O sol derramava sua luz dourada sobre a aldeia, filtrando-se entre as folhas dos cajueiros e jaqueiras. Em um canto sombreado da praça sagrada, troncos antigos de pau se dispunham em roda. Ali sentavam-se os velhos — os guardiões da memória, as raízes vivas do povo.
Caminhando de mãos dadas com o avô, o pequeno Jandui observava com curiosidade os anciãos. Suas peles marcadas pelas rugas contavam histórias que não estavam escritas em papel algum. Ao se aproximar, o avô cochichava com reverência:
— Dê a bênção aos mais velhos, meu neto.
Jandui assim o fazia, mesmo sem entender bem o porquê. Após algumas visitas, a dúvida brotou de sua boca inocente:
— Vovô, por que o senhor sempre me traz aqui? Por que me apresenta a esses velhos e manda eu dar a bênção?
O avô parou por um instante. Seus olhos miraram longe, como quem buscava nas brumas da memória a resposta já muitas vezes ouvida.
— Meu neto... estou apenas repetindo o que meu avô fazia comigo. Essa mesma pergunta eu também fiz um dia. E ele me respondeu assim: “Levamos nossos netos para ver os anciãos para que nunca esqueçam quem foram os nossos. Para que gravem seus rostos, suas rugas, suas vozes e, sobretudo, suas histórias. Porque é assim que se mantém viva a tradição.”
Jandui escutou atento, os olhos arregalados de encanto e respeito.
— Agora entendi, vovô. Eu nunca mais vou esquecer os anciãos. Quero sempre vir aqui, ouvir eles falarem. Eu quero ser igual ao senhor... contar histórias dos velhos.
O avô sorriu com os olhos úmidos de emoção. Naquele instante, sentiu a certeza de que o fio da memória não se romperia. O tempo seguiria seu ciclo sagrado. Jandui seria a nova voz do povo — um contador de histórias nascido do ventre da tradição.
E assim, sob as bênçãos dos mais velhos e os olhos atentos das crianças, a sabedoria dos antigos continuava a caminhar pelas trilhas da aldeia, carregada por pés pequenos, mas de coração imenso.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
VERSÃO EM CORDEL
“Eriwí Inghé Tokenhé – A Visita das Crianças aos Velhos” em forma de cordel rimado e metrificado, mantendo o espírito da tradição oral e da memória ancestral:
ERIWÍ INGHÉ TOKENHÉ
A Visita das Crianças aos Velhos
Cordel de Nhenety Kariri-Xocó
No terreiro da memória,
Brilha a luz do sol sagrado,
Ali o tempo é história,
No silêncio respeitado.
Sentam-se os anciões,
Feitos troncos assentados.
No meio da meninada,
Vai Jandui com seu avô,
Pisando em terra encantada
Onde o tempo não passou.
Com olhar bem curioso,
Foi assim que perguntou:
— Vovô, diga uma razão,
Que eu ainda não entendi:
Por que toda ocasião
Traz o senhor eu até aqui?
E por que manda eu saudar
Esses velhos por aí?
O avô, homem sabido,
Fez silêncio pra pensar,
E o olhar já comovido
Deu-se então a recordar.
Com voz mansa respondeu,
Começando a ensinar:
— Meu neto, essa pergunta
Um dia também eu fiz.
Lá no tempo da escuta
De meu avô tão feliz.
E ele assim me dizia,
Com saber que não se diz:
— Levamos os menininhos
Pra ver os velhos do chão
Pra que nunca esqueçam deles,
Raiz viva do sertão.
Cada ruga é uma lembrança
Guardada no coração.
— Ouve a voz dos anciãos,
Olha bem o seu semblante.
Cada fala, cada canto,
É saber que vai adiante.
Pra criança memorizar,
Pra manter vivo o instante.
Jandui ouviu calado,
Mas sentiu no peito a chama.
E com o olhar encantado
Disse aquilo que mais clama:
— Vovô, vou ser contador,
Das histórias da nossa rama!
— Quero vir sempre escutar
Esses velhos tão sagrados.
Quero um dia recontar
Os seus contos encantados.
E levar no pensamento
Seus conselhos abençoados.
O avô sorriu contente,
Como quem vê novo dia.
Na criança viu presente
Que renova a profecia.
Com saber vindo da terra,
Com memória e poesia.
E assim segue o legado,
De contar e de lembrar.
Pelos netos levado
Pra jamais se apagar.
A palavra é semente,
Que só quer germinar.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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