segunda-feira, 7 de julho de 2025

UBACHETÉ, O Tempo das Canoas de Panos






Um Conto Sobre as Canoas do Opará 


Nas margens sagradas do Opará, o grande rio que corre como uma veia viva entre o coração do sertão e o ventre do mar, viviam os povos nativos com seus ubás — as canoas leves, talhadas da árvore com o saber dos anciãos. Com elas, os indígenas pescavam, caçavam, navegavam para longe, em silêncio ou cantando para as águas, levando nos cascos suas vidas, cerâmicas, alimentos e histórias.


Era o tempo do rio livre, do vento nos cabelos, da fala das águas.


Mas então, vieram os estrangeiros. E com eles, nomes novos para as coisas antigas. O Opará, batizado pelos lusos como Rio São Francisco, logo viu nascer sobre suas águas imensas canoas maiores, com velas que dançavam ao sopro do vento. Os Kariri-Xocó as chamaram de Ubacruté — canoa de pano, de ubá (canoa) e cruté (pano). Aquelas embarcações não vinham apenas pescar ou caçar — elas carregavam o peso do mundo novo: mercadorias, passageiros, o tempo mudando de rumo.


Foi o início do Ubacheté, o tempo das canoas de panos.


O rio, que antes era só canção de natureza, agora cantava também o comércio e a transformação. Nas quintas-feiras, era possível ver o espetáculo das velas coloridas descendo o rio, vindas dos confins do sertão para abastecer as feiras de Propriá, em Sergipe, e Penedo, em Alagoas. No domingo, elas voltavam, subindo contra a corrente, levando sonhos e suprimentos.


O Opará virava espelho de panos flutuantes. Canoas cheias de mel, animais, arroz, feijão, carvão, algodão e ferramentas. A vida pulsava em cada casco. As cidades cresciam, fábricas de algodão se erguendo, beneficiadoras de arroz batendo como corações de madeira.


E as canoas tinham nomes — como se tivessem alma. Canindé, Goiânia, Marialva, Lusitânia, Cordilheira — cada uma com sua história, seu timoneiro, sua rota no tempo.


Mas o Ubacheté começou a adormecer. Em 1972, a ponte da BR-101 cortou o rio como faca, ligando Porto Real do Colégio, em Alagoas, a Propriá, em Sergipe. O progresso veio de asfalto, pneus e buzinas. O que antes levava dias, agora se fazia em horas. As canoas recolheram seus panos. O tempo das águas ficou em silêncio.


Ainda assim, vez ou outra, é possível ver a velha Lusitânia deslizando como uma memória viva, resistindo à pressa, ao ruído, ao esquecimento. Como quem diz: "o tempo das canoas não acabou, apenas repousa no fundo do rio, onde os espíritos antigos ainda navegam".


E assim segue o Opará, levando nas correntezas o passado e os sonhos de um povo que nunca deixou de ouvir a canção das águas.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




🌊 VERSÃO EM CORDEL: UBACHETÉ – O TEMPO DAS CANOAS DE PANOS




Nas águas do velho Opará,

Corria a vida ligeira,

Com ubás de tronco e reza,

Feitas na beira ribeira.

Era o tempo dos antigos,

Na força da mão certeira.


Os povos Kariri-Xocó

Com saber de mil geração,

Pescavam, caçavam, andavam,

Guiados por coração.

Levavam cerâmica e fruto

Pra toda celebração.


Mas o branco chegou de vela,

Trouxe o pano e o batizado,

Mudou o nome do rio

Com seu nome importado.

São Francisco ele chamou

O rio antes encantado.


E as canoas aumentaram,

Feitas com vela e madeira,

Com panos ao vento solto,

Descendo na quinta-feira.

Subiam no fim de semana,

Fazendo a rota inteira.


O povo chamou Ubacruté,

Ubá com cruté amarrado,

“Canoa de pano”, disseram,

Pelo vento carregado.

O tempo mudou de nome:

Ubacheté foi chamado.


Propriá e Penedo eram

Feiras de grande valor,

Ali chegavam canoas

Cheias de cor e sabor.

Era o tempo do algodão,

Do arroz e do lavrador.


Trazia-se mel, carvão,

Feijão, galinha e machado,

Ferramenta e criação,

Do sertão pro mercado.

A canoa era caminho,

O rio era seu estrado.


E as canoas tinham nome,

Como gente, como irmão:

Canindé, a velha Lusita,

Goiânia do coração,

Cordilheira e Marialva

Navegavam na missão.


Mas veio a tal rodovia

Cortando a vida em pedaço,

Em setenta e dois chegou

Com cimento, ferro e aço.

E as canoas se calaram,

O rio perdeu seu compasso.


A ponte uniu os estados,

Mas separou a canção,

Que as canoas entoavam

Com o remo e o coração.

O Ubacheté dormiu

No fundo da embarcação.


Ainda resiste a memória

Nas margens do velho chão,

Na velha Lusitânia viva

Com mais de um século em mão.

Navega como uma reza,

Num silêncio de oração.


Pois o rio não esqueceu

Do tempo das velas dançando,

Dos panos no sol soprando

E o povo se organizando.

Ubacheté vive em nós,

Enquanto houver quem vá cantando.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





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