sexta-feira, 27 de junho de 2025

UOCRÓ IDABACRÚ, Caminho de Pedra Sobre o Rio







Um Conto Sobre a Ponte no Rio São Francisco 


A Rua dos Índios nunca mais foi a mesma desde que os primeiros roncos de máquinas pesadas cortaram o silêncio ancestral da aldeia. Era o ano de 1969, quando gigantes de ferro começaram a riscar a terra entre Porto Real do Colégio, em Alagoas, e Propriá, em Sergipe. Os velhos, sentados em suas cadeiras de palha, olhavam desconfiados os caminhões que faziam tremer o chão como se anunciassem uma nova era.


Na antiga sede da fábrica de arroz, às margens da Rua dos Índios, ergueu-se o acampamento da COENG S/A — a empresa que viera construir a rodovia BR-101. Do dia para a noite, o espaço se encheu de barulho: eram martelos, pás, escavadeiras, tratores e homens suando sob o sol quente do sertão. Mas não eram apenas forasteiros — muitos indígenas Kariri-Xocó também foram contratados, agora com carteira assinada, para trabalhar como serventes, pedreiros, operadores de máquinas.


Entre os mais velhos, havia certo orgulho e receio. A estrada era símbolo de progresso, diziam, mas também carregava um rugido desconhecido. No entanto, o que mais despertava a atenção de todos era a grandiosa promessa que pairava sobre o Rio São Francisco: a construção de uma ponte de concreto ligando Colégio a Propriá. Uma travessia que há muito tempo era feita por barcaças e canoas, agora ganharia corpo de pedra sobre as águas.


A obra levou três longos anos. O movimento era incessante: pás carregadeiras e rolos compactadores dançavam sobre o barro vermelho como se esculpissem um novo caminho. A rua virou oficina viva — havia tornearia, depósitos de peças, engenheiros, topógrafos, cozinheiras, e risos no fim do dia. Crianças espiavam entre os paus-de-arara e, entre os adultos, crescia a lenda.


Foi assim que os anciãos batizaram a ponte ainda em construção com o nome de Uocró Idabacrú — "Caminho de Pedra Sobre o Rio". O nome brotou da língua e do espírito do povo, pois não era só concreto: era passagem, era transformação.


Quando a COENG partiu em 1970, outra empresa chegou para continuar o serviço de pavimentação, foi a Construtora Andrade Gutierrez, para fazer a pavimentação de asfalto na BR 101. Mais indígenas foram chamados. E o trabalho seguiu, ritmado pela esperança e pela poeira. A notícia se espalhava nas rodas de toré, nas feiras e nas casas: a ponte estava quase pronta. 


Então, finalmente, no dia 5 de dezembro de 1972, o céu de Colégio acordou diferente. O sol parecia brilhar com mais força sobre o leito do Velho Chico. Era o dia da inauguração. Autoridades municipais, estaduais e até representantes do governo federal desceram sobre a aldeia. O povo se alinhou às margens da ponte, alguns com roupa de festa, outros ainda com a poeira do chão.


E foi então que o primeiro trem atravessou a ponte, seguido por carros de muitos modelos e cores. Alguns homens choraram, outros bateram palmas. Os mais jovens não entenderam de imediato, mas os velhos sabiam: estavam testemunhando um rito de passagem entre dois mundos.


A ponte foi entregue ao tempo. Mas o nome indígena, Uocró Idabacrú, ficou cravado não nas placas, mas na memória. Um caminho de pedra, sim — mas também de história, suor e pertencimento.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




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