VERSO DA FALSA FOLHA DE ROSTO
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FOLHA DE ROSTO
WOROY, HISTÓRIA, COSMOLOGIA KARIRI-XOCÓ
Contos – Volume 1
Coletânea
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
Local de publicação: Brasil
Ano: 2025
FICHA CATALOGRÁFICA
K311
Kariri-Xocó, Nhenety.
Woroy: história, cosmologia Kariri-Xocó : contos – volume 1 : coletânea / Nhenety Kariri-Xocó. – Brasil, 2025.
XXX p. ; il.
Inclui referências.
Cosmologia indígena. 2. Kariri-Xocó. 3. Tradição oral. 4. Contos.
I. Título.
CDD: 398.2
DEDICATÓRIA
Aos anciãos e guardiões da memória de meu povo,
aos espíritos que caminham nos caminhos do tempo
e às futuras gerações Kariri-Xocó,
que herdarão estas histórias como quem herda um fogo sagrado.
Dedico este livro à força que me antecede
e à força que seguirá adiante.
AGRADECIMENTOS
Agradeço às pessoas, instituições e memórias que contribuíram para a existência desta obra.
Aos anciãos Kariri-Xocó, cuja sabedoria preservada tornou possível a continuidade dos relatos aqui reunidos.
Aos parentes que fortaleceram este caminho com palavras, ensinamentos e presença.
A toda comunidade que mantém viva a história e a cosmologia de nosso povo.
E a cada leitor que se dispõe a conhecer, respeitar e valorizar esta herança cultural ancestral.
A todos, meu sincero agradecimento.
EPÍGRAFE
"A memória de um povo é sua estrada mais antiga;
quem caminha por ela mantém vivo o tempo."
SUMÁRIO
Sumário
Prefácio / Apresentação / Introdução ………….. p. __
Contos da Coletânea Woroy – Organização Geral ………….. p. __
Conto 1 - Çasonsé o Olho de Deus, A Criação Segundo a Tradição
Conto 2 - Rabynhiu, Cinza Preta do Mundo
Conto 3 - Arãkieruté, O Pano do Céu
Conto 4 - Iwoddatí, O Mundo Circular e Estelar
Conto 5 - O Conto de Inhinho - O Deus Nativo Kariri
Conto 6 - Sonsé Deus o Antigo Antepassado
Conto 7 - Antsetçoeyorã, A Grande Família da Natureza
Conto 8 - Bechiantse, Natureza é a Roça
Conto 9 - Sambyyé, Verdades Ancestrais
Conto 10 - Natiá, A Aldeia Original dos Kariri
Apêndice / Glossário (se houver).. p. __
Dados Biográficos do Autor ………….. p. __
Referências.......p. __
PREFÁCIO / APRESENTAÇÃO / INTRODUÇÃO
A presente obra reúne uma coletânea de contos que dialogam com a história, a cosmologia e a tradição oral do povo Kariri-Xocó.
“Woroy – História, Cosmologia Kariri-Xocó – Contos, Volume 1” nasce como registro literário e memorial, preservando fragmentos da visão de mundo ancestral e dos caminhos culturais que moldam a identidade deste povo.
O propósito deste volume é apresentar narrativas que se entrelaçam com valores, símbolos e ensinamentos transmitidos de geração em geração, fortalecendo assim o vínculo entre passado, presente e futuro. A obra integra elementos da memória coletiva, da espiritualidade, dos relatos formadores e de histórias que atravessam o tempo, aqui organizados em forma literária para alcançar diferentes leitores.
O livro também cumpre função documental, registrando aspectos fundamentais da cosmologia Kariri-Xocó e oferecendo ao público uma oportunidade de aproximar-se das tradições, das percepções de mundo e da riqueza narrativa deste povo indígena do Nordeste brasileiro.
Esta coletânea inaugura um conjunto maior de volumes que continuarão explorando a diversidade simbólica, histórica e cultural que compõe a base da tradição Kariri-Xocó.
ORGANIZAÇÃO DOS CONTOS
Os contos presentes nesta coletânea estão organizados de acordo com sua natureza temática e com sua função dentro da tradição oral. Cada narrativa foi posicionada de modo a preservar sua coerência interna, valor cultural e fluxo de leitura, permitindo ao leitor transitar entre diferentes aspectos da cosmologia e da história Kariri-Xocó.
A organização segue critérios que consideram:
Elementos formadores: mitos de origem, relatos ancestrais e simbolismos fundamentais.
Memórias históricas: episódios e narrativas que dialogam com o percurso do povo.
Caminhos espirituais: histórias que tratam de ensinamentos e perspectivas cosmológicas.
Vida comunitária: narrativas relativas à vivência coletiva e ao território.
1 . ÇASONSÉ O OLHO DE DEUS, A CRIAÇÃO SEGUNDO A TRADIÇÃO
No princípio dos tempos, quando o vazio ainda era silêncio e escuridão, Sonsé, o Grande Criador, ergueu-se no infinito.
E com voz profunda e poderosa, proclamou ao nada:
— "Que se faça o mundo sagrado, a aldeia espiritual de onde tudo brotará: Raddanantoan!"
Num instante, luzes de pura essência se acenderam, dançando em espirais, formando a aldeia invisível aos olhos futuros, mas eterna na morada dos espíritos. Era um lugar de equilíbrio, onde o tempo não corria e o ser não precisava de forma.
Contemplando sua obra, Sonsé sentiu que era bom, mas incompleto.
Então, novamente, elevou sua palavra criadora:
— "Que da essência invisível brote também o mundo material, para que os seres possam tocar e ser tocados: Raddasanè!"
E assim surgiram os rios que rasgaram a terra, as montanhas que se ergueram até o céu, e os ventos que sopraram os primeiros cantos da existência.
Mas Sonsé, sábio, sabia que a criação precisava de guardião, alguém capaz de ver com olhos que nenhum outro ser possuiria. Assim, retirou de si uma centelha viva, moldando com suas próprias mãos a figura luminosa de seu filho.
— "Meu filho, Çasonsé, tu serás o Olho de Deus. Verás tudo: o que nasce e o que morre, o que cresce e o que se desfaz. A ti confio Raddasanè, para que continues minha obra e mantenhas o equilíbrio entre o espírito e a matéria."
Çasonsé abriu os olhos pela primeira vez, e ao fazê-lo, a luz se espalhou ainda mais pelo mundo recém-criado. Olhou para o pai e disse:
— "Honrarei tua vontade, meu pai. Onde houver movimento, ali estarei. Onde houver vida, ali verei. Serei a vigília eterna entre o que é e o que será."
Sonsé sorriu, e com um sopro suave lançou Çasonsé sobre Raddasanè. O filho pousou entre as árvores e as pedras, caminhou pelos rios, escalou as montanhas e mergulhou nas profundezas da terra, abençoando cada lugar com sua visão protetora.
Durante eras incontáveis, Çasonsé trabalhou silenciosamente, guiando as forças da natureza, até que, um dia, voltou-se para o céu e perguntou ao pai:
— "Pai, e quanto àqueles que herdarão esta terra? Não é chegada a hora?"
E Sonsé, com voz serena como o sopro da brisa sobre as águas, respondeu:
— "Sim, meu filho. Agora que a casa está pronta, chamemos aqueles que irão caminhar sobre ela."
Então, Sonsé, com seu hálito divino, soprou sobre Raddasanè, e do barro e da folha, da água e da chama, surgiram os primeiros humanos. Homens e mulheres despertaram, ouvindo no fundo de suas almas a voz ancestral:
— "Filhos e filhas da terra, lembrai-vos: fostes criados do mundo visível, mas trazem em si a centelha do mundo espiritual. Çasonsé, o Olho de Deus, sempre vos verá e protegerá."
E desde então, o povo Kariri-Xocó carrega em sua memória sagrada esta história, sabendo que há olhos invisíveis que os guiam, e que o mundo é um encontro perpétuo entre o espiritual e o material.
E quando os pajés, ao redor do fogo, contam esse mito, dizem em uníssono:
— "Ainda hoje, Çasonsé observa. Ainda hoje, Raddanantoan brilha. E ainda hoje, Sonsé cria."
2. RABYNHIU, CINZA PRETA DO MUNDO
Ninguém sabe ao certo quantos mundos Sonsé já criou. Nem mesmo os mais antigos anciãos, cujas palavras são como raízes profundas, poderiam dizer. Apenas sabemos que ele, o Grande Criador Kariri-Xocó, sempre esteve e sempre estará, soprando vida sobre as cinzas do que foi.
Quando um mundo chega ao fim, não há tristeza. As estrelas se apagam lentamente, como brasas que cumpriram sua missão. As montanhas desabam em poeira, os rios cessam seu canto e as árvores entregam-se ao sono eterno. Sonsé então recolhe com suas mãos de luz a cinza sagrada do mundo que se foi — a cinza preta, densa, silenciosa: Rabynhiu.
Com reverência, ele a junta em um só ponto, como quem modela um sonho antigo. Aproxima então sua boca divina e sopra suavemente.
E nesse sopro, o impossível acontece: do escuro da cinza preta surgem as primeiras faíscas, que logo inflamam-se em um fogo novo, puro, incontido. Assim, as estrelas despertam uma a uma, iluminando o vazio como olhos ancestrais que se abrem. O fogo das estrelas dança na imensidão e, com ele, começa a formar-se um novo mundo.
Montanhas emergem, rios voltam a correr, árvores brotam com raízes que alcançam o coração da terra. Animais se espalham, homens e mulheres erguem-se novamente, guiados pela memória que, mesmo adormecida, sempre ressurge com o sopro de Sonsé.
Assim foi, assim é e assim será: mundos se sucedendo, cada um feito das cinzas sagradas do anterior, como carvão que nunca se apaga, apenas se transforma.
Rabynhiu — o Carvão da Eternidade — é o que resta e o que permanece, é a certeza de que a vida nunca termina, apenas se renova.
E neste mundo em que agora vivemos, olhamos para as estrelas e, embora não saibamos quantos mundos vieram antes, sentimos no brilho delas o calor do fogo eterno de Sonsé e a força silenciosa da cinza preta de onde tudo nasceu.
3. ARÃKIERUTÉ, O PANO DO CÉU
Desde o princípio dos tempos, quando ainda não existia a separação entre os mundos, a natureza foi consagrada como mãe e mestra de todas as coisas. Para nós, os nativos, cada ser carrega um sopro do sagrado, e cada fenômeno é um sinal da presença viva dos espíritos. Nada existe que não tenha, ao mesmo tempo, sua forma material e sua essência espiritual.
Assim nos ensinaram os mais velhos, guardiões das palavras ancestrais: “Tudo o que vês, também é o que não vês”. O vento não é apenas ar em movimento, mas o hálito dos antigos; a água não é apenas líquido, mas o sangue primordial da Terra-Mãe. E o céu… ah, o céu! O céu é o mais sublime dos mistérios.
Dizem que, no tempo do começo, quando a escuridão e a luz ainda dançavam em harmonia, Sonsé, o Deus criador, sentou-se sobre a grande pedra do mundo e, com paciência infinita, começou a tecer. Não tecia com fios comuns, mas com linhas de energia luminosa, extraídas do próprio ventre do universo. Cada estrela que hoje cintila foi um nó apertado de seus dedos divinos; cada nuvem, um sopro delicado que afrouxava o tecido; cada raio de luar, uma franja solta de sua criação.
Quando terminou, estendeu sobre nós o grande manto azul-escuro, e assim nasceu arãkié: a abóbada celeste, o véu que nos cobre e nos protege, o espelho das nossas esperanças e temores. O céu, para nós, nunca foi apenas cenário, mas o testemunho vivo da arte de Sonsé.
Então, para celebrar e lembrar deste gesto criador, nossos ancestrais deram origem ao cruté, o pano que, para nós, representa o próprio céu. Não é um tecido qualquer. Ao ser fiado e tingido, ele carrega a memória do manto sagrado, e ao ser vestido, transforma quem o usa. Passamos, assim, a caminhar cobertos não apenas de tecido, mas da espiritualidade que dele emana.
Por isso, cada vez que vestimos o cruté, sentimos Sonsé mais próximo, como se estivéssemos enlaçados ao céu com os fios invisíveis da criação. Vestir-se do pano é, portanto, um rito de passagem entre o mundo terreno e o mundo espiritual; é habitar, mesmo que por um instante, o espaço onde os deuses moram e as estrelas repousam.
E assim nasceu a palavra sagrada: arãkieruté, que dizemos com solenidade e respeito. Ela significa: “o pano é o tecido do céu”. Não há entre nós quem não saiba deste significado, pois ele é transmitido de geração em geração, como um fio que nunca se rompe.
Quando os jovens são iniciados, aprendem que, ao vestir o cruté, estão se revestindo do próprio céu; que cada dobra do pano é uma dobra do tempo, e cada costura, uma linha que os liga aos que vieram antes e aos que ainda virão.
Assim seguimos, caminhando sob e com o céu, fiéis àquilo que Sonsé nos ensinou: que tudo está tecido junto, inseparável, como o pano ao corpo, como o espírito à matéria, como nós ao cosmos.
E enquanto houver quem conte esta história, enquanto houver quem pronuncie arãkieruté, o céu nunca deixará de nos vestir, e nós nunca deixaremos de pertencer a ele.
4. IWODDATÍ, O MUNDO CIRCULAR E ESTELAR
Desde o princípio, quando o céu ainda era um grande manto de algodão e a terra um ventre quente, os Kariri-Xocó conheciam o segredo: nossa Terra não é um pedaço quebrado, cercado por arames, mas IWODDATÍ — o Mundo Circular e Estelar.
Na aldeia, Jurema ouvia sempre seu avô, Pajé Kauã, contar:
— IWODDATÍ é onde a terra se encontra com o céu, com as serras, com o rio, a floresta, os bichos, as estrelas. Nosso território é o sol, a lua, as nuvens. É tudo o que precisamos para viver e para sermos quem somos.
Um dia, Jurema perguntou:
— Avô, onde termina nossa Terra?
O velho sorriu, os olhos brilhando como o reflexo da lua no rio:
— Olhe para o horizonte, minha neta. Vê onde o céu toca a serra? Lá está o fim e o começo. Mas, se você caminhar até lá, o horizonte andará mais adiante, e você verá que nossa Terra nunca acaba.
Jurema olhou, desconfiada:
— Nunca acaba?
— Nunca. Porque nossa Terra não é só o chão que pisamos. É o céu onde as estrelas dormem, a água que corre, o vento que dança, a árvore que canta.
Então Jurema subiu à serra mais alta. De lá, viu o rio abraçando a floresta, o vento costurando nuvens, a luz da manhã beijando as folhas. O céu imenso se curvava, como um círculo, protegendo tudo.
Naquele instante, entendeu: IWODDATÍ.
Desceu correndo até o avô:
— Agora eu sei! Nosso território é redondo, é o Mundo Circular e Estelar!
Pajé Kauã sorriu e completou:
— E assim é para todos os povos da Terra. Cada povo tem o seu IWODDATÍ, seu horizonte circular onde vive, canta, celebra, luta e sonha. Nenhum território é quadrado ou fechado; todos são círculos que acolhem a vida.
Jurema então passou a ensinar às crianças da aldeia:
— Nunca deixem que digam que nossa Terra é só um pedaço de chão. Nossa Terra é o mundo inteiro que respira com a gente.
E, todas as noites, ao olhar para o céu cheio de estrelas, Jurema sorria, lembrando: IWODDATÍ está em toda parte, onde a vida e o sonho seguem juntos, girando, brilhando, eternamente.
5. O CONTO DE INHINHO - O DEUS NATIVO KARIRI
No tempo antigo, quando ainda não havia caminhos no chão da terra e o silêncio era o idioma dos ventos, Nhinho ou Inhinho, o Deus Kariri, desceu sobre o vazio e começou a cantar. Seu canto era feito de toré, de vento e de luz. E de seu canto nasceu a Mãe Terra.
De sua palavra sagrada brotaram as montanhas, os rios, os mares, os bichos, os pássaros, as árvores e as estrelas. Tudo se moveu para compor o grande corpo da vida. Então, sob uma floresta cheia de verde e sopros de encantamento, Nhinho reuniu todos os seres que criou. Foi ali que ele moldou, do barro da terra e do sopro do espírito, Ninhó — o primeiro índio, feito à sua imagem.
Ninhó era um homem de fala doce, de corpo pintado e coração valente. Ele escutava os conselhos de Nhinho e aprendeu com Ele os segredos da pesca, da caça, da canoa, da oca e da vida em aldeia. O mundo então era jovem, e tudo que se fazia era em comunhão com os espíritos que habitavam cada canto do mato, do céu e da água.
Nhinho, o Deus Primordial, não se mostrou apenas ao povo Kariri. Ele caminhou pelos quatro círculos do horizonte, e a cada povo que encontrava, se vestia com um rosto diferente, com uma fala e um costume próprio. Para cada terra, uma cultura. Para cada cultura, uma forma de viver em harmonia com o ecossistema que a envolvia.
Assim cresceu o mundo: diverso, entrelaçado, cheio de cantos, ritos e saberes. Todos os povos, filhos da mesma Avó sagrada — a Mãe Terra. Tudo que era colhido, caçado ou usado pedia licença, fazia-se com respeito. Os Kariri sabiam que a vida era um fio sagrado que ligava todos os seres. E por isso o mundo respirava em paz.
Mas um dia, quando o sol estava triste e os animais calados, chegaram pelo mar grandes barcos com asas de pano. Eram os homens de além-mar. Eles não pediram licença. Cortaram as árvores, apagaram os cantos, rasgaram o chão e escravizaram os filhos da Terra.
Ninhó viu seu povo sendo destruído, viu sua floresta chorando, e clamou a Nhinho. O Deus, entristecido, recolheu-se no alto das serras, nos olhos dos pajés e nos corações das crianças indígenas.
Hoje, os filhos de Ninhó ainda vivem e cantam, ainda lutam e resistem. A Mãe Terra, porém, está doente. Vê seus filhos morrendo pelas mãos de seus próprios irmãos. Ela chora em silêncio, pedindo que se lembrem: a Terra é nossa casa, é sagrada, é viva.
E enquanto houver alguém que conte esta história, o canto de Nhinho continuará ecoando nos ventos.
6. SONSÉ, DEUS O ANTIGO ANTEPASSADO
Na aldeia Kariri-Xocó, às margens do rio São Francisco, em Porto Real do Colégio, Alagoas, o tempo corria diferente. O canto dos pássaros, o sussurro das folhas e o maracá sagrado preenchiam os dias de quem ali vivia em comunhão com a mata e os saberes antigos.
Certa manhã, chegou um visitante. Era o professor Luiz Sávio, homem de fala mansa e olhos curiosos, vindo da Universidade Federal de Alagoas. Trazia no coração um respeito sincero pela cultura dos povos originários. Ao me encontrar, estendeu a mão e disse com gratidão:
— Nhenety, falei com o pajé e recebi permissão para visitar a floresta sagrada do Ouricuri, onde se encontra a aldeia ancestral. Você pode nos acompanhar?
Assenti com o coração aberto. Caminhamos juntos pelas veredas da mata. Cada passo do professor era de descoberta, e seus olhos brilhavam ao tocar com os sentidos o mundo vivo que nos rodeava. Sentiu-se conectado com algo maior, como se uma memória adormecida despertasse em sua alma.
Depois de um tempo em silêncio, ele me olhou com respeito e perguntou:
— Nhenety... o ritual do Ouricuri é um segredo?
— Sim, professor — respondi com serenidade.
Ele hesitou, mas continuou:
— E o ritual dos Kariri-Xocó... tem Cristo?
Sorri com os olhos e, com o cuidado que a tradição exige, respondi:
— Professor, é um segredo. Mas posso lhe contar o que é permitido.
Fitei o céu entre as copas das árvores e continuei:
— Sim, tem Cristo. Mas não com esse nome. O Cristo dos brancos usa roupa, tem cabelos claros, barba, nasceu entre os hebreus. Para nós, o nome de Deus é Sonsé, o que está acima do mundo, o nosso mais antigo avô. Ele é nativo. Usa pintura no corpo, tem cocal de penas coloridas, canta toré com maracá, fala nossa língua e dança com o vento da mata.
Fiz uma pausa, olhando para o professor, que escutava com o coração aberto.
— Para os brancos, Deus é branco. Para os africanos, Deus é negro. Para nós, indígenas, Deus é da floresta. É como o Sol. Ele brilha sobre todos, mas cada povo o chama por um nome diferente. É o mesmo Sol, é o mesmo Deus.
O professor se comoveu. Seus olhos estavam úmidos, e ele me abraçou com força e ternura.
— Nhenety, gratidão por compartilhar algo tão bonito. Essa visita à floresta valeu cada passo. Aprendi muito mais do que imaginava.
E assim, daquele dia em diante, tornamo-nos grandes amigos. Escrevemos juntos artigos, livros, e abrimos caminhos de diálogo entre os saberes da academia e os saberes ancestrais. Tudo isso, guiados pela luz de Sonsé, o Antigo Avô, que fala em todos os idiomas do mundo — até mesmo no silêncio da mata.
7. ANTSETÇOEYORÃ, A GRANDE FAMÍLIA DA NATUREZA
Era uma vez uma antiga sabedoria contada pelos povos que escutam a voz da Terra e conversam com o vento. Essa sabedoria dizia que a natureza era uma grande família. Uma família viva, pulsante, onde cada elemento tinha seu papel, seu parentesco, seu espírito.
Na origem de tudo, surgiram quatro grandes anciões: o Fogo, o Ar, a Água e a Terra. O Fogo e o Ar eram os guardiões do masculino. A Água e a Terra, as matriarcas do feminino. Unidos, esses quatro formaram a semente da vida, e dela nasceu uma linhagem de incontáveis seres e fenômenos.
O Sol, irmão do Fogo, aqueceu as águas profundas dos mares. A Água, tocada por seu calor, evaporou e dançou com o Ar. Dessa união nasceu a fumaça — uma filha leve e errante. Ao se condensar no alto do céu, a fumaça se fez nuvem: a neta. Quando chorou, deu à luz a chuva: a bisneta. E as águas da chuva correram pela Terra, formando os rios: os tataranetos do Fogo e da Água. Assim crescia, geração após geração, a árvore genealógica do mundo.
Mas não parava por aí. A montanha, imensa e silenciosa, era filha da Terra e do Fogo. Foi o calor interior, vindo das profundezas, que fez a Terra estremecer e erguer suas serras, cuspindo lava pelos vulcões. Cada forma da paisagem tinha seu nascimento, seu sangue, sua linhagem.
Os humanos, por sua vez, também pertenciam a essa grande família. Em seus corpos, levavam os quatro elementos: a Terra nos ossos, a Água no sangue, o Fogo na energia que os movia, e o Ar na respiração — o espírito que sopra a vida.
Na visão dos povos originários, a Terra era chamada de Mãe, e por vezes de Avó, pois na tradição os avós criam os netos com carinho ancestral. O Sol era Pai. A Lua, Mãe. Assim se formava o laço eterno: o céu, a terra, os rios, os animais, as árvores e os humanos — todos parentes, todos filhos da mesma essência.
"Observem bem", dizia o ancião Nhenety Kariri-Xocó aos que o escutavam, "olhem as montanhas, sintam o vento, vejam a chuva e reconheçam os traços da família. Como irmãos e irmãs dessa natureza sagrada, devemos protegê-la. A Avó Natureza tem suas leis, e cabe a nós segui-las com respeito e gratidão."
E assim, quem ouvia aquela história nunca mais olhava o mundo da mesma maneira. Porque, ao reconhecer a Natureza como família, reconhecia a si mesmo como parte do todo.
8. BECHIANTSE, NATUREZA É A ROÇA
Este conto é inspirado nos saberes do povo Kariri-Xocó. Nele se entrelaçam palavras ancestrais, respeito à terra e a visão de que a Natureza não é apenas um recurso, mas um círculo sagrado de vida.
O termo Bechiantse — Natureza é a Roça — nos ensina que a Roça não é só milho, feijão e mandioca, mas tudo aquilo que o mundo nos oferece em equilíbrio: as águas, os ventos, o barro, os saberes e até os elementos que um povo não cultiva, mas outro valoriza.
Este conto foi escrito para honrar essa visão e compartilhá-la com todos os que desejam ouvir.
BECHIANTSE — A Roça do Mundo
Escutem bem, crianças, jovens e velhos. Vou lhes contar uma história antiga como o sopro do vento nas folhas da gameleira.
Em tempos passados, quando os pássaros ainda cantavam canções que os homens entendiam, havia uma aldeia Kariri-Xocó às margens do grande rio Opará.
Nessa aldeia nasceu um menino chamado Yüri, cujo nome significava Filho do Caminho da Água. Diziam os anciãos que ele nascera com os olhos do rio: profundos e curiosos.
Sua avó, a velha sábia Jurema, cuidava dele com amor e sabedoria. À noite, ao redor do fogo, ela contava:
— Wohotsé, meu neto. Toda a floresta é um ser vivo que nos alimenta. Somos parte dela, e ela é parte de nós. Não esqueça isso nunca.
Yüri ouvia, encantado. Durante o dia, corria pelos caminhos da mata com seu amigo Kauê, menino risonho e rápido como o vento. Aprendiam juntos os segredos das plantas e dos bichos.
A mandioca ensinava que a terra só dá frutos a quem a respeita. O jenipapo mostrava que a beleza vem também do que se pinta no espírito. O cipó-de-cobra dizia que certas forças precisam distância e reverência.
Mas Jurema sempre lembrava outra lição:
— Há uma palavra antiga, Yüri: mipedda. É tudo aquilo que tiramos do mundo. Não só o que plantamos na roça, mas o barro do rio que tua mãe usa para a cerâmica, a madeira para as casas, o peixe que nada no Opará, as folhas que curam. Tudo é mipedda. Mas cuidado: devemos tirar só o que precisamos, com respeito.
Yüri guardava essas palavras no peito.
Um dia, chegou à aldeia um homem da cidade, montado num cavalo branco. Chamava-se Seu Valdo. Trazia sacos cheios de sementes douradas.
Reuniu os anciãos e disse:
— Com estas sementes, suas roças darão mais milho do que já viram! Vocês terão fartura e eu comprarei tudo por bom preço. Será progresso para o seu povo.
Alguns jovens se entusiasmaram. Mas os mais velhos, como cacique Muruibá e Jurema, desconfiaram.
Naquela noite, Yüri sonhou. No sonho, viu a floresta encolhendo, o rio secando, os pássaros sumindo. Acordou assustado.
— Avó — disse —, sonhei que a mata chorava. Fizemos errado?
Jurema o olhou com ternura.
— Teu espírito já escuta os sinais, meu neto. Lembre-se de outra palavra: kenantse. É nossa criação na natureza. Devemos cultivar apenas aquilo que realmente serve à vida e à nossa necessidade, não ao desejo sem fim.
Mas parte da aldeia não ouviu. Muitos plantaram as sementes do forasteiro em grandes roçados.
Nos primeiros meses, tudo parecia maravilhoso. O milho crescia mais alto que um homem. Mas logo vieram os sinais.
As abelhas desapareceram. As borboletas não visitavam mais as flores. A terra endureceu, seca e cansada.
O rio Opará, antes cheio de peixes, começou a se calar.
Foi quando os anciãos reuniram todos sob a grande gameleira. Jurema falou com voz firme:
— Filhos da aldeia, esquecemos o que nos ensinaram os antigos. Bechiantse: Natureza é a Roça. Não só aquilo que plantamos, mas tudo que vive em harmonia. Quando quebramos esse círculo, tudo sofre.
Yüri pediu a palavra:
— Proponho que peçamos perdão à floresta. Vamos replantar com as sementes dos nossos ancestrais. Vamos restaurar o equilíbrio.
Os anciãos concordaram. Fizeram um grande ritual. Cantaram canções antigas. Pediram aos ventos, às águas, às árvores que aceitassem o pedido de desculpas.
Com cuidado, replantaram o milho nativo, o feijão, a mandioca. Voltaram a colher o barro com reverência. Deixaram espaço para a floresta respirar.
O tempo passou. As abelhas voltaram. Os peixes dançaram de novo no rio. A mata se vestiu de verde.
A terra, renovada, voltou a sorrir.
E Yüri, agora um jovem respeitado, tornou-se contador de histórias. Sob a gameleira, dizia às crianças:
— Escutem, pequenos. Bechiantse: Natureza é a Roça. A Roça é o mundo. O mundo é um círculo. O círculo é vida. Nunca tomem mais do que o necessário. Respeitem sempre o equilíbrio.
E dizem que até hoje, nas noites de lua cheia, se você andar pelas trilhas da mata e ouvir um canto suave, talvez seja Yüri ensinando a uma nova geração a canção do equilíbrio:
"Natureza é a Roça. Roça é o mundo.
O mundo é um círculo. O círculo é vida."
Assim termina esta história. Que ela nunca se perca no vento.
9. SAMBYYÉ, VERDADES ANCESTRAIS
Como Contador de Histórias da tribo Kariri-Xocó, aprendi desde cedo que o tempo dos antigos não é passado morto, mas presença viva. As histórias que recebi dos mais velhos não são invenções, nem fantasias. São caminhos. São verdades ancestrais.
Certa vez, enquanto o vento dançava entre as folhas do jenipapeiro, fui procurado por uma jovem estudante de história da UFAL — Universidade Federal de Alagoas. Ela veio fazer um trabalho acadêmico sobre “mitos e lendas” do nosso povo.
Sentou-se à minha frente com um caderno na mão e olhos cheios de curiosidade. Disse que queria registrar os “mitos e lendas” dos Kariri-Xocó. Olhei para ela com calma e disse:
— Aqui, não há mitos nem lendas.
Ela arregalou os olhos, surpresa, quase em choque e ela me disse: Nhenety aqui na Aldeia não tem mitos e lendas? Expliquei, com voz serena como os rios que nos cercam:
— Entre nós, o que vocês chamam de mito é verdade. O que chamam de lenda, é realidade que caminha conosco desde os tempos imemoriais. Não é mentira, não é invenção. É memória, é ensinamento.
Falei da Mãe D’Água, guardiã dos rios e dos peixes. Disse que ouvimos os recados da natureza nos cantos dos pássaros, nas asas dos insetos, nos sinais do céu. Quando as formigas abandonam seu formigueiro, sabemos que a chuva virá. Quando o joão-de-barro constrói sua casinha com a porta virada para o norte, é sinal de um inverno chuvoso.
— O índio acredita em sua cultura — continuei — porque é uma verdade pura. Se deixarmos de acreditar em nossa espiritualidade, tudo se perde: o caminho, o equilíbrio, a conexão com o Ser Superior e com a nossa Mãe Terra.
A estudante me ouviu em silêncio. Não sei o que escreveu em seu caderno, mas vi em seus olhos o início de uma compreensão. Naquele instante, talvez ela tenha sentido — como muitos já sentiram — que as chamadas “lendas” de um povo não são histórias para entreter, mas chaves que abrem portas invisíveis. São raízes profundas, cravadas na terra e no tempo.
E assim, contei a ela mais do que histórias. Contei a verdade do nosso povo. A verdade que vive, canta e resiste.
Sambyyé. Verdades que não morrem.
10. NATIÁ, A ALDEIA ORIGINAL DOS KARIRI
Antes que os homens de além-mar chegassem, a terra era um mundo vivo. O sol, a lua e as estrelas dançavam no céu, e o horizonte era uma linha circular sagrada onde o céu beijava a terra. A floresta retsé sussurrava segredos antigos, e o rio Opará corria forte como o sangue do mundo. Era ali, no cimo de uma colina verdejante, que vivia Natiá — a aldeia original do povo Kariri de Porto Real do Colégio, em Alagoas.
Natiá não era apenas morada, era coração pulsante. As crianças brincavam à beira da lagoa dzurióye, as mulheres preparavam os alimentos com canto e sabedoria, os anciãos contavam histórias que vinham de antes do
tempo. Era um tempo de solidez, de raízes profundas, de conexão com tudo o que existia.
Mas um dia, os ventos mudaram.
Vieram os homens de roupa escura, com cruzes nas mãos e palavras que soavam como pedra. Eram jesuítas. Suas promessas eram doces, mas os atos, duros. Trouxeram uma nova fé, um novo modo de viver, e com isso, o desmantelamento da aldeia.
Os Kariri foram forçados a deixar Natiá.
A dor não foi apenas nos pés que se afastavam da colina, mas na alma que ficava. Sob a sombra da cruz, perto de uma capela dedicada à Senhora da Conceição, no dia 3 de maio de 1661, ergueu-se uma nova vida, mas com cor de luto. As raízes foram arrancadas do solo e transplantadas à força.
Naquela despedida, nasceu um canto.
"Bohoiwiró Eicó Natiá..."
“Vamos embora, vamos embora, da aldeia...”
A voz do povo se ergueu em toré. Não como lamento apenas, mas como promessa de memória. O canto ecoou entre os troncos da floresta retsé, cruzou o espelho da lagoa dzurióye e acompanhou as águas do Opará.
Até hoje, esse toré é cantado. É símbolo de encerramento, de reverência, de lembrança viva.
Porque mesmo arrancada da colina, Natiá nunca deixou o povo Kariri. Ela vive na memória, na língua, no canto, no coração.
Autor dos contos: Nhenety Kariri-Xocó
APÊNDICES / GLOSSÁRIO
Apêndice A — Termos da Cosmologia Kariri-Xocó
Çasonsé – Relacionado ao princípio originador que observa e manifesta o mundo.
Rabynhiu – Cinza primordial associada ao fim de um ciclo e ao recomeço.
Tupã-Kananciu / Tupã – Entidade associada à força criadora e ao raio.
Xaxará – Objeto ritual ligado à sabedoria da mata e às forças de cura.
Seriema – Ave simbólica, representando aviso, atenção e ritmo da natureza.
Woroy – Linha ancestral do conhecimento e da transmissão oral.
Kuxima – Caminho espiritual trilhado no aprendizado com os mais velhos.
Erdomaw – Elemento espiritual que acompanha processos de transição e aprendizado.
Jurema Sagrada – Matriz espiritual e cultural do Nordeste indígena.
Encantados – Espíritos ancestrais que protegem, orientam e acompanham o povo.
Opy – Casa de reza, espaço de espiritualidade e força coletiva.
Território Sagrado – Lugar físico e espiritual onde a memória ancestral se mantém ativa.
DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR
Nhenety Kariri-Xocó é escritor, contador de histórias e guardião da memória ancestral de seu povo, localizado em Porto Real do Colégio, Alagoas.
Atua como pesquisador das tradições orais, das cosmologias indígenas e da herança cultural Kariri-Xocó, dedicando-se à preservação dos saberes transmitidos pelos anciãos.
Sua produção literária inclui contos, cordéis, textos reflexivos e obras que dialogam com a espiritualidade, a memória e a identidade indígena no Brasil.
Além da escrita, mantém viva a ancestralidade por meio da oralidade, da prática comunitária e do registro das manifestações culturais, contribuindo para fortalecer a continuidade e visibilidade do seu povo.
Este primeiro volume da série Woroy integra sua missão de partilhar a cosmologia Kariri-Xocó com leitores do Brasil e do mundo, preservando o ensinamento dos antigos mestres.
ORELHA DO LIVRO
Woroy – História, Cosmologia Kariri-Xocó — Contos, Volume 1 apresenta ao leitor uma coletânea de narrativas que atravessam o tempo e ecoam a sabedoria ancestral do povo Kariri-Xocó.
Cada conto é um fragmento do universo espiritual, histórico e simbólico que molda a identidade deste povo indígena do Nordeste brasileiro.
A obra resgata relatos presentes na memória coletiva, trazendo à luz personagens, entidades, forças naturais e lembranças que dialogam com a cosmologia tradicional.
Aqui, mito e memória convivem, revelando a profundidade de um povo que compreende o mundo a partir da relação entre terra, espírito e ancestralidade.
Escrita por Nhenety Kariri-Xocó, guardião da palavra, contador de histórias e pesquisador das tradições do seu povo, esta coletânea inaugura uma série dedicada à preservação e transmissão da herança Kariri-Xocó.
Mais do que um livro, esta obra é um gesto de continuidade — um convite para ouvir com o coração o que os antigos ainda têm a ensinar.
CAPA E CONTRACAPA — DESCRIÇÕES OFICIAIS
Capa (Descrição Editorial)
A capa deve transmitir:
O tema central: Woroy – História e Cosmologia Kariri-Xocó
Elementos simbólicos ancestrais:
Sol e Lua em equilíbrio
Caminho serpenteado representando o fluxo da tradição oral
Tons terrosos e dourados
Presença de elementos como maracá, jurema, raiz, água ou constelações
Atmosfera mística, espiritual, respeitosa e cultural
Tipografia firme, elegante, que represente tradição e força ancestral
Autor: Nhenety Kariri-Xocó












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