quarta-feira, 5 de julho de 2023

INTERAÇÃO ENTRE OS TARAIRIÚ E OS KARIRI


 Nos restaram pouquíssimos documentos históricos que relatam sobre a interação entre os povos destes dois grandes grupos ancestrais de caboclos do nordeste, os Kariri e os Tarairiú. Existem alguns relatos das nações Kariri de Kimionkoiou e Cariri Açu de Carapotó serem inimigas de Janduí (ou Drarug, que significa ema), um dos mais poderosos e influentes caciques tarairiú da época da invasão holandesa, também são mencionados os povos Jenhos liderados por Kischonon e Wayana (cognato de Woyên e Wanye das línguas Kariri dos catecismos e gramática) liderados por Waracapá Açú (cognato do nome Wracapa, a ilha dos Dzubukuá, empréstimo do Tupi gûaracapá).


 Porém hoje não vim discutir sobre a interação diplomática dessas nações e sim sua interação linguística, sabe-se pouquíssimo sobre a interação desses povos no âmbito de suas linguagens e hoje gostaria não de chegar a conclusões, e sim pôr em questão alguns tópicos que acho interessante serem ressaltados para iniciar o processo de estudos linguísticos dessas famílias do Nordeste.


1º) *bidzâ e pigó


Estas duas palavras me interessaram bastante no momento que notei suas semelhanças, dentro da língua Kariri a palavra *bidzâ surge somente em compostos como bidzamu, bidzoncra, bidzoncrada, bidzora no Kipeá e bydzamu, bidzebro e bidzecradda no Dzubukuá. No Tarairiú essa palavra surge como pigó 'olho' e na sua língua irmã, o Xucurú, e seu descendente direto, o Brobó tem também opigomə̨ 'boca' (composto entre o '?' + pigo 'olho, olhar' + mə̨ 'boca' que surge separado como mãz 'boca'), pigomar 'ouvir' (pigo 'olho, olhar' + mar '?') e pigamnan 'olho' (pigam, variante de pigo 'olho' + nan, talvez um sinônimo ou palavra próxima semanticamente 'olho, ver (?)'). 


 Por que estou discutindo sobre estas duas palavras ? Ano passado, eu havia desenvolvido a teoria de que muitas consoantes do Kariri se desenvolveram através de outras consoantes do Proto-Kariri que não estavam muito óbvias em seus descendentes, dois casos assim foram os das consoantes *dz e *ts, cujo para *ts, eu já havia especulado a possibilidade de derivar de um **k do Pré-Proto-Kariri, já *dz eu especulei que teria vindo de um **j do Pré-Proto-Kariri, mas mantive guardado a ideia de que poderia ter vindo de um **g, até que eu encontrasse evidências para esse argumento. 


 Creio que com essas duas palavras seja possível especular uma possível interação em um período extremamente cedo da história do Kariri, aonde esses povos haviam recentemente migrado de algum lugar do norte do Brasil e ainda falavam o Pré-Proto-Kariri. Também devo dizer que é mais fácil analisar a palavra morfologicamente através do vocabulário Tarairiú, se gó ~ gam (gã) não for um sinônimo de pi, é provável que seja uma variante do sufixo -go dessa língua que é usado para várias funções, uma delas sendo nominalizadora, ou seja, transforma verbos em substantivos, fazendo com que pi-go seja 'ver-NMLZ' ou 'coisa de ver, coisa de enxergar', portanto 'olho' e por extensão do substantivo 'olhar'. A variação vocálica de /ɔ/ ou ó ~ /ã/ em gó ~ gam coincide diretamente com a variação da palavra *bidzâ em seus descendentes: bidze, bidzan, bidzo, bidza e bidzon. Isso também pode explicar a presença do verbo u-bi 'ver, ouvir, perceber' na quinta declinação, cujo é a declinação onde a maioria dos substantivos emprestados de outras línguas caem, sendo cognato direto do bi de *bidzâ. Por último, o Kariri tem a tendência de vozeamento das consoantes oclusivas iniciais, portanto p > b, k > g e t > d, portanto uma sugestão de reconstrução para o Pré-Proto-Kariri pode ser *pigâ, cujo no estágio intermediário seria pronunciado como *piɟâ ~ biɟâ (portanto a sílaba seria algo como uma mistura entre guiâ e djâ), passando para o Proto-Kariri seria *bidzâ.



2) o prefixo *klâ- para corpos celestes e objetos redondos

 Devido ao formato em que esse prefixo surge no Kipeá (kro-), podemos ser levados a crer que este derive do substantivo kro 'pedra', no entanto venho aqui para propor uma nova hipótese para esta palavra, uma que conecta várias línguas do Nordeste e pode dar início a uma discussão sobre o Sprachbund (área de influência linguística) Nordestino.


 klo- ou kro- nas línguas Kariri são usados como prefixos classificadores nos adjetivos quando o substantivo que precede é um corpo celeste, um pássaro ou algo redondo em geral como frutas, pedras, miçangas e etc, estes temas parecem se repetir não só no Tarairiú como também em uma outra família linguística, a família Xocó-Natú ou Piquá (baseado na sua palavra para homem/mulher/pessoa(?) que é pikwá), aqui estão os exemplos:


Família Tarairiú

Xukurú: klarihmon, klarismon, kɨlaRmo < todos estes significam 'lua'

Brobó: klareci ou kelarmo 'lua', klarin 'dia', klarismon 'sol', klariú ou klarimen 'estrela' e klaruá 'céu'


Família Xocó-Natú/Piquá

Natu: kra-shulo 'sol', kra-uavé 'lua'

Xocó: kra-shutó 'sol', kri-ũaví 'lua'


 Como podemos ver, três famílias linguísticas diferentes usavam/usam o mesmo prefixo para objetos celestes e possivelmente também para objetos redondos, isso é uma evidência clara da interação entre estes povos, tanto diplomática, social e cultural, quanto linguística, creio que este seja um ótimo tópico para se discutir tanto sobre as interações passadas quanto as interações do presente e do futuro das nações do Nordeste.


udhette buyâ dâ lobâ 'muita alegria para todos'


xabrekegó pirara pirayá kino 'muita felicidade para todos' (peço perdão aos irmãos Tarairiú caso haja um erro na tradução)



Autor da matéria: Ari Loussant 


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