Nas margens caudalosas do velho rio São Francisco, vivia um indígena de sabedoria profunda e olhos que brilhavam como as estrelas do sertão. Chamava-se Poitébo — nome de poder entre os Kariri-Xocó — mas na cidade o conheciam como Euclides Ferreira, o pescador afamado.
Era homem de poucas palavras, mas muitos segredos. Diziam que nas noites de lua cheia ele falava com Yara, a Mãe D’água, que lhe concedia proteção e fartura nas redes. Contudo, os mais atentos sabiam: tudo que Poitébo fazia, inclusive as rezas baixas e os cantos de pescaria, era também para manter os curiosos bem afastados.
Certa noite de enchente, Poitébo saiu com sua tarrafa — rede fina e afunilada — e foi pescar no antigo porto das canoas. Jogava a rede com precisão de mestre, colhendo aragu, sarapó, crumatá. O balaio logo estava transbordando em fartura.
Iraminon, um jovem do povo, o acompanhava em silêncio, aprendendo com os olhos.
Foi quando apareceu Cicinho, um branco da cidade, curioso demais para o próprio bem. Aproximou-se sorrateiro, quis ver de perto o que havia no balaio do velho pescador. Estendeu a mão sem pedir licença.
Lá do barco, Poitébo viu. Seus olhos faiscaram. Murmurou palavras que pareciam vento e assobio, e no instante seguinte — milagre ou feitiço — os peixes do balaio se torceram e cresceram, transformando-se em cobras serpenteantes, "piraboias", que sibilaram ferozmente.
Cicinho gritou um grito tão forte que ecoou pelas grotas e baixios. Saiu correndo desengonçado, tropeçando em si mesmo, mais branco que a lua.
Iraminon arregalou os olhos:
— Home, o que foi aquilo, Poitébo?
O velho sorriu, com um canto de sabedoria nos lábios:
— Foi só pra ele aprender, menino. Não se mete a mão no balaio de um índio sem o seu consentimento. Os peixes são protegidos da Yara, e todo pescador deve mais que técnica — deve respeito.
Com um gesto suave, desfez o encantamento. As cobras tornaram-se novamente peixes. A noite voltou a respirar em silêncio, e Poitébo continuou sua pescaria.
Na margem do rio, Iraminon sabia que aquela noite lhe ensinara mais que anos de rede: ensinara o valor do respeito, da convivência e da proteção ao sagrado.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó

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