domingo, 28 de novembro de 2010

ALDEIA NA FLORESTA

   O Ouricuri, na minha época de menino, era uma grande mata fechada que cobria vasta área dos atuais municípios de Porto Real de Colégio e São Brás, no território indígena imemorial. Nessa floresta existiam várias espécies de vegetais e animais em abundância. O caminho que levava ao interior da mata era uma pequena vereda, onde existia a aldeia tradicional com casas de palha, em que nosso povo ficava vários dias no ritual religioso indígena. Esse cerimonial é sagrado; não pode ser revelado aos brancos; somente aos índios que nascem na tradição de preservar a cultura original de nosso povo indígena Kariri-Xocó. Além dessas tribos, outros grupos indígenas podem assistir ao ritual: os Fulni-ô, Tingui-Botó e parte dos Karapotó que vivem na área.
Eu saía para o interior da mata junto com Joelton, o meu amigo e primo, à procura de frutos silvestres. O cheiro da gabiroba, ubáia, maracujá nos fazia identificar onde encontrar. Árvores altas e sombrosas, como o angico, a baraúna, dominavam a paisagem. O som dos pássaros nos pedia para escutar seus cantos. Andar nessa floresta exigia muito cuidado; cobras ficavam escondidas nas folhagens, aranhas e escorpiões eram o perigo maior.
Hoje está diferente, mata devastada, os animais estão sumindo, lenhadores e caçadores ofenderam a natureza. Fico triste quando olho; aquela mata linda que existia pede socorro para as pessoas replantar a vegetação, preservar o que existe para os animais novamente voltarem. O Ouricuri é conservar o que Deus nos deu.
Quando eu tomei consciência de estar no Ouricuri senti uma diferença; morávamos numa rua sem mata e o barulho era constante: carros buzinando, músicas nos rádios, pessoas estranhas sempre passando nesse beco em aperto. Quando eu era criança, lembro que uma vez chegou o meu cunhado Juarez, parou na porta com uma carroça de burro, desceu e disse: "dona Lurde, seu Alírio mandou levar as coisas para o Ouricuri".
Subimos na rua ladeirada; os índios também estavam no mesmo reboliço, carga na cabeça, trouxa e meninos nos quartos, esteiras debaixo do braço. Saímos pela rua da Aurora, pegamos um caminho ermo; o sol estava se pondo... Passamos pela cidade; as luzes cada vez se afastavam. Chegamos numa mata escura, a estrada era como quê um túnel de ramagem. Perguntava a Juarez: "que canto é esse?" Ele me dizia: "não tenha medo; isso é a coruja!"
Finalmente nós estávamos numa nova aldeia de forma circular, as casas eram de palha e não tinham compartimentos. Perguntei a ele porque nós vínhamos para ali e ele respondeu: "Zé, aqui é o Ouricuri; muitas vezes você veio quando era mais pequeno!" Foi aí que tomei consciência de que aquele lugar não era estranho. Ele foi logo nos descendo, as coisas tirou também, colocou num ranchinho de palha e depois a mamãe chegou.
A mamãe me dizia que no tempo dela o mato era maior; cobras atravessavam a estrada, raposas também cruzavam, o dia parecia noite pela sombra das árvores. Nossos ranchinhos de palha de Ouricuri ou de arroz, o gado dos fazendeiros quando nós não estávamos lá derrubava a casa e comia a cobertura; em nossa chegada, tudo estava no chão.
Em noite de inverno se fazia um amparo com esteira de periperi para agasalhar os meninos; a chuva não parava, a água escorria por debaixo, nós agüentávamos por amor à tradição. Crianças ficavam roxas de tanto frio que passavam; se fazia um foguinho para enxugar a roupa molhada, aquilo era uma benção; ninguém vivia doente, as pessoas eram sadias porque estavam acostumadas.
Aqui, nos problemas de saúde ocorridos com as crianças, as mães sempre resolvem, quando a doença é simples, com chás de ervas ou uma simpatia. A papeira, sempre se cuidava com casinha de maribondo feita de barro nas paredes; quebrava em pedaços e fazia uma pasta colocando no rosto. Pronto, esse era o remédio.
Para o sarampo se arrumava fezes de cachorro; estando seca, amarrava em um paninho e colocava para esquentar numa panela com água; era só tomar o chá. A frieira que se dá nos pés, mãos, não tem complicação, pois a pessoa mesma se cuida: é só mijar no pé. Em caso de diarréia, toma-se o chá da folha de goiabeira, pegando as folhas do olho ou raspa de arapiraca. Dor de cabeça, ela, minha mãe, sempre cuidava com mata-cabra, amarrando na cabeça. Casca de aroeira é bom para cicatrização. Para surdez, é bom coçar o ouvido com rabo de tatu; na queimadura, clara de ovo.

José Nunes de Oliveira é índio da tribo Kariri-Xocó, localizada no município de Porto Real do Colégio, Alagoas.  http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141999000300005&script=sci_arttext  .

Nhenety Karriri-Xoco 

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