sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

MARANKAÑÌKÊ NAHÉ / QUATRO DONOS


 O chão concebeu vida ao licuri no topo da serra. Um dia o céu solta o Papagaio Amarelo, que voa em direção daquele monte, onde faz seu ninho para morar. Ele descobriu a palmeira licuri e comeu de suas amêndoas, das quais viriam nutrir a nova geração de Papagaios amarelos, e mais e mais gerações desses primeiro Papagaio Amarelo continuaram a viver em paz no topo da serra, perto da palmeira licuri. 


 Os restos das amêndoas ganharam a sabedoria do Papagaio ao servir de alimento para várias de suas gerações. Um dia bem distante no futuro, um raio caiu naquela palmeira, ateando fogo nela (Ati'á 'incêndio'), sinalizando para os papagaios que era hora de volta para o céu. Assim eles fizeram, e quando a palmeira e as sementes se tornaram cinzas, a fumaça que saiu delas viajou pelo ar, tornando-se em uma terra longínqua uma nuvem cinza e carregada de chuva, descarregando-se em uma lagoa (Sehôìdzé'á 'chegada da chuva').


 Das águas das chuvas caindo nos corpos d'água, viriam a nascer dois clãs filhos (Wakañì Króroñazu 'dois clãs'), o clã Wólia (wó-lia 'corpinho') e o clã Wótambi (wó-tambi 'corpão'), referindo-se aos corpos d'água como poços, riachos, lagos, lagoas, rios e mares, ambos sendo descendentes do Clã Maior da Água (Krahunan Roñazu Akóma 'Clã da Água Grande'). Estes descendentes eram os primeiros Kariri, cujo a mãe da nação era a Mãe d'Água da Lagoa Sagrada (Liguña 'Mãe da Lagoa'), essa água tomou forma um dia, vendo como o cervo corria pelas matas, a água imitou a carne, dando os primeiros passos na terra, conhecendo lentamente o mundo afora, seu conhecimento o traz muitas coisas, o que os faz desenvolver costumes e até mesmo uma língua para se comunicarem.


 Ainda naquele licuri no topo da serra, algumas sementes sobreviveram e germinaram, penas dos papagaios amarelos foram engolidas por essas sementes, cujo na passar de oito dias, formaram do barro (Ñakó 'lama') que os cercavam e dos galhos queimados da palmeira (si 'osso'), moldando-os para servirem de base para o barro. Este povo é do clã da Terra (Atihi Roñazu), eles nasceram com o conhecimento da língua, e logo moldaram-na para comunicar tanto entre quanto entre os outros ao seu redor. Este povo da terra aprendeu a pronunciar bem tanto sua língua quanto a língua de outros, começaram a dizer que eles eram os Terejê (Têrê jê 'falar claramente, traduzir').


 Um dia, aquele povo que veio do clã Wólia conheceu um Deus, este ser poderoso e místico era o Grande Pai, ele que ensinou sobre a vastidão do mundo e as capacidades das tecnologias que outros povos de outros clãs faziam. Uma delas, simples, porém complexa ao mesmo tempo é o fogo, que trouxe novos saberes para este clã dos lagos. Um dia o Grande Pai (Waroni Mantambi 'Nosso Pai Verdadeiro') falou que os Wólia eram poucos, perguntou "por que não vejo mulheres e crianças ao seu lado ?" para o chefe Wólia Tipìhazahi, este ficou sem resposta, não sabia nem o que eram essas duas coisas, Mantambi apontou então para a Liguña e disse 'ela é uma mulher, não ?', e o chefe Tipìhazahi não entendeu novamente, mas ficou curioso, e passou as próximas oito horas perguntando tudo que podia saber para Mantambi, sobre o que era uma mulher e o que era uma criança.


 A conversa se espalhou pela aldeia, culminando em um dia, onde os Wólianan oraram para sua Deusa para que ela providenciasse mulheres para seu povo, no entanto ela também não entendia como fazer isso, já que nasceu junto com o clã que ela governa.


 Enquanto isso, o povo Terejê começou a herdar mais e mais conhecimento de suas interações, mas também não tinham ciência de como criar mais dos seus, eles voltaram para o monte de sua origem e olharam para o local, viram a palmeira queimada e alguns gravetos, cavaram o chão e viram algumas sementes que não germinaram da mesma palmeira vista antes, não viram mais nada e presumiram que essas foram todas as ferramentas necessárias para criar um igual. Quando desceram o monte, procuraram uma palmeira de licuri, pegaram seus frutos e tiraram suas sementes, plantaram no chão e queimaram a árvore. Passaram-se oito dias e do chão saiu o barro, mas não saiu sabedoria, o que foi criado nesse dia foi o um barro que não fala (ñakó iñótók 'barro que não fala'). 


Sem ideia do que fazer, os Terejê migraram, subindo o Rio Opará do lado esquerdo, nessa caminhada longa, encontraram uma lagoa sagrada e seu povo, passaram alguns dias entre eles e souberam de seu problema atual, os Terejê disseram: "Da Terra, tem o barro, e dele a gente se cria, como funcionaria para a água ?", ninguém sabia responder.


 Um indígena Terejê jovem chamado Wêrezarê (Wêreza-rê 'Boca-Solta') sugeriu que, já que Liguña era a Primeira-Mulher do clã Wólia, ela deveria se dividir em pedaços equivalentes à quantidade de homens deste clã. Antes que os protestos começassem, ele completou explicando o experimento do barro que não fala, e concluiu que o poder divino talvez seja a fonte necessária. Waroni Mantambi adicionou, para parar os protestos daqueles que eram contra, que apenas com uma base boa, ele sugeriu gravetos da jenipapo atados com algodão (endiu) nas pontas que correspondiam à cabeça, às mãos e ao pés.


 Com isso, os indígenas Terejê e Wólia buscaram os materiais necessários e entregaram-nos para a Deusa-mãe ao colocar a efígies na lagoa. Todos foram dormir naquela noite, ninguém exceto o Grande Pai, a Deusa-mãe e uma criança teimosa que não dormiu na rede com seus pais presenciaram a magia, da lagoa as efígies cresceram e ganharam forma, a criança ouviu e conta até os dias de hoje que Liguña disse:


"E assim são criadas as zeladoras (pi-kuâ 'as que dão zelo, as que dão segurança')"


 E desde aquele dia, as mulheres, as que trazem segurança para sua família e povo, foram criadas. Essa criança era ambiciosa e viria a viver um futuro caótico que será contado em outro momento. A deusa Liguña repartiu sua divindade em cada zeladora que proveu para seu povo, isso fez com que sua capacidade de ficar na terra sumisse, então para não desaparecer por completo, ela escolheu o lar mais brilhante, onde toda a noite, sua proteção surge no seu antigo lago, tornando-se Krawave, a lua.





Autor da matéria: Suã Ari Llusan 






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