terça-feira, 2 de janeiro de 2024

FUNÇÃO DOS DIACRÍTICOS DO DZUBUKUÁ


 Bernardo de Nantes (Bernard de Nantes) era um capuchinho bretão que participou do processo de conversão para a fé cristã no vale do Rio São Franciso, sendo o autor de um dos dois catecismos de uma língua da família Kariri, a língua Dzubukuá, publicação esta que ele chama abreviadamente de "Katecismo Indico". Sua publicação é de valiosíssima importância para a nação Kariri, tendo auxiliado no desvendar dessa família assim como da família Terejê, mas uma coisa que nos escapou por um bom tempo fui sua ortografia, principalmente seus acentos e sua funções práticas dentro do texto.


 Queiroz em 2008 fez uma publicação discutindo sobre a fonologia Dzubukuá, mas acredito que existam alguns problemas em sua análise que precisam ser discutidos, neste texto, um dos pontos que irei discutir serão as suas vogais laringeais, ou vogais com voz trêmula. De acordo com este autor, todas as vogais que possuem o diacrítico circunflexo [^] possuem uma pronúncia onde a voz começa a tremer enquanto a pronuncia, Queiroz baseia sua teoria em comparação com a ortografia Kipeá de Mamiani, mas eu particularmente discordo nessa instância específica dessa comparação, irei providenciar as evidências que encontrei ao primeiro mostrar a seguinte tabela:


Tabela das vogais do AFI


Fonte bibliografica : https://en.m.wikipedia.org/wiki/File:IPA_vowel_chart_2005.png 


Quero que os leitores prestem atenção especificamente nas vogais /æ/, /œ/ e /ɛ/, o Francês possui algumas estratégias de anotação de sua pronúncia, você pode notar isso pela presença dos diacríticos [´], [`] e [^] em suas palavras, elas não são meras "decorações", elas tem funções reais, e aqui argumento que Nantes tinha total noção delas e ativamente usou-as em sua publicação. Eu não discordo de uma comparação do Kipeá com o Dzubukuá, mas é preciso cuidado nesse quesito, peço que notem as seguintes palavras:


1) Dz.: uclèm vs Kp.: crae

2) Dz.: dehèm vs Dz.: dahandcj

3) Dz.: -loboè vs Kp.: -robae

4) Dz.: uplè vs Kp.: uprè


Como é possível perceber, existe uma transição de sons aqui, voltando para a tabela logo acima, os sons de /æ/ e /œ/ estão a apenas meio nível de diferença um do outro, meramente necessitando de um pouco de abaixamento e alçamento vocálico para que ambos transitem entre si, Nantes parecia ter noção da proximidade da pronúncia de /œ/ com o fonema /ɛ/, considerando ambos sons abertos da mesma qualidade, apenas diferindo no quesito de arredondamento dos lábios, ele tinha tanta noção disso, que o digrafo [oè] só tinha outra letra com anotação do mesmo sinal, que era [è], de acordo com as regras ortográficas estabelecidas no francês, o acento grave sobre a leta è torna-o aberto como nosso é de égua, também sendo possível que como no exemplo 1), Nantes usasse [è] para denotar o fonema /æ/ que Mamiani representa com o digrafo ae, e como visto no exemplo 2), também variava com o /a/, exatamente como acontece no Natú e Wakonã. A vogal i também surge anotada com o acento grave [ì] como em nhìnho 'Deus', aqui torna-se difícil interpretar sua função exata, já que o francês não utiliza esse acento nessa letra, portanto é possível que o fonema aqui seja /ɪ/, o mesmo visto no i átono do Kipeá como tinghi 'canafrecha'.


 Outra evidência de que Nantes tinha noção das funções antigas dos dígrafos franceses, que datam da época do grego antigo e sua ortografia politônica, é da utilização do circunflexo [^] para denotar as vogais longas, exatamente como é visto na anotação do Xokó por Loukotka séculos depois, aqui vai a maior evidência dessa utilização:


5) Katecismo Indico, pág. 3

E para quem fez o ceo ?             Idoôdè cunne Inhinho aranquè ?

R: Para nós                                  R: Kudôa.


Nantes responde a pergunta "e para quem fez o ceo" utilizando a mesma partícula que é vista no Kipeá como -dohò, aqui no entanto vemos que ela está reduzida, quem visse pela primeira vez apenas presumiria de que se trata somente da partícula dó 'a, para' sem o -hó incluso, mas não é isso que acontece no Dzubukuá, essa língua estava perdendo seu fonema /h/ aos poucos, isso é demonstrável claramente na palavra odde 'por que' em comparação ao Kipeá sodè 'por que', onde /s/ > /h/ > Ø (símbolo que representa a ausência de um fonema, ou seja, nada), portanto dô se trata da abreviação de um doo visto logo acima escrito como doô em idoôdè, a sua raridade na ortografia de Nantes também demonstra que sua função não denotava a qualidade do fonema, como vemos aqui, denota na verdade sua duração.


 O acento agudo parecia realmente ter a exata função que vemos no Kipeá, que é não é a de modificação da qualidade da vogal e sim de marcação da sílaba tônica de uma palavra, é possível ver isso em algumas palavras cujo a tonacidade muito provavelmente modificou um de seus constituíntes:


7) Dz.: hémwj 'céu' vs Kp.: yemŷ 'arriba, acima'

8) Dz.: tudénhie 'antigamente' vs Kp.: tudenhè 'nos tempos passados'

9) Dz.: andé 'quem, qual' vs Kp.: adjé 'quem, qual'


Caso mwj/mŷ realmente derivem da mesma raiz que o dativo ma que vemos no Xavante e Xerente (a partir do Terejê) em posição átona, então isso provaria que /a/ átono virava o i grosso /ɨ/ nessa posição, e provaria que o acento agudo visto no Dzubukuá realmente está demonstrando a sílaba tônica.


 Por último, vemos que existem vogais que não possuem acentuações, presume-se neste caso que sejam as vogais orais /a/, /e/, /i/, /o/ e /u/, no entanto existe o problema do [e], que possui cognatos no Kipeá que ora são pronunciados como /e/, ora como o schwa /ə/, não existe uma distinção clara entre os dois na ortografia do Katecismo Indico, podemos presumir que o acento agudo sobre o [é] seja o fonema /e/, mas sem acento, torna-se um jogo de adivinhação, isso pode indicar uma de duas coisas:


1) O fonema /e/ e o schwa /ə/ variavam livremente entre si no Dzubukuá

2) Todas as letras [e] não acentuadas são schwa /ə/

3) A letra [e] está fazendo duplo trabalho, representando tanto o fonema /e/ quanto o fonema /ə/


Eu tenho muitas dúvidas sobre a primeira e segunda teoria, creio que seja mais plausível que Nantes estivesse usando essa letra com dupla função, e como não temos uma gramática ou dicionário deste mesmo autor, não temos sua ideia exata de como pronunciar cada palavra escrita, mas podemos inserir os mesmos sons que conhecemos do Kipeá de volta no Dzubukuá, onde houver o schwa garantido na ortografia de Mamiani, podemos ter um pouco de certeza de que seria o mesmo no Dzubukuá, enquanto os outros que desconhecemos, recomendo que se pronuncia de forma neutra como /e/.


Ao todo temos os seguintes resultados:


Vogais fechadas

a, á = /a/ ou á do português

e, é = /e/ ou ê do português

i, í = /i/ ou i do português

o, ó = /o/ ou ô do português

u, ú = /u/ ou u do português


Vogais médias

e = /ə/ ou a de about do inglês

wj, ui, uj, wi = /ɨ/ ou y (i grosso) do Tupi Antigo


Vogais abertas

è = /ɛ/ ou é do português, também /æ/ ou a de bat do inglês

ò = /ɔ/ ou ó do português

oè = /œ/ ou œ do francês


Vogais longas

â = /aː/ ou áá 

ê = /eː/ ou êê

î = /iː/ ou íí

ô = /oː/ ou ôô

û = /uː/ ou uu





Autor: Suã Ari Llusan 



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