Um Conto Sobre Carrinhos de Brinquedos
O sol já passava da metade do céu quando Nhenety, ainda menino, viu a poeira subir na Rua dos Índios. Era Antônio, seu irmão mais velho, empurrando com cuidado um carrinho feito de madeira, com rodas de borracha cortadas de um pneu velho e faróis desenhados com carvão. As crianças corriam ao redor, os olhos brilhando como se estivessem diante de um carro de verdade.
— Olha o caminhão novo que o Antônio fez! — gritou um dos meninos, puxando uma cordinha amarrada no para-choque de seu próprio carrinho, feito com uma lata de óleo marca Lubrax, bem colorida.
Naquele tempo, as vozes dos motores eram feitas com a boca:
— Vruuuuum! Grrrrrr! Póóó!
A rua inteira se enchia de sons, risos e poeira dançante.
Naquele ano, 1970, a aldeia Kariri-Xocó sentia a mudança do mundo. A BR-101 recém-construída havia cortado as terras próximas como uma serpente de pedra e fumaça. Os carros agora passavam mais frequentemente, máquinas pesadas de ferro surgiam como bichos estranhos sobre rodas. Mas para as crianças, aquele novo mundo era apenas mais um motivo para sonhar.
— Ibapiné Benhekié! — dizia Nhenety, orgulhoso, enquanto mostrava o novo modelo feito de inhame seco e pregos.
— Carrinhos de brincar, explicava ele, misturando sua língua ancestral com o brilho nos olhos da invenção.
Havia de tudo: caminhõezinhos com carroceria feita de madeira, escavadeiras com colheres como pás, ônibus de duas latas coladas com cera de abelha. Os mais corajosos andavam nos carrinhos de rulimã, que desciam a ladeira do fim da rua num voo baixo, rasgando o vento com gritos e gargalhadas.
Antônio era um artista dos brinquedos. Nunca cobrava nada. Só pedia:
— Traga sua lata, um prego, um pedaço de madeira e muita vontade de brincar.
Os meninos e meninas formavam fila em sua porta. Quando ele entregava o carrinho, havia um ritual: todos corriam até o campo, faziam uma pista de terra com as mãos e iniciavam a grande corrida. Era o Grande Prêmio da Aldeia!
Hoje, os carrinhos são de plástico, vêm das lojas com botões, sons programados e luzes que piscam. Mas nenhum deles carrega o cheiro da madeira cortada à faca, o peso da borracha reciclada ou o carinho de quem moldou com as próprias mãos.
Nhenety, agora adulto, ainda ouve, de vez em quando, o barulho de um motor de boca ao longe. Sabe que é só lembrança... ou talvez o espírito da infância correndo descalço pela Rua dos Índios.
E sempre que fecha os olhos, lá estão os Ibapiné Benhekié, pequenos carros de brincar, deslizando no tempo e na poeira da memória.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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