No início, o Nordeste era floresta viva. A Mata Atlântica e a Caatinga eram casa, alimento, abrigo e espírito dos povos originários. Mas logo vieram os colonizadores, com seus machados e ambições. A mata caiu, e no seu lugar brotaram canaviais e pastos para o gado. Os povos indígenas, arrancados de suas terras, viram a caça desaparecer, as trilhas se apagarem e a cultura ser empurrada para dentro de pequenas ilhas verdes — os últimos pedaços de floresta.
Nessas ilhas de resistência, entre sombras de árvores antigas, o povo Kariri-Xocó ainda sussurrava as histórias da mata, mas também via o mundo mudando. O progresso chegou com seu fôlego de metal. As comidas passaram a vir em latas, sacos e embalagens brilhantes, vindas dos mercados das cidades. O milho já não era o mesmo. O arroz vinha empacotado, o gado inchado de vacinas, as galinhas alimentadas com hormônios. O alimento deixou de ter alma.
Foi então que Kandará, velho caçador da aldeia, sentiu saudade. Uma saudade funda, que não se mata com palavras. Reuniu alguns homens e disse:
— Vamos caçar. Não só por carne, mas pelo gosto da memória.
Entraram na mata pequena, silenciosa como quem guarda um segredo. Andaram por horas até que encontraram o rastro de um tatu. Um buraco no chão, sinal da toca. Começaram a cavar. Mas o tatu era esperto e valente. Cavava mais fundo, e os homens também. Foram dois dias e duas noites no esforço. A terra, quente e seca, se abria como ferida, mas eles não desistiram.
Por fim, o tatu foi capturado. Pequeno, mas carregado de significado. Voltaram para a aldeia exaustos, cobertos de areia e suor. Kayaní, o filho mais novo de Kandará, olhou com espanto e perguntou:
— Meu pai, será que valeu a pena tanto esforço por um só tatu?
Kandará sorriu, seus olhos cheios de tempo:
— Vale sim, meu filho. Faz muito tempo que não sentimos o sabor do mato. Estamos cheios de galinha de granja, carne de boi com gosto de remédio, verduras envenenadas que só adoecem o mundo. Esse tatu é mais que comida. É lembrança. É cura.
Naquele dia, o tatu foi cozido com ervas da terra. A fumaça subiu como reza. A comunidade inteira veio comer. Cada pedaço era mastigado com respeito, como se alimentassem também o espírito. Os mais jovens, que quase não conheciam o gosto da floresta, aprenderam. Aprenderam com a língua, com os olhos e com o coração.
A partir daquele dia, a aldeia decidiu que era hora de renascer. Plantar sementes sem veneno. Cuidar dos bichos sem hormônios. Comer do que a terra dá, e não do que o mercado impõe. Para viver mais e melhor, sem ferir o mundo.
Porque o tatu — Tõbozu Buneá — não era só caça. Era memória viva. Era cultura servida na panela. Era o gosto de ser quem se é.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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