No tempo antigo, quando o Opará ainda era rio de silêncio e encantamento, os pés dos padres jesuítas e capuchinhos pisaram nas margens sagradas onde viviam os Kariri. Eles vieram com cruzes, batinas e cantigas que o vento não conhecia. Trouxeram consigo outra língua, outro tempo, outro ritmo.
Os Kariri cantavam o Marãbohó — música nascida do chão, do vento, do fogo e da água. Composição ancestral, passada de boca em ouvido, de coração em coração, como reza do mundo antes da invasão. Mas os padres não compreendiam os sons da mata e proibiram os cantos. Queriam silêncio para suas rezas. E onde havia tambor, colocaram sinos. Onde havia dança, puseram joelhos. Onde havia Marãbohó, entoaram Amara Caraí — as cantigas dos brancos.
Vieram mudanças. A língua entortou-se, os corpos se ajustaram a novos modos, e o espírito, esse, ficou em luta. Séculos depois, quando os jesuítas já eram lembrança, ainda se ouvia, pelas vielas da vila de Porto Real do Colégio, um eco do que foi apagado. A aldeia, agora vila, agora cidade, recebia com solenidade as festas dos brancos: Chegança, Reisado, Cavalo Marinho... tudo com cantos que vinham das vozes de outros mundos.
No tempo do Brasil República, o som voou pelas ondas invisíveis do rádio. Chegou às aldeias, entrou nos ouvidos como semente e ali germinou. O velho Manoel de Queiroz, com dedos ágeis, encantava com o violão nas décadas de 1930 e 1940. Não havia partitura, só ouvido e alma. Era natural, era o canto do branco refeito no corpo do indígena.
E então veio a década de 1950. Nas noites de lua cheia, a Rua dos Índios, em Porto Real do Colégio, se iluminava de vozes e cordas. As serenatas tomavam conta das calçadas, e a música, agora mestiça, era o fio que unia o passado ao presente.
Cícero Ireçê dedilhava a saudade. André Ibá cantava os amores de antigamente. E Ademir Suré, com olhos que já viram muita história, ainda hoje conta tudo com a mesma firmeza de quem viveu para preservar.
Entre serestas, chorinhos, MPB, bossa nova, forró, sertanejo, pop e rock, o povo Kariri-Xocó aprendeu que a música pode ser de todos — mas cada nota tocada por um filho da terra ganha um novo som, um novo sentido.
Porque o canto do branco, quando atravessa o peito indígena, se torna outra coisa. Vira resistência, memória, vida.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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