No tempo em que os caminhos ainda eram trilhados com os pés descalços da sabedoria, aconteceu uma história que ecoa até hoje entre o povo Kariri-Xocó.
Era o ano de 1974. Durante a grande caminhada do ritual do Ouricuri, saindo da mata em direção à Aldeia na Rua Índios, o jovem Nhenety seguia ao lado do velho cacique Otávio Nidé. Cruzavam os domínios da antiga Fazenda Modelo, ainda sob o poder da CODEVASF, quando o cacique apontou com o dedo firme o Alto do Bode, um morro solitário que parecia guardar segredos ancestrais.
— Ali, — disse Otávio com a voz carregada de memória — era o lugar do nosso ritual sagrado. Ao lado do morro, nossos antepassados enterravam os mortos nas igaçabas, grandes potes de barro que chamamos de Ruñoyé.
Nhenety ouviu em silêncio. Aquela fala do cacique era mais do que lembrança; era um chamado.
Os anos passaram. Em 1986, a Fazenda Modelo já estava sob domínio dos Kariri-Xocó. E foi então que Akinoá, caçador respeitado da aldeia, saiu para a mata com seu fiel cachorro e seu filho Kayany. Seguiam em busca de caça, como era costume. O cachorro logo farejou um tatu, e Akinoá começou a cavar o chão seco com as mãos firmes, ajudado por Kayany.
A terra se abriu, e ali, meio escondido entre as raízes, repousava um Ruñoyé. Um grande pote de barro, uma antiga urna funerária esquecida pelo tempo, mas não pela terra.
Akinoá estacou. O silêncio da mata se fez profundo.
— Pai... e o tatu? — perguntou Kayany.
O velho não respondeu de imediato. Cobriu com cuidado a abertura da terra, como quem fecha os olhos de um ancião adormecido.
— Esse tatu não é caça, meu filho. Ele é mensageiro. Ele veio nos mostrar o que havíamos esquecido — disse por fim, com os olhos úmidos.
Descendo o morro, a lagoa se abriu diante deles, espelhando o céu. Estava repleta de peixes, e foi com o presente das águas que retornaram à aldeia. Não havia carne de caça naquele dia, mas havia fartura e revelação.
À noite, ao redor da fogueira, Akinoá contou sua história. Homens, mulheres, crianças e anciãos ouviram em silêncio, como se o próprio tempo estivesse sentado entre eles. E assim, os Kariri-Xocó souberam do reencontro com o cemitério sagrado dos antigos, guardado pelos Ruñoyé e revelado pelo espírito do tatu, o Tõnbozu.
Desde então, quando se vê um tatu caminhando sozinho na mata, diz-se que talvez ele seja um guia. Um guardião dos caminhos do passado.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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