quarta-feira, 2 de julho de 2025

TONRANRAN TOKLIKLI, O Livro Folhas Que Falam






Dizem os mais velhos que, certa vez, chegaram à beira do Opará uns homens estranhos, vestidos com roupas pretas, carregando nas mãos pequenos pacotes feitos de folhas empilhadas. Eles não cantavam maracá, não assobiavam para o vento e nem dançavam com os pés na terra. Mas faziam algo que ninguém jamais tinha visto: faziam as folhas falarem.


Os Kariri Dzubukuá, espantados com a novidade, deram nome àquilo que viram: Tonranran Toklikli, o Livro Folhas Que Falam.


As palavras desses Waré — os padres jesuítas — vinham escritas, presas nas folhas, como se fossem cantos engaiolados. Eles diziam que era a Doutrina do seu Deus. E de fato, em 1698, o Padre Luiz Vicencio Mamiani escreveu o primeiro catecismo cristão na língua Kariri-Kipeá, na aldeia de Geru, do outro lado do rio. No ano seguinte, escreveu a gramática dessa mesma língua.


As aldeias escutavam essas notícias com espanto e curiosidade. Não era apenas um padre. No ano de 1709, nas margens do Opará, o Padre Bernardo de Nantes também escreveu um catecismo, agora na língua dos Kariri Dzubukuá. E muitos outros vieram, sempre com seus Tonranran Toklikli nas mãos.


Os Caraí — os brancos — pareciam ter gosto em escrever tudo que viam. Em 1817, o Padre Manoel Aires de Casal passou pela aldeia e escreveu sobre a arte das cerâmicas feitas pelas mulheres Karapotó. Já em 1871, o geógrafo Thomaz Espindola Bonfim anotou sobre a presença dos Tupinambá na Aldeia de Colégio.


E não parou por aí. Em 1935, chegou o cientista Carlos Estevão. Sentou-se para conversar com Maria Tomasia, a índia Natú, e ali registrou a presença dos povos Natú, Waconan, Xocó e tantos outros que vivem entre os galhos da memória.


Mas um dia, algo diferente aconteceu. Pela primeira vez, um Kariri-Xocó escreveu com sua própria voz, com sua própria alma. Nhenety — filho de Porto Real do Colégio — pegou as folhas que falam e fez delas arco, flecha e caminho.


No ano de 1999, escreveu seu primeiro artigo na revista da Universidade de São Paulo, falando de sua infância. Depois, em 2007, publicou seu livro Arco Digital, e dali por diante, nunca mais parou de fazer as folhas falarem com a força da palavra ancestral.


Hoje, os livros falam não apenas do que os outros viram em nós, mas do que nós mesmos sentimos, lembramos e sonhamos. Tonranran Toklikli já não é só um objeto dos padres e dos cientistas. Agora, é também arma da memória viva do povo Kariri-Xocó.


E assim, as folhas seguem falando, em cada canto do Opará, para que o tempo jamais esqueça.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 







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