sexta-feira, 27 de junho de 2025

UBADI, Os Enfeites da Alma






Nas margens do rio onde as águas correm mansas como os sussurros dos ancestrais, vivia a anciã Kamurá, guardiã da memória do povo Kariri. Era ela quem ensinava aos mais jovens os segredos do Ubadi – os enfeites que não apenas adornavam o corpo, mas também a alma e a história dos que vieram antes.


— Ubadi não é só bonito, não, dizia Kamurá com sua voz rouca de sabedoria. — É quem nós somos.


Certa manhã, Yacané, uma menina de olhos vivos como estrela antes da aurora, aproximou-se da anciã carregando penas, sementes e um pedaço de barro.


— Vovó Kamurá, ensina pra mim?


Kamurá sorriu e a fez sentar ao seu lado, debaixo da sombra generosa do juazeiro.


— Vamos começar com as plumas. Estas vêm das aves sagradas. Vê este cocar? Cada pena aqui foi conquistada com respeito. Usamos para honrar os espíritos que voam alto — e passou o cocar sobre a cabeça da menina como uma coroa de vento e lembrança.


Ela mostrou os colares de sementes, os brincos de ossos, os braceletes de conchas e os pingentes de dentes de animais. Cada peça tinha uma história, um espírito, uma ancestralidade.


— Antes dos brancos chegarem, usávamos só o que a natureza nos dava. Hoje, alguns usam miçangas de vidro, fios coloridos e até plástico. Mas o espírito do Ubadi permanece: não é o material, é o significado.


Kamurá mergulhou os dedos em uma tigela de urucum e outra de genipapo e desenhou sobre o rosto de Yacané traços que pareciam raízes dançando.


— Essa pintura é tua identidade. Quando dançares no Toré, todos saberão quem és e de onde vens.


Depois, mostrou os cestos de cipó, feitos para colher frutas e guardar os peixes do rio. As panelas de barro, moldadas pelas mãos das mulheres, repousavam como luares secos sobre esteiras de palha.


— Vê este tacape? — disse, levantando um bastão de madeira escura, lustrado pelo tempo. — Quando o velho ancião ergue esse bastão, não é violência... é autoridade. É a palavra dos antigos que ecoa.


Yacané tocava tudo com olhos encantados, como se cada objeto fosse um livro vivo.


— Ubadi é enfeite? — perguntou com inocência.


Kamurá respondeu com firmeza doce:


— Ubadi é espelho do nosso mundo. Cada povo indígena tem seu modo de fazer, seu rito, sua alma. Os elementos podem ser parecidos, mas o sentido nasce do coração de cada etnia.


Naquela noite, à beira da fogueira, Yacané dançou com seu cocar de penas simples, pintura fresca no rosto e o colar que ela mesma havia feito com sementes do mato. E todos ali, dos mais novos aos mais velhos, viram que o espírito do Ubadi brilhava naquela menina como o fogo ancestral que nunca se apaga.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





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