Um Conto Sobre as Canoas do Opará
Nas margens sagradas do Opará, o grande rio que corre como uma veia viva entre o coração do sertão e o ventre do mar, viviam os povos nativos com seus ubás — as canoas leves, talhadas da árvore com o saber dos anciãos. Com elas, os indígenas pescavam, caçavam, navegavam para longe, em silêncio ou cantando para as águas, levando nos cascos suas vidas, cerâmicas, alimentos e histórias.
Era o tempo do rio livre, do vento nos cabelos, da fala das águas.
Mas então, vieram os estrangeiros. E com eles, nomes novos para as coisas antigas. O Opará, batizado pelos lusos como Rio São Francisco, logo viu nascer sobre suas águas imensas canoas maiores, com velas que dançavam ao sopro do vento. Os Kariri-Xocó as chamaram de Ubacruté — canoa de pano, de ubá (canoa) e cruté (pano). Aquelas embarcações não vinham apenas pescar ou caçar — elas carregavam o peso do mundo novo: mercadorias, passageiros, o tempo mudando de rumo.
Foi o início do Ubacheté, o tempo das canoas de panos.
O rio, que antes era só canção de natureza, agora cantava também o comércio e a transformação. Nas quintas-feiras, era possível ver o espetáculo das velas coloridas descendo o rio, vindas dos confins do sertão para abastecer as feiras de Propriá, em Sergipe, e Penedo, em Alagoas. No domingo, elas voltavam, subindo contra a corrente, levando sonhos e suprimentos.
O Opará virava espelho de panos flutuantes. Canoas cheias de mel, animais, arroz, feijão, carvão, algodão e ferramentas. A vida pulsava em cada casco. As cidades cresciam, fábricas de algodão se erguendo, beneficiadoras de arroz batendo como corações de madeira.
E as canoas tinham nomes — como se tivessem alma. Canindé, Goiânia, Marialva, Lusitânia, Cordilheira — cada uma com sua história, seu timoneiro, sua rota no tempo.
Mas o Ubacheté começou a adormecer. Em 1972, a ponte da BR-101 cortou o rio como faca, ligando Porto Real do Colégio, em Alagoas, a Propriá, em Sergipe. O progresso veio de asfalto, pneus e buzinas. O que antes levava dias, agora se fazia em horas. As canoas recolheram seus panos. O tempo das águas ficou em silêncio.
Ainda assim, vez ou outra, é possível ver a velha Lusitânia deslizando como uma memória viva, resistindo à pressa, ao ruído, ao esquecimento. Como quem diz: "o tempo das canoas não acabou, apenas repousa no fundo do rio, onde os espíritos antigos ainda navegam".
E assim segue o Opará, levando nas correntezas o passado e os sonhos de um povo que nunca deixou de ouvir a canção das águas.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
🌊 VERSÃO EM CORDEL: UBACHETÉ – O TEMPO DAS CANOAS DE PANOS
Nas águas do velho Opará,
Corria a vida ligeira,
Com ubás de tronco e reza,
Feitas na beira ribeira.
Era o tempo dos antigos,
Na força da mão certeira.
Os povos Kariri-Xocó
Com saber de mil geração,
Pescavam, caçavam, andavam,
Guiados por coração.
Levavam cerâmica e fruto
Pra toda celebração.
Mas o branco chegou de vela,
Trouxe o pano e o batizado,
Mudou o nome do rio
Com seu nome importado.
São Francisco ele chamou
O rio antes encantado.
E as canoas aumentaram,
Feitas com vela e madeira,
Com panos ao vento solto,
Descendo na quinta-feira.
Subiam no fim de semana,
Fazendo a rota inteira.
O povo chamou Ubacruté,
Ubá com cruté amarrado,
“Canoa de pano”, disseram,
Pelo vento carregado.
O tempo mudou de nome:
Ubacheté foi chamado.
Propriá e Penedo eram
Feiras de grande valor,
Ali chegavam canoas
Cheias de cor e sabor.
Era o tempo do algodão,
Do arroz e do lavrador.
Trazia-se mel, carvão,
Feijão, galinha e machado,
Ferramenta e criação,
Do sertão pro mercado.
A canoa era caminho,
O rio era seu estrado.
E as canoas tinham nome,
Como gente, como irmão:
Canindé, a velha Lusita,
Goiânia do coração,
Cordilheira e Marialva
Navegavam na missão.
Mas veio a tal rodovia
Cortando a vida em pedaço,
Em setenta e dois chegou
Com cimento, ferro e aço.
E as canoas se calaram,
O rio perdeu seu compasso.
A ponte uniu os estados,
Mas separou a canção,
Que as canoas entoavam
Com o remo e o coração.
O Ubacheté dormiu
No fundo da embarcação.
Ainda resiste a memória
Nas margens do velho chão,
Na velha Lusitânia viva
Com mais de um século em mão.
Navega como uma reza,
Num silêncio de oração.
Pois o rio não esqueceu
Do tempo das velas dançando,
Dos panos no sol soprando
E o povo se organizando.
Ubacheté vive em nós,
Enquanto houver quem vá cantando.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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