sábado, 22 de novembro de 2025

WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ E AS ORIGENS DAS ÁGUAS, Contos – Volume 2 Coletânea, Nhenety Kariri-Xocó






🔹️ FALSA FOLHA DE ROSTO


WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ

E AS ORIGENS DAS ÁGUAS

Contos – Volume 2 Coletânea

Nhenety Kariri-Xocó



🔹️ VERSO DA FALSA FOLHA DE ROSTO


(Espaço reservado para informações editoriais, edição, direitos autorais — por enquanto deixarei o texto-base para você preencher ou pedir que eu personalize.)


Direitos desta edição reservados ao autor.

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, guardada em sistema de armazenamento ou transmitida, sem permissão.

Edição independente – Ano 2025.



🔹️FOLHA DE ROSTO (FRONTISPÍCIO)


WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ

E AS ORIGENS DAS ÁGUAS

Contos – Volume 2 Coletânea


Nhenety Kariri-Xocó


Porto Real do Colégio – AL

2025



🔹️FICHA CATALOGRÁFICA (MODELO ABNT)



KARIRI-XOCÓ, Nhenety


Woroy História, Kariri-Xocó e as Origens das Águas: Contos – Volume 2 Coletânea /


Nhenety Kariri-Xocó. — Porto Real do Colégio: Edição Independente, 2025.


ISBN: (a gerar)


Literatura indigena brasileira.


Cosmologia Kariri-Xocó.


Contos tradicionais.


Mitos das Águas.


I. Título.


CDD: 398.2 — Contos, lendas e narrativas tradicionais



🔹️ DEDICATÓRIA


Dedico este livro

aos que guardam a memória das águas.

Aos Ancestrais que caminham comigo,

aos Encantados que protegem meus passos,

ao meu povo Kariri-Xocó,

raiz viva, canto eterno,

força que me molda e me conduz.


Dedico também

aos que bebem desta palavra

como quem bebe de uma nascente sagrada,

sabendo que cada história

é um rio que volta

para o coração da terra.



🔹️ AGRADECIMENTOS


Agradeço aos Mestres da Mata, aos Pajés que me ensinaram a escutar o silêncio, aos anciãos que guardam cada fio desta memória escondida no vento.


Agradeço ao meu povo, aos que resistem com o mesmo brilho dos antepassados, aos que caminham firmes pelo território sagrado onde o Opará canta.


Agradeço a cada espírito guardião — Diméanhy, Dé, e todos os que protegem as espécies e a vida — por permitirem que esta palavra floresça.


E agradeço a você, leitor viajante, que abre este livro como quem abre um portal para o tempo mais antigo do mundo.



🔹️ EPÍGRAFE


“A água lembra.

A terra guarda.

E o povo canta

porque o espírito nunca morre.”

— Tradição Kariri-Xocó



🔹️ S U M Á R I O



Prefácio


Apresentação


Introdução


Epígrafe


Agradecimentos


Contos 


Dzutidzí, A Primeira Senhora das Águas


Utudjeanieá, A Guardiã das Sementes Sagradas


Utudjekaraí, Os Donos das Frutas dos Brancos


Crotidzú, A Dona das Fontes


Yara, A Mãe D’água do Rio


O Primeiro Encontro – O Conto de Tarobá


A Trilha dos que Resistem – Tarobá II


Tarobá e o Canto que Não Morre – Parte III


Camãna Bonita do Jurumbá


Maruanda, O Vigilante da Terra


Apêndice (Opcional: Glossário de termos sagrados)


Sobre o Autor


Ficha Técnica


Orelhas do Livro


Encerramento e Epílogo


Nota de Fontes Rimada


Quarta Capa Poética



🔹️ P R E F Á C I O


Há livros que se leem.

Há livros que se estudam.

Mas há obras que se escutam, como quem abre o ouvido para o vento da mata, para o sussurro dos mais velhos, para o chamado das águas antigas que moldaram o primeiro mundo. Este volume, escrito por Nhenety Kariri-Xocó, pertence a essa última e rara categoria: a dos livros que não passam pela mente antes de atravessarem a alma.


Os contos aqui reunidos — Dzutidzí, Utudjeanieá, Utudjekaraí, Crotidzú, Yara — não são ficção no sentido ocidental do termo. Eles são caminhos, trilhas vivas de memória que conduzem à origem, à cosmologia, aos ensinamentos e às responsabilidades que o povo Kariri-Xocó carrega desde tempos imemoriais. Cada narrativa guarda não apenas beleza literária, mas uma verdade de pertencimento, uma pedagogia espiritual e uma orientação de ancestralidade.


Na leitura dessas histórias, percebe-se que não há separação entre natureza, espírito e humanidade. O mundo surge e se sustenta em relações: a água que nasce antes da palavra, o ser que aprende observando, o espírito que se transforma para ensinar. Tudo está vivo. Tudo escuta. Tudo responde. E essa percepção profunda do existir, expressa na língua do coração e da terra, faz desta obra um registro de mundos, não apenas um livro.


O autor, Nhenety Kariri-Xocó, atua aqui como contador de histórias, mas também como guardião, pontífice entre o que é lembrado e o que precisa continuar sendo contado. Sua escrita é ao mesmo tempo poética, firme, delicada e cheia de responsabilidade. Há nela um compromisso claro com seus ancestrais, com seu povo, com a verdade espiritual que sustenta a Nação Kariri-Xocó, e também com o leitor — para que este possa compreender que cultura é raiz e que memória é território.


Este Volume 2 nasce, portanto, como continuidade de um projeto maior: revelar a essência dos ensinamentos antigos e transmiti-los às novas gerações, mantendo viva a chama que ilumina desde as primeiras águas. É uma obra que honra o passado, dialoga com o presente e planta sementes para o futuro.


Quem abrir este livro não encontrará apenas narrativas bonitas; encontrará portais.

E ao atravessá-los, perceberá que cada conto é uma mão estendida, um convite, uma lembrança:

— O mundo vive em você, tanto quanto você vive no mundo.


Que este prefácio seja uma pequena chama diante do grande fogo sagrado que o leitor encontrará nas páginas seguintes. Que ele prepare o coração para receber, com humildade e reverência, as histórias que brotam como rios antigos em direção ao mar do conhecimento.


Boa leitura.

Boa escuta.

Boa travessia.



🔹️ I N T R O D U Ç Ã O


A história de um povo não começa no papel; começa no espírito.

Antes que qualquer mão traçasse símbolos, antes que qualquer língua moldasse palavras, o mundo já sussurrava seus ensinamentos através das águas, das pedras, dos ventos e dos seres que habitavam o grande território vivo. Para o povo Kariri-Xocó, essa sabedoria é lembrada, não inventada. Ela atravessa gerações como um rio que nunca seca, mesmo quando muda de curso.


Este volume reúne contos que nasceram da memória, da escuta e da visão espiritual. São narrativas que tratam da origem, da transformação, da ligação entre humanos e encantados, e dos ciclos que sustentam a vida. Aqui, nada é apenas alegoria: cada ser, cada gesto, cada elemento representa um princípio sagrado do existir.


Ao organizar estes contos, busco não apenas apresentar histórias, mas oferecer caminhos de compreensão — para que o leitor, indígena ou não, possa atravessar a ponte entre o visível e o invisível. Os ensinamentos aqui presentes são antigos, mas continuam novos; pertencem ao passado, mas atuam intensamente no presente. São fios de uma grande teia que nos liga à Terra, à água, ao espírito e a nós mesmos.


Que esta obra ajude a fortalecer a identidade Kariri-Xocó, que ilumine as novas gerações e que ressoe entre aqueles que procuram entender que cada cultura é um mundo e que a memória é o coração que o mantém vivo.



🔹️ A P R E S E N T A Ç Ã O


Este livro nasce de uma força dupla:

a força da ancestralidade e a força da palavra.


Nhenety Kariri-Xocó, contador de histórias, escritor, guardião de memória e filho do povo Kariri-Xocó, traz a público uma obra que vai além do literário: ela também preserva, reafirma e expande a herança espiritual que moldou sua existência e a de sua comunidade.


Cada conto aqui apresentado foi escolhido não pela busca do fantástico, mas pela verdade cultural que carrega. São episódios que pertencem ao imaginário sagrado do povo, transmitidos por seus mais velhos, pelos sábios observadores da Natureza e pelos espíritos que acompanham a vida humana desde antes da primeira luz.


Ao ler estas páginas, o leitor encontrará mundos vivos, seres que ensinam, águas que falam, entidades que formam o cosmos e forças que ainda ressoam no presente. Este volume, segundo em uma trilogia de sabedoria, reafirma a importância de registrar no papel aquilo que os antepassados preservaram na voz.


É com alegria, respeito profundo e admiração que apresento esta obra, cuja beleza não está apenas nas histórias, mas no espírito que as sustenta.



🔹️ E P Í G R A F E


"A água escuta.

A terra guarda.

O espírito ensina.

E o povo que lembra, nunca se perde."


— Tradição Kariri-Xocó



🔹️ A G R A D E C I M E N T O S


Agradeço, primeiramente, aos meus ancestrais — aqueles que vieram antes de mim, que abriram caminho com passos firmes e deixaram a sabedoria plantada em cada gesto, cada canto e cada história. Sem eles, nenhuma palavra aqui existiria.


Agradeço ao meu povo Kariri-Xocó, especialmente aos mais velhos, aos pajés, às lideranças espirituais e comunitárias que mantêm acesa a chama da nossa cultura, mesmo diante das dores, dos desafios e dos silenciamentos que enfrentamos há séculos. Vocês são minha raiz, meu chão e minha fortaleza.


Agradeço às águas do Rio São Francisco, que carregam memórias mais antigas que o tempo humano e que continuam ensinando quem sabe ouvir.


Agradeço às crianças do nosso povo, que são o futuro da memória. Que estas histórias encontrem nelas o brilho necessário para continuar crescendo.


Agradeço aos amigos, irmãos e leitores que respeitam a diversidade dos mundos, que compreendem que uma cultura indígena não é um folclore, mas uma nação de sabedoria e existência.


E por fim, agradeço ao Grande Espírito, aos encantados e às forças que caminham comigo desde meu nascimento. Esta obra é deles — eu apenas segui a trilha que me foi mostrada.



🔹️ CONTOS 



DZUTIDZÍ, A Primeira Senhora das Águas





Antes que a terra firme existisse, antes que qualquer criatura respirasse o ar, havia apenas o mundo espiritual: Raddanhy, tecido de luz, silêncio e eternidade. Foi ali que Çasonsé, o criador primordial, despertou do seu repouso de milênios e, com um sopro, fez nascer os Anhy, espíritos sagrados que se tornaram Diméanhy, os "donos das espécies".


Um a um, eles desceram para Raddasané, a terra material que ainda era informe e adormecida. Dos dedos de Çasonsé brotaram as árvores e seus frutos, os rios e suas correntezas, os peixes, os ventos, as serras, o sol e a lua, as estrelas que vigiam a noite.


Mas, antes de tudo isso, quando ainda só as águas corriam livres pelo vazio, ali surgiu ela — Dzutidzí, a Mulher da Água.


Tinha a forma de uma mulher, mas era feita de correnteza e espuma, de reflexo e mistério. Seu canto era o murmúrio das águas caindo sobre as pedras. Seu corpo, um véu translúcido que ondulava junto com o fluxo do mundo.


Certa vez, ao contemplá-la dançando nas águas profundas, Çasonsé falou com voz que reverberou pelos quatro cantos de Raddanhy:


— Dzutidzí... tu és a primeira entre todas as formas. Guardiã das águas, Senhora do fluxo eterno. O que desejas que te conceda?


Dzutidzí emergiu lentamente, as gotas escorrendo de seus cabelos líquidos, e respondeu com voz suave como o orvalho:


— Que eu nunca seja esquecida, que minha canção se confunda com o canto dos rios, e que, mesmo quando os homens caminharem sobre a terra, eles ouçam minha presença e saibam que a vida veio de mim.


Çasonsé sorriu, e o céu se iluminou com o primeiro raio de sol.


— Assim será, Dzutidzí. Teu nome ecoará por todas as culturas, sob muitos nomes, mas tua essência será sempre a mesma. Os homens te chamarão de Yara, Mãe d'Água, e saberão que a primeira mulher veio de ti, das águas sagradas.


Dzutidzí então mergulhou, fazendo um som que percorreu as entranhas do mundo: um estalo aquático, como o bater de um coração recém-criado.


Desde então, Dzutidzí nunca mais esteve só. De sua essência, surgiram as Senhoras das Águas, uma grande família de espíritos femininos que povoaram os mares, rios, lagos, lagoas e até mesmo as nuvens carregadas de chuva.


Elas passaram a alimentar as florestas, a sustentar os animais, a manter o pulso vital da terra. Quando o homem enfim foi criado, encontrou as águas já povoadas por esses seres, invisíveis aos olhos, mas eternamente presentes.


O Primeiro Encontro


Conta-se que muito tempo depois, quando as primeiras aldeias surgiram à beira dos rios, um jovem caçador chamado Arawê caminhava pela mata. Era um dia quente, e ele buscava água para matar sua sede. Seguindo o som de uma cascata escondida, encontrou uma lagoa de águas límpidas e profundas.


Ajoelhou-se para beber, mas, ao olhar o reflexo da superfície, viu, espantado, o rosto de uma mulher desconhecida e bela, cujos olhos eram profundos como o próprio rio.


Do meio das águas, a figura emergiu, envolta em fios de água e luz. Era Dzutidzí.


Arawê ficou paralisado, incapaz de se mover ou de desviar o olhar. Dzutidzí então falou, com uma voz que parecia o som do vento entre as folhas e da água sobre as pedras:


— Por que vens até mim, homem da terra?


O caçador, com o coração batendo como o tambor da aldeia, respondeu:


— Busco água para viver… mas não sabia que aqui habitava um espírito.


Dzutidzí sorriu suavemente e estendeu a mão, deixando cair algumas gotas sobre a cabeça do homem:


— Agora sabes. E deves lembrar: a água é vida, mas também é sagrada. Respeita-a, e tua aldeia terá fartura. Maltrata-a, e conhecerás a sede.


O caçador inclinou a cabeça em reverência e, quando voltou a erguer os olhos, Dzutidzí havia desaparecido, como se nunca tivesse estado ali.


Mas Arawê sabia: a partir daquele dia, ele e todos os seus descendentes carregariam a memória daquele encontro. Assim, ensinaram aos filhos e aos filhos de seus filhos a reverenciar a água como mãe, como origem, como espírito.


E até hoje, quando a chuva cai ou a correnteza se apressa, os mais velhos contam: "Dzutidzí ainda vive, cuidando do mundo, como no princípio de tudo."



UTUDJEANIEÁ: A Guardiã das Sementes Sagradas





Nos tempos mais antigos, quando o mundo ainda era feito de névoa e música, o Deus Sonsé caminhou sobre a terra que ainda não tinha nome. Onde seus pés tocavam, nasciam árvores. Onde sua mão repousava, brotavam frutos. E onde soprava, cresciam flores e raízes profundas.


Em um dia de festa celeste, Sonsé reuniu os primeiros povos à margem do grande rio que ele mesmo havia traçado com seu cajado: o Opará. O rio, largo como um abraço, corria desde as entranhas da terra até o abraço do mar, aqui vivia o Kariri e o Tupi.


Diante de todos, Sonsé ergueu kludimu um cesto feito de cipós de taboca e disse:


“Aqui estão as sementes da vida. Cada uma delas possui um Anhy o espírito chamado Diméanhy "espírito dono das espécies" entre os povos Kariri. Os nossos parentes Tupi chamam Ijá "os espíritos donos das espécies" entre estes: Cajú-Ijá o dono do caju, doce como o amor.  O Kariri chamam Muicudé "a mãe da mandioca", a Muicú "mandioca" , forte como a resistência; o Masidianhy "dono do milho" chamado Masichi o milho, dourado como o sol; o Ghinhedimeanhy "dono do feijão" chamado Ghinhè o feijão, companheiro nas lutas. Os Tupi chamam 


Maracu-Ijá "dono do maracujá", o maracujá, perfumado como os sonhos. Cuidem delas, pois são parte de mim.”


E assim foi feito.


Os povos guardaram as sementes como quem guarda o próprio coração. Os anciãos ensinavam os jovens a plantá-las com respeito, a colher apenas o necessário e a devolver à terra parte do que ela ofertava.


Em cada planta, morava um Dimé ou Dé  "senhor ou mãe uma senhora", um espírito guardião. O Espírito do Cajueiro, com sua coroa de flores alaranjadas, protegia os que caminhavam na mata. O Senhor do Milharal dançava com os ventos, soprando a fertilidade sobre a terra. A Serpente de Luz do Opará, de escamas translúcidas, descia do céu às noites de lua cheia para abençoar as águas e as plantações.


Foi assim até o dia em que nasceu Utudjeanieá, a menina que as estrelas haviam prometido. Diziam que, na noite em que sua mãe a concebeu, a Serpente de Luz subiu do rio e envolveu seu ventre, abençoando a criança com o dom de ouvir as vozes das plantas e dos Anhy espírito dos antepassados .


Desde pequena, Utudjeanieá passeava pela floresta, conversando com as árvores. Sentava-se sob o Umbuzeiro Ancião, que com sua voz grave lhe contava:


“Somos mais antigos que o tempo dos homens. Quem nos ouve, nunca se perde.”


E Utudjeanieá ouvia, aprendia, guardava.


Mas um dia, nuvens estranhas surgiram no horizonte. Homens brancos chegaram em grandes barcos, e com eles trouxeram nomes novos para as coisas antigas. Chamaram o Opará de Rio São Francisco e, sem pedir permissão aos Anhy "os espíritos", arrancaram sementes e frutos para levar além-mar.


Modificaram as plantas, cruzaram as sementes, e com isso despertaram doenças adormecidas, que nem os anciãos conheciam.


Os Anhy adoeceram junto com a terra. O Espírito do Cajueiro murchou suas flores. O Dono do Milharal parou de dançar. A Serpente de Luz mergulhou nas profundezas do rio e não voltou mais à superfície.


Utudjeanieá, já moça, chorava à beira do Opará, quando ouviu, do fundo das águas, a voz de Sonsé, grave como o trovão, mas doce como o orvalho:


“Minha filha, não temas. O que foi dado não pode ser tomado à força. Enquanto existir quem lembre, as sementes sagradas não morrerão.”


E das profundezas emergiu a Serpente de Luz, enrolando-se suavemente ao redor de Utudjeanieá. Ela ouviu então outra voz, a do 


Masidianhy "Dono do Milharal", fraca, mas ainda viva:


“Ensina aos jovens. Não basta apenas lembrar, é preciso compreender, estudar, proteger.”


Então, como em um rito antigo, Utudjeanieá convocou todos os jovens da aldeia. Reuniu-os sob Uchehé a "Árvore do Tempo", e ali, com os potes de barro que continham as sementes sagradas, falou com a força dos antigos:


“Estas são nossas raízes. Não são só alimento: são memória, são espírito. Precisamos protegê-las não apenas com os rituais, mas também com a ciência da vida, para que os Encantados possam voltar a dançar e o Opará volte a brilhar com a luz de Sonsé.”


Os jovens choraram e prometeram aprender, plantar, guardar e resistir.


Naquela noite, enquanto todos dormiam, Utudjeanieá caminhou até a margem do rio. A Serpente de Luz emergiu, brilhando como nunca, e sussurrou:


“Enquanto houver quem escute, estaremos vivos.” Os Brancos têm a matéria das frutas e legumes, mas não tem o poder e nembpermissão dos Diméanhy "espírito dono das espécies". 


E assim, Utudjeanieá se tornou não apenas a guardiã das sementes, mas também a ponte entre o mundo visível e o invisível, entre o humano e o divino, entre o tempo que foi e o que ainda virá.


Desde então, quando as folhas do cajueiro dançam ao vento e o milho cresce alto e forte, sabe-se que Utudjeanieá segue viva, caminhando pela floresta, semeando esperança, protegendo o legado sagrado do Deus Sonsé.


E o Opará, com suas águas eternas, continua a contar essa história para quem souber ouvir.



UTUDJEKARAÍ, Os Donos das Frutas dos Brancos





Nos tempos imemoriais, quando o céu ainda conversava diretamente com a terra e os rios ensinavam seus segredos aos homens, os Povos Originários caminhavam em perfeita harmonia com tudo que existia. Cada planta, cada fruto, cada raiz era mais que alimento: era espírito, era vida, era cura. E sobre cada uma dessas criaturas vegetais reinava, invisível e poderoso, o Diméanhy — o Espírito Guardião das Espécies.


Assim, antes que qualquer fruto fosse colhido, o homem da floresta, a mulher do rio, a criança da aldeia, parava, respeitava, pedia:


“Diméanhy, permita-me nutrir do teu dom, para que eu siga forte, para que eu siga digno.”


E o Espírito, satisfeito com a reverência, abria os poderes da saúde e da cura contidos no âmago de cada fruto. Assim foi, desde o nascimento do primeiro povo até os dias em que os ventos começaram a anunciar a chegada dos estrangeiros.


E então, um dia, vieram os Karaí, os Homens do Velho Mundo, navegando em troncos ocos que rasgavam o mar como lanças feitas de sal. Vieram não apenas com suas armas e seus metais, mas também com sementes, mudas e alimentos jamais vistos na terra dos ancestrais.


E a floresta conheceu a manga, a maçã, a uva e a jaca; o repolho, o arroz, a cenoura, a cebola, o alho, a beterraba, a laranja.


Frutas e legumes de cores flamejantes, de formas estranhas, de aromas desconhecidos. Os olhos dos mais velhos se estreitaram, os pajés consultaram os espíritos, os jovens observaram em silêncio.


“Onde estão os Diméanhy destas novas espécies?”, perguntavam-se os sábios em meio às danças do fogo e ao cântico dos maracás.


Não havia resposta imediata, pois os Espíritos Guardiões não se revelam facilmente. Sabiam os Povos Originários, desde sempre, que o verdadeiro poder do alimento reside na permissão do espírito que nele habita.


Foi então, nos sonhos e nas visões, nas folhas que sussurram quando o vento passa, que os sábios compreenderam: aquelas plantas não estavam órfãs. Não. Elas também possuíam seus guardiões, mas estes não eram conhecidos pelos povos da floresta. Eram os Utudjekaraí — “Os Donos das Frutas e Legumes dos Brancos”.


Espíritos estranhos, distantes, vindos com os Karaí, acompanhando cada semente, cada raiz, protegendo, ocultos, os mistérios de suas espécies.


Assim, os Povos Originários souberam que para alimentar-se daqueles novos frutos, não bastava o desejo ou a fome. Seria necessário, como sempre foi, o respeito, a reverência, o tempo. Pois o elo espiritual não se impõe: constrói-se com paciência, com humildade, com aprendizado.


E assim se fez.


Os filhos da floresta aprenderam a reconhecer os sinais dos Utudjekaraí, a decifrar os sussurros das novas folhas, a compreender o espírito escondido no âmago da fruta desconhecida. Antes de comer, ajoelhavam-se, estendiam as mãos para o céu e diziam:


“Utudjekaraí, espírito dono desta espécie, permita-me nutrir da tua força, para que eu viva, para que eu honre.”


E, uma vez mais, o poder da cura e da saúde se derramava sobre os corpos e os espíritos dos Povos Originários.


Assim, o mundo antigo e o mundo que chegava não se enfrentaram apenas com o ferro e o sangue, mas também se encontraram no mistério invisível da espiritualidade, onde cada fruto carrega um espírito e cada homem carrega uma história.


E a Terra continuou a girar, sob a proteção silenciosa de todos os guardiões — os Diméanhy e os Utudjekaraí — mantendo vivo o sagrado pacto entre os humanos e o mundo vegetal.


E assim foi, assim é, e assim será enquanto houver quem respeite e quem invoque os Espíritos Donos das Espécies.



CROTIDZÚ, A Dona das Fontes





Nas profundezas do semiárido nordestino, onde o calor resseca a terra e o céu parece arder em chamas eternas, o povo Kipeá vivia entre espinhos e sombras, na grande mata da caatinga. Mais ao sul, onde o Rio Opará — majestoso e sinuoso — cortava o chão, viviam os Dzubukuá, irmãos de sangue e espírito. Ambos descendiam dos Kariri, um povo antigo, forjado pela terra seca e pela água escondida.


Naquela terra rude e bela, corria uma história sagrada, contada pelas velhas à beira das fogueiras e sussurrada pelos pajés nos rituais do Toré: Dzutidzí, a “Mulher da Água”, espírito ancestral, dominava as correntes ocultas que corriam sob as pedras e raízes. De sua força e ternura nasceu Crotidzú — "A Dona das Fontes" — guardiã das nascentes, habitante silenciosa das pedras, onde o juazeiro lançava sua sombra fresca sobre a terra rachada.


As crianças cresciam ouvindo que, sempre que encontrassem um juazeiro forte e verde, poderiam ter certeza de que Crotidzú estava por perto, vigiando a nascente, protegendo a água e garantindo que o povo jamais tivesse sede.


Diziam que, nas noites de lua cheia, quando as estrelas tremeluziam na vastidão do céu e o vento silvava entre as folhas secas, era possível ouvir a voz de Crotidzú cantando baixinho, um canto de água e de pedra, de vida e de silêncio.


Certa vez, uma menina do povo Dzubukuá, chamada Inanté, quis ver com os próprios olhos a guardiã das fontes. Ao entardecer, guiada pelos conselhos de sua avó, seguiu até uma nascente escondida entre pedras brancas, onde um juazeiro velho e forte estendia seus galhos como braços protetores.


— Crotidzú… — sussurrou Inanté, ajoelhando-se junto à fonte. — Eu vim te agradecer pela água que bebo e pelo verde que ainda existe…


De repente, o vento cessou. A superfície da água ficou lisa como um espelho. E ali, entre a sombra do juazeiro e o brilho da lua, a menina viu: uma figura envolta em véus d'água, com olhos tão profundos quanto as nascentes escondidas e cabelos longos como as raízes das árvores.


Crotidzú sorriu, mas seus olhos estavam tristes.


— Meu povo me chama, minha filha — disse a guardiã, sua voz como o murmúrio de um riacho. — Mas sinto que minha morada corre perigo…


Inanté franziu a testa, sem compreender.


— Por que, Crotidzú?


A Dona das Fontes apontou para além da mata.


— Eles estão chegando... homens que derrubam árvores, que ferem a terra, que secam as fontes. Meu canto se cala, minhas águas secam, e o juazeiro chora…


Dias depois, as palavras de Crotidzú se confirmaram. Vieram os colonizadores, homens com armas e machados. Cortaram as árvores sagradas, derrubaram o juazeiro, abriram trilhas onde antes o mato era fechado e as nascentes protegidas. O barulho do machado soava como um trovão, e com cada golpe, Crotidzú se enfraquecia.


O povo Kariri-Xocó chorou a perda da floresta. Os anciãos reuniram-se, os pajés entoaram o Toré mais triste que já se ouviu, e as crianças, como Inanté, aprenderam desde cedo a dor da resistência.


Mas mesmo na tristeza, não se calaram. Um dia, um velho guerreiro subiu até a pedra mais alta e, olhando para o que restava do juazeiro caído, entoou em voz firme e rasgada:


“Á Toupparti juá erã, homoté pí pohá, á mará, aí pá!”


"Tu, adeus juazeiro verde, não é possível, pequeno, secar-se, tua cantiga de guerra."


E o povo repetiu em coro, enquanto as lágrimas corriam como pequenos riachos sobre seus rostos marcados.


Crotidzú, vendo a devastação, recolheu-se. Partiu para as pedras mais fundas e escondidas, onde os homens brancos não podiam alcançá-la. Mas não abandonou seu povo.


Quando a seca apertou e muitos partiram ou tombaram, os que resistiram ainda encontraram água, guiados pelos sinais de Crotidzú: uma folha verde entre o cinza da caatinga, um fio d’água sob uma pedra, um juazeiro que, milagrosamente, não secava.


E assim, geração após geração, a memória da Dona das Fontes permaneceu viva.


Dizem que, até hoje, quem se aproxima respeitosamente das pedras das nascentes e canta o Juá Erã com o coração limpo, pode ouvir ao longe, entre o vento e o som da água, a voz de Crotidzú:


— Resista… preserve… a água é a vida e a floresta é o espírito…


E os Kariri-Xocó, fiéis aos ensinamentos, seguem protegendo o que resta da mata, lutando como seus ancestrais, guiados pela força invisível, mas eterna, da Dona das Fontes.



YARA, A Mãe D’Água do Rio





Na beira do velho Rio São Francisco, onde as águas sussurram segredos antigos às pedras e às canoas, morava Poitébo, um pescador de fala mansa e coração atento. Não era apenas por sorte que sua tarrafa voltava sempre cheia de peixe: Poitébo sabia que, ali, por trás da correnteza e das moitas de ingá, morava Yara, a Mãe D’Água.


Os mais velhos já ensinavam: quem quer tirar do rio, tem que dar ao rio. E Poitébo aprendeu com o pai, que aprendeu com o avô, que pescador de verdade planta sua roça. Milho e feijão, sempre. Porque é Yara quem faz nascer a primeira safra, e ela é quem decide se o pescador vai viver da pesca ou morrer na espera.


Na primeira colheita, quando a Lua Cheia subia no céu e dourava as águas do Velho Chico, Poitébo ia ao roçado. Escolhia as espigas mais verdes, os feijões ainda tenros, e descia até a margem. Era à meia-noite que ela aparecia, surgindo da água como bruma encantada.


Yara tinha cabelos como as ondas do rio, olhos fundamente tristes e sábios. Sentava-se na beira, comia o milho cru e o feijão verde com a serenidade de quem conhece todos os tempos. Poitébo respeitoso pedia:


— Minha Mãe D’Água, abençoe minha pesca.


Ela nada respondia, apenas olhava. Mas, dali em diante, nenhum anzol voltava vazio, nenhuma rede falhava.


Em tempos de escassez, Poitébo voltava ao rio com fé. Yara vinha nos sonhos e ensinava. Mandava cortar um galho de ingázeira, fincar na água, colocar mandioca nas moitas. “Manjuba”, ela sussurrava. Era isca viva, e logo os peixes vinham em cardumes, atraídos pela arte que só os iniciados conhecem.


As histórias de Yara correm pelo rio, cada comunidade tem a sua. Uns a viram criança, outros mulher encantada. Todos os velhos têm um caso, um segredo, um pacto. E Poitébo, agora ancião, repete aos netos:


— Se quiser pescar com fartura, trate bem a roça e agrade a Mãe do Rio.


E os meninos escutam, olhos brilhando, enquanto o vento sopra as águas e Yara, invisível, continua cuidando de quem respeita o rio.



O PRIMEIRO ENCONTRO – O Conto de Tarobá





Nas margens sagradas do grande rio Opara, onde as águas corriam com a força das histórias ancestrais, vivia o povo Natu. Seu cacique, Tarobá, era conhecido por sua sabedoria e por ouvir as vozes da mata, do vento e das águas. A aldeia prosperava na foz do rio, onde os peixes saltavam em abundância e as crianças cresciam ouvindo os ensinamentos dos mais velhos.


Certa manhã, quando o sol mal havia despertado no céu, Tarobá avistou algo estranho no horizonte. Era uma imensa canoa de panos, tão grande que parecia carregar nuvens. Os mais velhos disseram que era presságio, os jovens ficaram curiosos. Tarobá, atento, reuniu os guerreiros e observou.


A grande canoa ancorou ao longe, e dela partiram embarcações menores, que rasgavam o espelho do mar em direção à terra firme. Nelas vinham homens de pele clara, vestidos de forma estranha, com olhos de sede e mãos de posse.


Ao pisarem na areia, os homens se aproximaram com palavras desconhecidas, mas logo encontraram uma forma de se comunicar. Um deles, apontando para o rio, perguntou:


— Como se chama este rio?


Tarobá, com a firmeza de quem carrega o nome de seus ancestrais na alma, respondeu:


— Este é o Opara. É assim que o chamamos desde o princípio.


O homem branco fez um gesto e disse com voz autoritária:


— A mando de nosso rei, estamos nomeando os lugares conforme o santo do dia. Hoje é quatro de outubro, dia de São Francisco. Portanto, este rio agora se chamará Rio São Francisco.


Tarobá olhou fixamente nos olhos do forasteiro e, com serenidade e firmeza, respondeu:


— Para nós, será sempre Opara. Esse nome que vocês dizem será apenas para os brancos. Aqui, ele corre com o nome que os espíritos lhe deram.


Os homens brancos partiram em suas pequenas canoas, voltando à grande embarcação que logo desapareceu no mar. O tempo passou. Outros chegaram. Trocavam madeira por machados. Depois, vieram sem troca: apenas com a fome da terra, devastando florestas, queimando caminhos, massacrando os que resistiam.


Houve guerra. Os Natu, com poucos sobreviventes, fugiram rio acima, buscando abrigo nas matas do sertão. Foi ali, no coração do verde profundo, que os padres os encontraram. Uniram-nos a outros povos – Kariri, Karapotó, Aconã, Xocó – sob a sombra de um novo nome: Kariri-Xocó.


Mas os antigos sabiam: a primeira vez nunca se esquece.


O rio, a floresta, os animais, as serras, os peixes, o sol, a lua — tudo ainda guardava os nomes ancestrais. Tentaram apagar a memória, mas ela resistiu. E os filhos de Tarobá seguem vivos, lutando para existir, para lembrar, para contar.



A TRILHA DOS QUE RESISTEM – O Conto de Tarobá (Parte II)





O tempo correu como o rio Opara, levando dias e trazendo lembranças. Depois da primeira visão dos homens brancos, o mundo dos Natu começou a mudar. Os antigos sabiam que aquele encontro era o prenúncio de um longo caminho de sombras e resistência.


Vieram outros navios. Não traziam só palavras, mas machados e ambições. Cortavam árvores como se cortassem almas. Em troca, davam ferramentas de ferro, contas coloridas e promessas vazias. O povo ainda cantava, dançava e pintava os corpos, mas a mata começava a silenciar.


As primeiras guerras explodiram no litoral como trovões de fúria. Os Natu, com arcos nas mãos e coragem no peito, enfrentaram o desconhecido. Muitos caíram. Os que restaram subiram rio acima, deixando as cinzas da aldeia para trás. Refugiaram-se entre as serras, escondidos nos veios da mata espessa, onde os espíritos ainda caminhavam com eles.


Foi ali que os missionários chegaram. Padres com cruzes, livros e promessas de paz. Diziam que queriam ensinar, mas antes queriam ordenar. Juntaram os sobreviventes com outros povos — Kariri, Karapotó, Aconã, Xocó — sob um só nome. Era o início do povo Kariri-Xocó.


Tarobá, já mais velho, caminhava entre os novos fogos, ouvindo as línguas misturadas e os cantos que se reinventavam. Ele dizia:


— Podemos ter um novo nome, mas não perderemos nossa alma. O canto do Opara ainda corre em nosso sangue.


As crianças ouviam, sentadas ao seu redor, e repetiam o nome dos pássaros, das árvores, dos peixes e das estrelas em sua língua antiga. Tarobá sabia: enquanto houvesse memória, haveria luta. Enquanto houvesse canto, haveria espírito.


E assim, mesmo cercados por novos caminhos, mantinham viva a trilha dos que resistem.



TAROBÁ E O CANTO QUE NÃO MORRE – Parte III





Os tempos mudaram, mas o espírito de Tarobá permaneceu como raiz firme na terra antiga. Nas aldeias organizadas pelos padres, os fogos eram acesos de forma diferente, os cantos ensinados em outra língua, e os corpos, por vezes, cobertos por roupas que sufocavam os traços da liberdade.


Mas dentro dos olhos dos mais velhos, ainda brilhava a luz do Opara.


Tarobá, agora ancião, caminhava com um bastão entalhado com desenhos do tempo antigo. Onde passava, deixava palavras como sementes: ensinava as crianças a reconhecer o nome das plantas, os ciclos da lua, os sons do tambor e a força da pintura no rosto.


Os mais jovens, filhos de várias nações reunidas, escutavam como quem bebe água sagrada. Ali não era mais apenas o povo Natu — era um novo povo feito da união: Kariri-Xocó. Cada nome era uma memória, cada reza um elo com os ancestrais.


Os padres viam Tarobá como um velho teimoso. Ele, no entanto, via os padres como folhas de estação: vinham e iam. Já o tronco da árvore sagrada, esse ficava.


Certa noite, um sonho o visitou. No céu avermelhado, uma grande serpente de luz dançava sobre o Opara. Ela cantava em língua ancestral:


— “Quem nomeia o rio não o domina. O nome verdadeiro vive no coração dos que resistem.”


Tarobá despertou com os olhos marejados. Reuniu os pajés e os guerreiros, e diante da juventude reunida, disse:


— Vamos levantar nosso povo. Cantar nossa história. Pintar nossos corpos com as cores da lembrança. Se quiserem rezar, que rezem também com o maracá na mão. A fé que não escuta a raiz é folha seca.


A aldeia, naquele dia, se encheu de cantos, danças e memória viva. As línguas dos antepassados se encontraram no mesmo tambor. E o velho Tarobá, diante do fogo, olhou para o céu e murmurou:


— Que o Opara leve minha alma, quando for a hora. Mas deixarei aqui minha canção.


E assim, nascia o canto que não morre. O canto que hoje vive em cada Kariri-Xocó, filho da união, do suor e da esperança.



CAMÃNA Bonita de JURUMBÁ





Na beira do Velho Chico, onde as águas dançam com o tempo, vivia um povo antigo que conhecia os segredos da mata, do rio e dos cantos. Entre eles, havia um homem respeitado chamado Jurumbá. Era um cortador de caniço, conhecedor da antiga arte da pescaria com jereré. Sua filha, Camãna, era conhecida por sua beleza, mas muito mais por sua leveza e graça nos passos da pescaria.


Naquela época, com o rio farto e a mata ciliar espessa, a pescaria era como uma dança sagrada. Os homens abriam o caminho entre os caniços com cuidado, e as mulheres os seguiam com seus jererés em mãos. As crianças, cheias de alegria, pisavam o chão como se tocassem um tambor com os pés. Era uma dança de peixe, de gente, de espírito.


Camãna dançava como ninguém. Quando seus pés tocavam o solo, os peixes se agitavam, fugiam do esconderijo e caíam nas redes. Os mais velhos diziam que ela tinha o dom dos antigos, que sua alma se comunicava com o rio.


A cada nova pescaria, os pescadores cantavam:


"A Camãna bonita de Jurumbá


Olé Oi Lé Dchá


A Camãna bonita pisa de novo


Bis... Bis... Bis...


A Camãna bonita vamos pisar


Bis... Bis... Bis..."


O Toré nascia ali, no ritmo dos passos, no calor do sol e na força da tradição. Homens e mulheres formavam dois círculos, pisando como se estivessem sobre o caniço, como na pescaria ancestral. Era mais que dança: era reza, era memória viva.


Com o passar dos anos, as águas do Velho Chico diminuíram, a mata rareou e a pescaria quase desapareceu. Mas o canto, o Toré de Camãna, permaneceu. Tornou-se ritual. Tornou-se lembrança. Tornou-se resistência.


Hoje, quando os pés tocam a terra e as vozes se erguem no terreiro, Camãna dança de novo. E a memória de Jurumbá e sua filha vive em cada passo, em cada batida do maracá, em cada verso cantado:


"Cá byké widobae aí by Jurumbá


Chamar irmã bonita o pé dançar


Yahé Yané Bá


Voz de homem estar afiada ficar."


Que nunca se percam os cantos do Toré. Eles são as palavras dos antigos, as raízes de um povo, o coração da floresta e do rio.



MARUANDA, O Vigilante da Terra





Em tempos antigos, quando a floresta ainda falava com os ventos e os rios sussurravam os nomes dos antigos espíritos, as terras do Baixo São Francisco eram morada dos povos Caeté, Romariz, Kariri, Karapotó, Aconã, Natu, Caxagó, Xocó e muitos outros.


Mas a paz dessas terras foi quebrada com a chegada dos bandeirantes. Eles vieram com armas e ganância, trazendo guerra e destruição. Tribos inteiras foram massacradas. Da morte, restaram os sobreviventes. E aos sobreviventes, vieram os padres jesuítas. Não traziam espadas, mas palavras e cruzes. Queriam ensinar um “Deus civilizado” e apagar a memória viva da terra. Proibiram as línguas nativas, os cantos sagrados, os rituais do Toré. A fé dos antigos teria de ser escondida.


Mesmo perseguidos, os indígenas não esqueceram suas raízes. Em segredo, refugiavam-se na mata. No alto da colina, limpavam um terreiro, acendiam o silêncio e dançavam o Toré sob as bênçãos dos antepassados. Ali, cantavam, oravam, e mantinham viva a chama do Ouricuri – sua religião ancestral.


Para proteger o ritual, escolheram Maruanda, um jovem guerreiro de olhos atentos, como guardião. Sempre que o povo se reunia, era ele quem vigiava, firme, sentado sobre a pedra de um juazeiro. Sua missão era sagrada: alertar sobre qualquer aproximação dos padres.


Por muitos e muitos ciclos da lua, o Toré aconteceu sem interrupção. Maruanda jamais falhou.


Mas, em certa noite, um vento frio e suave acariciou a mata. A brisa embalou Maruanda sob a sombra generosa do juazeiro. Seus olhos se fecharam... e ele adormeceu. Foi nesse instante que os padres chegaram. Surpreenderam o povo em ritual. Maruanda foi o primeiro a ser preso. Todos os outros foram levados ao Colégio, onde sofreram castigos por desobedecer às ordens da Igreja.


Mais tarde, libertos, os anciãos reuniram o povo. Não houve ódio, apenas ensinamento. Chamaram Maruanda e disseram:


— Por teu descuido, sofremos. Mas disso faremos memória, não com rancor, mas com canto.


E, formando o círculo sagrado, deram-se as mãos e entoaram:


"Oi tinga lê lê, oi lêlê hewa há, oi vadiando Maruanda..."


No canto, a lembrança: Maruanda vadiou, dormiu, e o povo sofreu. Mas também a esperança: todo povo da Terra tem o direito de viver sua fé, sem perseguição.


Desde então, nas noites em que o Toré dança lembramos os antepassados, ainda se ouve a canção. Não como acusação, mas como ensinamento. E Maruanda, o vigilante da Terra, vive agora nos ventos da mata, sempre desperto.



Autor dos Contos: Nhenety Kariri-Xocó 



🔹 SOBRE O AUTOR


Nhenety Kariri-Xocó

Filho do povo Kariri-Xocó, nascido em Porto Real do Colégio – AL, é contador de histórias oral e escrita, pesquisador da cultura ancestral e guardião das memórias de seu povo. Sua missão literária é fazer vibrar a palavra antiga no presente, preservando ensinamentos, cosmologias e espiritualidades que foram transmitidos pelos mais velhos ao longo de gerações.


Nhenety escreve para fortalecer seu povo, para registrar saberes que o tempo tenta silenciar e para compartilhar com o mundo a grandeza da identidade indígena, que é alma, é raiz e é território.


Suas obras unem tradição, poesia e espiritualidade, convidando o leitor a atravessar portais de sabedoria que nascem da terra, das águas e do espírito.



🔹 FICHA TÉCNICA


Título: Woroy História, Kariri-Xocó e as Origens das Águas – Contos, Volume 2

Autor: Nhenety Kariri-Xocó

Edição: 1ª

Ano: 2025

Local: Porto Real do Colégio – AL

Gênero: Conto ancestral, literatura indígena, tradição oral

Ilustrações: Nhenety Kariri-Xocó e ChatGPT 

Diagramação: ChatGPT (assistência técnica literária)

Estudos preliminares: Nhenety Kariri-Xocó e Google Gemini 

Pré-projeto: Nhenety Kariri-Xocó e ChatGPT ( OpenAI  )

Revisão: ChatGPT (assistência linguística)

Produção editorial: Independente



🔹 ORELHAS DO LIVRO


Orelha 1 — Sobre a Obra


Este livro é mais que literatura: é memória viva.

Cada conto presente nestas páginas é uma porta aberta para o universo espiritual do povo Kariri-Xocó, onde seres ancestrais caminham entre águas, ventos e luzes, ensinando a origem, o propósito e o destino.


Ao unir tradição oral e escrita, Nhenety cria uma obra que preserva, emociona e revela.

É uma travessia para quem deseja compreender que a verdadeira sabedoria nasce da terra, do espírito e do vínculo com os ancestrais.


Orelha 2 — Sobre o Autor


Nhenety Kariri-Xocó transforma a palavra em flecha e em cura.

Com sensibilidade profunda, ele registra ensinamentos que atravessam gerações e que sustentam seu povo desde tempos imemoriais.

Sua escrita é um convite para lembrar que o mundo não começa no livro — começa na memória.



🔹 ENCERRAMENTO E EPÍLOGO


Este volume encerra-se como se encerra um ritual: não com um fim, mas com um retorno.

Cada conto aqui apresentado deixa ecos que continuam caminhando com o leitor, chamando-o a olhar o mundo com mais profundidade, mais escuta e mais respeito.


Que estas histórias sirvam como ponte entre tempos, entre pessoas e entre mundos.

Que fortaleçam o espírito de quem lê e preservem a força ancestral de quem as contou antes de nós.


Epílogo:

Quando a última página se fecha, o espírito da história permanece aberto.

Ele segue vivo, como rio que nunca para de correr.

E que assim seja, por todas as gerações, enquanto houver alguém disposto a lembrar.



FICHA TÉCNICA/NOTA DE DIREITOS AUTORAIS 


“Os contos presentes nesta obra foram previamente publicados pelo autor em seu blog: KXNHENETY.BLOGSPOT.COM. A versão impressa e reorganizada integra a Coletânea Woroy História, Kariri-Xocó e as Origens das Águas – Contos, Volume 2. Todos os direitos autorais reservados ao autor Nhenety Kariri-Xocó.”



🔹 NOTA DE FONTES RIMADA


Nas veredas invisíveis

Que os Encantados me dão,

Sigo escrevendo memórias

Feitas de fogo e oração.

Cada conto aqui vertido,

Cada sopro, cada luz,

Brota do chão ancestral

Que minha palavra conduz.


São fontes que vêm da mata,

Da água, do vento a correr;

Dos velhos que ainda ensinam

O jeito certo de viver.

É raiz, é chão batido,

É canto de juremá;

É o eco dos meus mais velhos

Falando dentro do mar.


E digo ao leitor atento,

Que em rede também se vê

O berço desses relatos,

Onde a palavra é meu axé.

No blog que guarda meu nome,

Raiz viva a florescer:

kxnhenety.blogspot.com,

Minha morada de escrever.


Ali nasceu cada canto,

Cada história e cantoria,

Que agora em livro renasce

Revestida em poesia.

Pois o que nasce do povo

É corrente a se expandir,

E o que se escreve com alma

Não há vento que possa extinguir.


Fontes velhas, fontes novas,

Tradição e inspiração;

A palavra é minha flecha,

O cordel é meu clarão.

Seja lido com respeito

E guardado no coração,

Pois aqui repousa o tempo

Do meu povo em narração.





Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





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