulimã, que desciam a ladeira do fim da rua num voo baixo, rasgando o vento com gritos e gargalhadas.


Antônio era um artista dos brinquedos. Nunca cobrava nada. Só pedia:


— Traga sua lata, um prego, um pedaço de madeira e muita vontade de brincar.


Os meninos e meninas formavam fila em sua porta. Quando ele entregava o carrinho, havia um ritual: todos corriam até o campo, faziam uma pista de terra com as mãos e iniciavam a grande corrida. Era o Grande Prêmio da Aldeia!


Hoje, os carrinhos são de plástico, vêm das lojas com botões, sons programados e luzes que piscam. Mas nenhum deles carrega o cheiro da madeira cortada à faca, o peso da borracha reciclada ou o carinho de quem moldou com as próprias mãos.


Nhenety, agora adulto, ainda ouve, de vez em quando, o barulho de um motor de boca ao longe. Sabe que é só lembrança... ou talvez o espírito da infância correndo descalço pela Rua dos Índios.


E sempre que fecha os olhos, lá estão os Ibapiné Benhekié, pequenos carros de brincar, deslizando no tempo e na poeira da memória.




08. DUBOHERÍ BENHEKIÉ BUNHÁ, O MESTRE DOS BRINQUEDOS DE BARRO 





Na aldeia, onde o rio canta suas histórias e o vento sussurra segredos ancestrais, havia um tempo em que as brincadeiras nasciam do barro e da imaginação. Lá, as crianças corriam livres, com os pés na terra e o coração na fantasia, criando mundos com suas próprias mãos. Era o tempo dos "Bunhá do Benhekié", os brinquedos de barro.


Bonecas, bois, panelinhas, cavalos, carros e até aviõezinhos — tudo nascia do barro molhado, moldado com cuidado, secado ao sol, queimado no forno junto às cerâmicas, e depois pintado com cores vivas. Esses brinquedos não vinham das lojas dos brancos. Vinham das mãos de um homem sábio, de um mestre do barro, chamado Pedro Muirá — o Bunhá duboherí.


Pedro era primo da minha avó Júlia Muirá, e para nós, era mais que família — era um encantador de infância. Enquanto os filhos dos brancos brincavam com brinquedos de ferro e plástico colorido, nós, crianças indígenas, olhávamos de longe, desejando aquilo que não podíamos ter. Às vezes, chorávamos, sentindo a distância entre os mundos. Mas Pedro, com sua voz mansa e firme, nos dizia:


— Não chorem, crianças. Vou fazer brinquedos de barro para vocês.


E fazia. Ah, como fazia! Com paciência e amor, moldava cada forma com seus dedos sábios. Quando os brinquedos estavam prontos, e coloridos com tintas da alegria, ele os entregava a nós como quem entrega um pedaço da infância encantada.


A aldeia se iluminava com os sorrisos das crianças. O riso ecoava entre os cajueiros, os coqueiros e o velho maracá de toré. Cada boneca de barro tinha um nome. Cada boizinho de argila tinha uma história. E Pedro, o nosso tio Pedro, era o herói das tardes ensolaradas.


Ele não guardava sua arte só para a aldeia. Na sexta-feira, levava sua criação para a feira de Porto Real do Colégio. Lá, seus brinquedos encantavam os olhos de todos e eram vendidos num piscar de olhos. Pedro era respeitado como mestre, não só por seu talento, mas por manter viva a memória moldada no barro da tradição.


Hoje, os brinquedos dos brancos são eletrônicos, falam, se movem sozinhos e até piscam. Mas nenhum deles tem o cheiro da terra, o calor do forno, a mão do artista e o espírito do povo. Nós, que carregamos a cultura no peito, nunca vamos esquecer o tempo dos Bunhá do Benhekié. Nunca vamos esquecer o nosso tio Pedro Muirá — o escultor de sonhos, o criador de infâncias.


Porque na terra dos Kariri-Xocó, o barro também fala. E ele conta histórias de amor, resistência e alegria.




09. AMÍNHEKIÉ, BRINCAR DE COZINHADA 





Debaixo do velho ingazeiro, onde os galhos faziam sombra e o vento cantava baixinho, a meninada se reunia para brincar de cozinhar. Era a brincadeira mais gostosa do mundo!


— Quem vai buscar a lenha? — perguntou Jandira, a menina mais velha, com as mãos na cintura e um sorriso de quem mandava bem na cozinha.


— Eu! Eu! — gritaram as meninas, já correndo para juntar gravetos e folhas secas.


Enquanto isso, Indé, o mais ligeiro dos meninos, ajeitou o chapéu de palha e chamou os amigos:


— Bora pro mato, pessoal! A mistura não vai se arranjar sozinha!


E lá se foram eles, pulando troncos e desviando de espinhos, em busca de frutas, temperos e quem sabe… alguma caça de peteca!


— Achei tomatinho! — gritou Nhakã, com a mão cheia de bolinhas vermelhas.


— E eu, alfavaca cheirosa! — falou Itauaçú, esfregando as folhas no nariz e fazendo careta.


Enquanto os meninos se aventuravam, as meninas arrumavam o chão debaixo do ingazeiro, varriam com ramos secos e preparavam as panelinhas de barro.


— Vai ficar tudo tão bonito! — disse Suinã, empilhando os gravetos com capricho.


Logo, os meninos voltaram, suados e felizes, carregando o que haviam encontrado: sardão, ciguleira, maxixe e até uns peixinhos pequenos que pegaram na lagoa.


— Olhem só quanta coisa! — exclamou Indé, mostrando o tesouro.


— Agora é com a gente! — disse Jandira, pegando a faca de madeira. — Vamos preparar tudo direitinho!


E assim, com muito cuidado, as meninas cortaram, lavaram e misturaram os ingredientes, enquanto o fogo crepitava baixinho.


Quando a comidinha ficou pronta, o cheirinho bom se espalhou pelo ar.


— Hummm… tá dando água na boca! — falou Nhakã, esfregando a barriga.


Jandira, com seu jeito de irmã mais velha, fez a divisão: colocou um tantinho em cada pratinho de barro, e quando não tinha mais, usou cacos de potes quebrados que pareciam pratinhos mágicos.


— Um para você… outro para você… e outro pra mim! — dizia ela, entregando as porções.


Todos sentaram em roda, debaixo do ingazeiro, e começaram a comer, rindo, conversando e contando histórias do mato.


— Essa foi a melhor cozinhada de todas! — falou Itauaçú, lambendo os dedos.


Jandira sorriu e disse:


— E amanhã tem mais! Porque brincar de cozinhar é também um jeito de aprender a ser do nosso povo: ajudar, partilhar e viver juntos!


O vento balançou as folhas do ingazeiro, como quem concordava. E ali, no meio das risadas e do cheirinho de comida boa, a cultura deles crescia, igual à árvore: forte, bonita e cheia de vida.


E dizem que, até hoje, quem passa pelo velho ingazeiro consegue ouvir, bem baixinho, as vozes da meninada brincando de cozinhada…




10. TSEPINEHEKIÉ, GENTE PEQUENA DE BRINCAR 





Um Conto Sobre Bonecas e Bonecos



Nos tempos em que o Sol ainda brincava de esconde-esconde com a Lua nos céus de Porto Real do Colégio, havia um pequeno povo que vivia entre os galhos das árvores, os cantos dos rios e as mãos habilidosas das crianças. Eram os Tsepinehekié, conhecidos como “Gente Pequena de Brincar” — bonecos e bonecas nascidos do barro, da madeira, das folhas, das espigas de milho e até mesmo das raízes da timbaúba.


Entre os Kariri-Xocó, não eram apenas brinquedos. Eram seres encantados, criados com o espírito da alegria e do movimento, do gesto e da imaginação. As meninas modelavam bonecas com espigas de milho, trançando cabelos de palha e vestindo com folhas delicadas. Os meninos, por sua vez, esculpiam com a faca pequena os bonecos guerreiros na madeira leve da timbaúba ou moldavam figuras no barro do rio, que endurecia ao sol.


— Eles vivem com a gente quando brincamos — dizia a avó Nairá —, mas voltam pro mundo encantado quando anoitece.


Com o tempo, brinquedos vindos das cidades chegaram ao povoado. Bonecas de plástico que choravam, soldados que falavam, heróis que acendiam luzes nos olhos e andavam sozinhos pela casa. Eram caros, brilhantes, anunciados nas telas da televisão e desejados como tesouros. Muitos pais não podiam comprá-los, e as crianças, com olhos sonhadores, voltavam para os quintais, para os troncos, para o barro.


Foi quando Kauã, um menino de olhos atentos como beija-flor, encontrou uma raiz de timbaúba caída na mata. Ele se sentou debaixo de um jenipapeiro e, com a faca do avô, esculpiu com cuidado um boneco pequeno, forte, com um cocar de penas de andorinha. Chamou-o de Arawá, o pequeno guardião.


— Você vai lutar pelo nosso povo — sussurrou Kauã.


Na mesma aldeia, sua prima Nahiá criou Iarámi, uma boneca feita da espiga do milho novo. Tinha um sorriso largo feito de sementes e saia feita de folha de bananeira.


Naquela noite, quando os brinquedos eletrônicos silenciaram e as luzes se apagaram, Arawá e Iarámi tomaram vida. Correram pela casa, dançaram entre os cantos dos velhos, e foram brincar com os sonhos das crianças. Os brinquedos modernos, mesmo brilhantes, dormiam. Mas os Tsepinehekié, feitos de terra e afeto, nunca dormiam por completo.


Eles viviam onde mora a infância verdadeira — no gesto de criar com as próprias mãos, no som da risada compartilhada, na magia da simplicidade.


Desde então, sempre que uma criança Kariri-Xocó molda um boneco ou uma boneca com o que a Mãe Terra oferece, nasce um novo Tsepinehekié. E enquanto houver uma criança que brinque com o coração, eles jamais deixarão de existir.




Autor dos Contos: Nhenety Kariri-Xocó 




🌿 GLOSSÁRIO KARIRI-XOCÓ



(Palavras e expressões presentes na obra)



Apresentação



Este glossário reúne palavras na língua Kariri-Xocó e expressões tradicionais ligadas ao esporte, às brincadeiras e às vivências do povo.


O objetivo é preservar o som, o sentido e o espírito das palavras, oferecendo ao leitor não apenas traduções, mas pequenos fragmentos da memória ancestral.


As palavras aqui registradas são sementes que atravessam o tempo.


Cada termo guarda histórias, movimentos, rezas e modos de viver herdados dos antigos.



Amínhekié – Um neologismo Kariri-Xocó, vem de Amín "comida, alimento" e Hekié originária de Benhekié "brincadeiras".


Cropodzú – está palavra é um neologismo do Kariri que os Kariri-Xocó adotou, vem de Cropobó "lutar" e Dzú "água".


Benhekié – Do vocabulário Kariri que significa brincadeiras, brincar.


Bunhá – Do vocabulário Kariri no qual significa barro


Byghitó – neologismo originária da língua Kariri, vem de By, que é o "Pé", Canghité, a "Coisa" e Totó, o "Redondo", portanto jogar pé na coisa redonda, o futebol. 


Dabukasá – a palavra vem do neologismo Kariri-Xocó, vem de Dabaka "gordura" e Sa de Sabucá "galinha" ou galo.


Duboherí – Do vocabulário Kariri que significa "mestre", aquele que ensina, orienta aos mais jovens. 


Hebacabarú – Do vocabulário Kariri veio a junção de duas palavras: Cabarú, que significa cavalo, e Hebarú, que quer dizer pau ou madeira, Hebacabarú — o Cavalo de Pau.


Ibapiné – Do vocabulário Kariri vem de Iba "carro", Piné "pequeno", portanto temos Ibapiné "carrinhos".


Kariri-Xocó – Povo indígena de Porto Real do Colégio (AL), cuja cultura resiste e se reinventa frente às transformações históricas.


Opará – Nome indígena do Rio São Francisco, considerado ser vivo, guardião ancestral e fonte espiritual do povo Kariri-Xocó.


Rua dos Índios – Espaço social e cultural do povo Kariri-Xocó em Porto Real do Colégio.


Tsepinehekié – Um neologismo Kariri-Xocó,  vem de Tse "gente", Piné "pequeno" e Hekié originária de Benhekié "brincadeiras".


Ubapiné –  vinha da antiga palavra tupi “ubá”, que significava canoa, enquanto “Dzurió” nascia da lagoa na língua Kariri. 


Uchenhekié – a palavra do neologismo Kariri-Xocó, vem de Uché "tempo" e Benhekié "brincar", portanto Uchenhekié "tempo de brincar".

 

Woroy – História, narrativa tradicional, conto ancestral transmitido pela oralidade.




📄 CONSIDERAÇÕES FINAIS



Os contos que compõem este volume revelam mais que histórias:

são caminhos vivos, onde o esporte e as brincadeiras se tornam portais para compreender a alma do povo Kariri-Xocó.


Cada gesto, corrida, grito de alegria, desafio e travessura ecoa os mais antigos ensinamentos, lembrando que o corpo não existe separado do espírito — e que a brincadeira é também uma escola ancestral.


Ao longo deste livro, o leitor encontrará a força da coletividade, a beleza da infância, o movimento como celebração e a sabedoria que permanece nas mãos dos mais velhos, que ensinaram que brincar é uma forma de existir com plenitude.


Que este volume seja mais uma semente lançada no tempo, fortalecendo a memória, a identidade e a história viva do woroy Kariri-Xocó.





📄 SOBRE O AUTOR



Nhenety Kariri-Xocó

Filho do povo Kariri-Xocó de Porto Real do Colégio (AL), é Guardião da Palavra, contador de histórias, pesquisador das tradições do seu povo e construtor de pontes entre a oralidade ancestral e a escrita contemporânea.


Sua missão é fazer florescer, através dos livros, a memória viva que recebeu dos mestres da aldeia, das rezas, dos cantos, das brincadeiras e dos caminhos percorridos na Rua dos Índios.


Autor de contos, cordéis, estudos culturais e registros que unem espiritualidade, identidade e tradição, Nhenety utiliza a escrita como ferramenta de resistência, fortalecimento e amor pelo seu povo.

Sua obra busca honrar o passado, iluminar o presente e deixar caminhos abertos para as futuras gerações Kariri-Xocó.





📄 AGRADECIMENTOS FINAIS



Agradeço aos que vieram antes de mim,

que mantiveram acesa a chama da cultura,

e aos que vêm depois,

que continuarão esse fogo sagrado.


Agradeço às crianças e jovens Kariri-Xocó,

que, com suas brincadeiras e práticas esportivas,

mantêm viva a alegria que moldou nossas gerações.


Agradeço aos mestres da memória,

aos pajés, aos velhos guerreiros,

às mulheres sábias e aos contadores de história

que me ensinaram que cada palavra é também um passo no caminho da ancestralidade.


E agradeço aos leitores,

que atravessam estas páginas com respeito,

levando consigo um pouco da força,

da simplicidade e da grandeza

do povo Kariri-Xocó.





📄 ORELHA DO LIVRO (Texto para o lado esquerdo da capa)



Neste volume da série Woroy História, o autor indígena Nhenety Kariri-Xocó apresenta uma coletânea de contos que resgatam o espírito do esporte e das brincadeiras dentro da cultura Kariri-Xocó.


Mais do que narrativas, são pequenas travessias, onde o corpo, a alegria e o movimento se tornam expressões da identidade de um povo. Cada conto ecoa lembranças da Rua dos Índios, dos jogos que moldaram gerações, dos ensinamentos escondidos entre risos e desafios.


Com linguagem sensível e profunda, Nhenety transforma a memória em poesia, e a vivência comunitária em literatura, mostrando que o brincar é também um ato de resistência, união e celebração.


Este livro é um tributo

– à infância,

– à força do coletivo,

– e à ancestralidade que dança entre palavras vivas.






Autor: Nhenety Kariri-Xocó