🔹️FALSA FOLHA DE ROSTO
WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ
OS HERÓIS E HEROÍNAS
Contos – Volume 3 – Coletânea
Nhenety Kariri-Xocó
🔹️VERSO DA FALSA FOLHA DE ROSTO
Este livro é uma obra literária de caráter poético-histórico, inspirada na tradição oral do povo Kariri-Xocó de Porto Real do Colégio (AL).
Qualquer semelhança com fatos históricos, memórias ancestrais ou personagens reais não é mera coincidência — é herança viva.
Direitos autorais: © Nhenety Kariri-Xocó
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução parcial ou total sem autorização do autor.
🔹️FOLHA DE ROSTO (FRONTISPÍCIO)
WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ
OS HERÓIS E HEROÍNAS
Contos – Volume 3 – Coletânea
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
Edição Especial Ancestral
Porto Real do Colégio – AL
2025
🔹️FICHA TÉCNICA / FICHA CATALOGRAFICA (MODELO)
(A ficha catalográfica verdadeira é feita por bibliotecário credenciado; aqui vai o modelo literário padronizado para constar no livro.)
K19w
Kariri-Xocó, Nhenety
Woroy História, Kariri-Xocó: Os Heróis e Heroínas – Contos. Vol. 3 / Nhenety Kariri-Xocó.
— Porto Real do Colégio: Edição do Autor, 2025.
200 p.; il.
Inclui glossário, apêndice e referências culturais.
Literatura indígena.
Tradição oral.
Kariri-Xocó — História e Cultura.
Contos ancestrais.
I. Título.
CDD — 869.93
CDU — 398
🔹️DEDICATÓRIA
Dedico este livro ao
Povo Kariri-Xocó,
semente antiga que resiste, dança e floresce
no barro sagrado do Opará.
À memória dos meus antepassados,
que caminham comigo a cada passo,
e às futuras gerações
que herdarão não apenas a terra,
mas o canto, o sonho e o coração
do nosso povo.
🔹️AGRADECIMENTOS
Agradeço aos Antepassados,
que sussurram histórias na ventania do Ouricuri.
Agradeço aos Mestres e Mestras anciãos,
que guardam os passos do tempo
e partilham a sabedoria com generosidade profunda.
Agradeço ao Velho Chico,
rio de água e memória,
que molda destinos e sustenta a vida.
E agradeço a você, leitor e leitora,
que abre estas páginas como quem abre um portal.
Aqui não se lê apenas:
aqui se escuta.
🔹️EPÍGRAFE
"A memória é o arco que não se quebra;
é ela quem faz do povo
uma fogueira que nunca apaga."
— Tradição Kariri-Xocó
🔹️SUMÁRIO
Falsa Folha de Rosto
Verso da Falsa Folha de Rosto
Folha de Rosto (Frontispício)
Ficha Catalográfica
Dedicatória Poética
Agradecimentos
Epígrafe
Prefácio
Apresentação
Introdução
CONTOS
Canindé, O Líder dos Kariri
Pindaíba, O Cacique Pescador
Pindaíba, O Cacique Pescador – Parte II: O Anzol da Medida, a Voz do Rio
Jaciara, A Lua do Dia
O Capitão-mor e o Pajé: Um Conto da Aldeia de Porto Real
O Pajé Ludovico, Sob a Sombra do Velho Angico
Epopeia do Alferes Kariri, O Guardião de Colégio
Gravié, O Curador do Baixo São Francisco
Maria Matildes, A Protetora dos Índios
Suíra, O Jovem Pajé
APÊNDICES
Apêndice I — Notas sobre a Narrativa e seus Caminhos
Apêndice II — Notas Culturais e de Contexto
Apêndice III — Notas do Autor
Glossário
Dados Biográficos do Autor
Orelha Esquerda
Orelha Direita
Sobre a Obra (se desejar incluir)
Capa
Quarta Capa
🔹️PREFÁCIO
(Primeira versão, espiritual, literária e envolvente)
Este terceiro volume da coletânea Woroy História, Kariri-Xocó nasce da terra molhada pela memória, do silêncio das fogueiras antigas e da força indomável do povo que habita as margens do Opará.
O autor, Nhenety Kariri-Xocó, oferece aqui não apenas contos: oferece portais. Cada narrativa é uma ponte entre o tempo dos encantados e o tempo dos homens, guiando o leitor pelo território sagrado onde a vida indígena se mantém pulsante.
Não é um livro sobre o passado.
É um livro do passado, do presente e do que ainda virá.
Ler estas páginas é entrar em roda, sentir o maracá vibrar, reconhecer nos heróis e heroínas não personagens distantes — mas parentes, ancestrais, mestres que ainda conversam conosco.
Que este volume honre o chão que te sustenta, leitor,
e que fortaleça as raízes que te chamam pelo nome.
🔹️APRESENTAÇÃO
Os contos reunidos neste volume são frutos da tradição oral Kariri-Xocó, preservados com respeito e recontados em linguagem literária para alcançar novos caminhos. Representam a força dos líderes, pajés, guerreiros, mulheres sábias e espíritos que moldaram a história de Porto Real do Colégio e das margens do Velho Chico.
O objetivo é simples e profundo:
criar memória, afirmar identidade e celebrar a resistência.
Cada conto é um universo completo, mas juntos formam um mapa sagrado da trajetória do povo Kariri-Xocó.
🔹️INTRODUÇÃO
A história indígena no Brasil muitas vezes foi escrita por outros. Este livro, no entanto, devolve a caneta às mãos de quem vive a história, de quem herda o sangue e o canto dos antigos.
Aqui a narrativa é ancestral, viva, autêntica.
Os contos não são apenas literários — são espirituais.
Carregam ensinamentos, alertas, risos, dores e celebrações.
E acima de tudo, são testemunhos da permanência.
🔹️CONTOS:
CANINDÉ, O LÍDER DOS KARIRI
No tempo em que o sertão ainda era livre e vasto como o céu, as terras do Nordeste ecoavam os passos dos Kariri — um povo forte, de raízes profundas e espírito altivo. Foi no século XVII, quando os primeiros vaqueiros portugueses romperam os caminhos da mata e da caatinga com seus rebanhos de gado, que começou a longa e sofrida história de ocupação do território sagrado.
Mas os Kariri não aceitaram o invasor em silêncio. Dentre eles, se ergueu uma voz firme como o chão seco e resistente da terra: Canindé, o cacique guerreiro. Ele não era apenas um líder, era um símbolo vivo da resistência. Diz-se que Canindé percorreu as trilhas quentes da Capitania de Pernambuco, convocando guerreiros, reacendendo o espírito de luta em aldeias distantes, incluindo as do território que hoje é Alagoas.
Vestido com as cores da terra e armado de coragem, Canindé levava consigo o grito do povo. Em cada aldeia que visitava, deixava sementes de coragem e sabedoria, como quem planta esperança no chão seco da caatinga.
Passaram-se séculos, mas os passos de Canindé ainda ecoam no coração dos Kariri-Xocó de Porto Real do Colégio, em Alagoas. Ali, nas noites de Toré, o canto ancestral ainda sobe aos céus, como reza e como memória:
Lêlê Lêlê Kanindé
Olha o Mestre Kanindé
Olê Kanindé
É assim que se eterniza um líder: no canto, na dança, no sopro da memória coletiva.
E há mais: entre as muitas famílias que guardam esse legado, vive o nome da linhagem — a família Nidé, descendente do saudoso cacique Otávio Nidé, que guiou o povo de 1944 até 1978 com a mesma firmeza que outrora teve o velho Canindé.
A cultura, como uma esponja viva, absorve a dor e a glória, o canto e a luta. Nos Kariri-Xocó, ela vive forte, e Canindé, o líder da caatinga, nunca partiu — apenas se tornou eterno no peito de quem ainda canta.
PINDAÍBA - O CACIQUE PESCADOR
Conto inspirado na memória dos Aramurus e dos Xocós
“Mesmo que o anzol fosse pequeno, a coragem do pescador era imensa.”
O sol mal nascia sobre as águas calmas do Velho Chico quando Pindaíba, com seus cabelos trançados e o olhar firme de quem carrega gerações, lançava seu pequeno anzol à beira da ilha. Chamavam-no de "anzol pequeno", e esse era seu nome de guerra e sabedoria: Pindaíba.
Líder dos Aramurus, seu povo habitava as cercanias da Ilha de São Pedro, onde a brisa quente misturava o cheiro de peixe fresco e folhas secas da Caatinga. A terra era dura, coberta de espinhos, mas fértil em histórias, cantos e rituais.
Os tempos eram sombrios. No litoral, os portugueses avançavam com sua cruz em uma mão e a espada na outra. Tribos inteiras desapareciam, massacradas ou dispersas. Os Aramurus sabiam que o tempo dos ventos livres estava se esgotando.
Foi então que Pindaíba, em um gesto de coragem e sacrifício, procurou os padres da missão. Não por submissão, mas por sobrevivência. Sabia que os bandeirantes viriam, e que a evangelização, ainda que dura, oferecia uma chance de manter seu povo vivo. Na Missão de São Pedro, ergueram-se uma igreja, um convento e um cemitério — marcos da nova ordem.
Mas a cruz também feria. O nome de Pindaíba foi motivo de riso entre os religiosos, que o transformaram em sinônimo de miséria. Ridicularizavam o cacique, tentando quebrar seu espírito, podar suas raízes, domesticar sua essência. Era uma estratégia velada: desfazer o que era sagrado para reconstruir à imagem deles.
Sob vigilância, os Aramurus tiveram que esconder seus cantos e danças, suas folhas e encantamentos. Porém, dentro de cada oca, no calor das noites, as mães sussurravam aos filhos as palavras antigas, e os velhos batiam o pé no chão ao ritmo dos tambores do passado.
Anos depois, chegaram os Xocós, vindos de Pão de Açúcar, do outro lado do rio. No começo, houve desconfiança, até mesmo conflito. Mas a dor os unia. A fusão foi inevitável. A igreja aplaudiu — pensava que assim controlaria melhor os corpos. Mal sabiam que os espíritos dos Aramurus e dos Xocós haviam se entrelaçado, como raízes firmes sob a terra, renascendo mais fortes.
Hoje, o nome de Pindaíba ainda ecoa pelas margens do São Francisco. Não mais como zombaria, mas como símbolo de resistência. Ele foi o último cacique selvagem, e também o primeiro a garantir a continuidade de seu povo no silêncio da luta.
E mesmo que o anzol fosse pequeno, a coragem do pescador era imensa.
PINDAÍBA – O CACIQUE PESCADOR – Parte II O anzol da medida, a voz do rio
Na calmaria sagrada do rio Opará, o velho cacique Pindaíba transmite a seu neto Gararu a sabedoria ancestral dos Aramurú e dos Xocó. Com um anzol pequeno e palavras cheias de verdade, ele ensina que pescar é mais do que tirar peixes do rio — é ouvir as águas, respeitar a medida e viver em equilíbrio com a Mãe Natureza. Uma história de escuta, herança e resistência, onde o silêncio revela mais do que o barulho do mundo.
O nome Aramurú significa o Povo de Deus dos Trovões. Nas margens serenas do Opará, o rio sagrado que banha o coração dos Aramurus, o velho cacique Pindaíba repousava à sombra de um juazeiro. O tempo não o curvava. Seus cabelos brancos contavam histórias que o vento conhecia, e os peixes do rio pareciam respeitar o som da sua canoa deslizando mansa.
Seu neto, Gararu, já começava a entender o valor do silêncio e da escuta. O nome Gararu na tradição Tupi significa "garça vermelha escura". Mas naquele dia, não resistiu à pergunta que fervia em seu peito:
— Vô Pindaíba, por que os brancos zombam do sinhô? Dizem que Pindaíba é nome de quem não tem nada...
O velho pescador assentiu com calma e sorriu, como quem espera a hora certa de jogar a isca.
— Eles zombam porque não sabem ouvir a língua do rio, nem a verdade dos nomes. Pindaíba, meu neto, é o anzol pequeno. E por que pequeno? Porque só assim a gente pesca o que precisa. Nem mais, nem menos. O anzol grande fere o peixe e a alma do rio.
— Então... o sinhô escolheu esse nome?
— Não escolhi. O nome veio com o tempo, com o modo de viver. Ser Pindaíba é andar em equilíbrio com a Mãe Natureza. A gente não acumula peixe, nem riqueza. Acumulamos histórias, lembranças e respeito. Os colonizadores chegaram com outra ideia: que tudo era mercadoria. Mas nós, Aramurus, aprendemos com os encantos, com os pajés, com os peixes. O que sobra, apodrece. O que é demais, mata.
Gararu abaixou os olhos, pensativo.
— Mas por que eles mandam se a terra era nossa?
Pindaíba colocou a mão sobre o ombro do neto, firme como um tronco de gameleira.
— Porque esqueceram de ouvir. E quem não escuta a voz do rio, perde a alma no barulho do ouro. Eles não veem que o rio Opará tem suas leis. Quem fere a água, fere o espírito. Por isso nós contamos, cantamos e pescamos com anzol pequeno. Para não ferir o tempo.
O velho cacique então tirou de uma pequena bolsa um objeto envolto em palha. Era o anzol de tucum que herdara do avô, feito com cuidado e segredo. Entregou a Gararu com reverência:
— Cuide dele. Esse anzol já pescou pacus, piabas, e até sonhos. Mas mais que peixe, ele ensina a paciência. Você está crescendo, meu neto. E quando chegar a hora, vai conhecer o segredo das Águas Ancestrais. Mas antes, precisa aprender o silêncio.
Gararu segurou o anzol com cuidado, como se carregasse um pedaço do rio.
E naquela tarde, à sombra do juazeiro, o menino lançou a isca no Opará — não para mostrar força, mas para ouvir o que as águas tinham a dizer.
O cacique sorriu. Sabia que uma nova história estava por vir. Gararu estava pronto para aprender com os encantos da tradição, para sonhar com os Espíritos do Peixe, e para enfrentar um mundo na sabedoria dos nomes.
JACIARA – A LUA DO DIA
Diz a memória antiga do povo Xocó que, antes de habitar a Ilha de São Pedro, em Porto da Folha, os seus pés pisavam forte as terras de Pão de Açúcar, nas margens do velho rio São Francisco, no Alagoas. Ali, entre cajueiros e ventos do sertão, havia uma grande aldeia, viva de canto e tradição. Os Xocós mantinham laços antigos com os Aramurus, que já viviam na Ilha de São Pedro. Era um tempo de encontros e trocas, de caminhos abertos entre as águas e o barro quente do chão indígena.
Foi então que, num fim de tarde do século XVII, chegou à aldeia um guerreiro de nome estranho: Nuirá Ubi, que os brancos chamavam de Arco Verde. Tinha o olhar firme de quem conhecia as trilhas do mato e a voz rouca de quem trazia histórias pesadas no peito. Viera a mando de Domingos Jorge Velho, buscando guerreiros para compor o temido Terço que marcharia contra os levantes da Capitania de Pernambuco. O destino era a guerra — contra os quilombos, contra os Kariris, contra a liberdade dos povos do sertão.
Arco Verde, porém, não veio apenas com ordens. Trouxe também o coração disposto a ficar. Apaixonou-se pela jovem Jaciara, filha da lua e do dia, mulher de espírito forte e olhos que refletiam o São Francisco. Desse amor nasceu Tereza Muirá, nome escolhido em lembrança a outra filha do sertão, Muirá Ubi, talvez irmã, talvez sombra de saudade. Por um tempo, a aldeia viu em Arco Verde um pai, um mestre, um homem dividido entre a espada do colonizador e o sangue da terra.
Quando chegou o tempo da guerra, muitos Xocós, treinados por ele, partiram. Marcharam ao lado de Arco Verde, confiantes ou resignados, rumo aos combates que cruzaram o sertão em chamas. Alguns voltaram. Outros ficaram nos campos de batalha. Mas Arco Verde... nunca mais retornou.
Jaciara esperou. No canto do Toré, nos olhos da filha, no silêncio das noites de lua cheia. E foi ali, no lamento calado do tempo, que os Xocós perceberam o perigo se aproximando: os brancos vinham mais perto, como sombra crescente. Decidiram migrar para a Ilha de São Pedro, juntando-se aos Aramurus. No início, houve disputas, desconfiança. Mas os casamentos, como o de Jaciara e Arco Verde, abriram caminhos. Com o tempo, os dois povos se tornaram um só.
Até hoje, o povo canta. Em roda, no terreiro, na memória viva do tambor, ecoa o nome da filha esquecida pela guerra, mas guardada pela história: Tereza Muirá.
“Dona Tereza,
Eu vou embora…
Vou lá pra cima pro sertão,
Eu vou embora…”
E assim, Jaciara — a lua que brilha de dia — segue iluminando os passos de quem ainda escuta os cantos antigos e honra os nomes gravados nas raízes do tempo.
O CAPITÃO-MOR E O PAJÉ, Um Conto da Aldeia de Porto Real
Nas margens majestosas do rio São Francisco, onde as águas correm serenas e eternas, erguia-se, com dignidade, a Aldeia dos Índios de Colégio. Ali, os Kariri plantavam suas roças, pescavam no grande rio e mantinham viva a tradição dos antigos, mesmo quando os ventos do mundo lá fora sopravam mudanças inevitáveis.
No século XVIII, justamente em 1763, a aldeia foi elevada à condição de Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Porto Real, passando a estar sob a jurisdição da Vila de Penedo, da poderosa Capitania de Pernambuco. O sino da pequena igreja repicava entre os coqueiros e gameleiras, chamando para as celebrações católicas, enquanto, sob as sombras das árvores ancestrais, os rituais Kariri ainda floresciam, conduzidos pelo pajé Ludovico, homem de saber profundo e olhos que pareciam conter a memória do mundo.
Naquele tempo, dois irmãos traçavam destinos que marcariam para sempre a aldeia: Pedro Lolaço e Ludovico. O primeiro, guerreiro e Capitão-Mor, conhecido por sua bravura e comando firme; o segundo, pajé respeitado, mestre das palavras e guardião dos espíritos.
— Meu irmão, as lutas vêm de longe e ainda virão — disse Ludovico certa vez, enquanto trançava folhas de palmeira para um novo cocar.
Pedro Lolaço, de pé à beira do rio, contemplava as águas sem pressa, sentindo no peito o peso do dever.
— E estaremos prontos para elas — respondeu, com a firmeza de quem sabia que a defesa do povo era um fardo e uma honra.
Na aldeia, corria a fama de que Pedro Lolaço nunca recuava diante do perigo. Com ele, marchava o Cabo de Esquadra Manoel Altanasio, homem de palavra direta e espírito leal. Juntos, mantinham a ordem nos povoados da região, liderando expedições, protegendo as fronteiras e enfrentando rebeliões que, vez ou outra, sacudiam as entranhas do Brasil Colonial.
Numa tarde abafada, o mensageiro chegou à aldeia montado em um cavalo suado:
— Capitão-Mor! Rebeldes avançam pelo sertão! Precisam de homens para a defesa!
Pedro calçou as sandálias de couro, ajustou o gibão e, sem titubear, ordenou:
— Reúna os homens. Partiremos antes do romper da aurora!
Manoel Altanasio aproximou-se, assentindo:
— Como sempre, ao seu lado, Capitão.
As mulheres e os velhos formaram um círculo em torno dos guerreiros que partiriam. Ludovico ergueu um maracá e, com voz grave, entoou cânticos de proteção:
— Que os espíritos da terra e das águas caminhem com vocês, meus irmãos!
E assim foi. Por anos e anos, Pedro Lolaço e Manoel Altanasio enfrentaram os desafios do tempo, participando das lutas que moldaram o destino da região até meados do século XIX.
Quando a paz se instalava, o Capitão-Mor caminhava ao lado do pajé pela trilha que levava ao alto do morro, onde os antigos enterravam os ossos dos antepassados.
— Ludovico, quando partirmos, quem continuará nossa história? — perguntou, com um raro traço de melancolia.
O pajé sorriu, fitando a aldeia que se estendia embaixo, com suas casas de taipa e o rio, imenso e sábio.
— Nossos filhos, Pedro. E os filhos de nossos filhos. Somos raízes que nunca morrem.
E, de fato, assim foi. Pedro Lolaço deu origem à numerosa Família Botó, cujos descendentes ainda hoje caminham pelas veredas da aldeia. Já Manoel Altanasio tornou-se o tronco da Família Pirigipe, conhecidos como os Baca, tão numerosos quanto valentes.
E na tradição oral, passada de avô a neto, ainda ecoam as histórias:
— Sabem, crianças? O Capitão-Mor Pedro Lolaço foi irmão do pajé Ludovico! Um guerreiro e um sábio, lado a lado, guardiões do nosso povo!
As crianças arregalam os olhos, enquanto o velho Nidé como contador de histórias conclui:
— E enquanto o rio São Francisco correr, o nome deles nunca será esquecido.
E assim, entre o rumor das águas e o sussurro do vento nas folhas, segue viva a memória do Capitão-Mor e do Pajé, irmãos Kariri de Porto Real do Colégio.
O PAJÉ LUDOVICO, SOB A SOMBRA DO VELHO ANGICO
O rio São Francisco corria calmo naquela manhã enluarada, como se soubesse que ali, na Aldeia de Colégio, algo prestes a acontecer marcaria para sempre a memória dos Kariri. O ano era de 1763, e as águas, testemunhas silenciosas de tantos encontros e despedidas, apenas sussurravam ao longe.
A aldeia, antes pulsante ao redor da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, agora parecia sufocada sob o peso das ordens dos colonizadores. Os índios, que durante gerações haviam feito daquele chão a extensão de seus corpos e espíritos, foram afastados, obrigados a se refugiar nas periferias, longe do centro onde os sinos da igreja dobravam frios e alheios à dor do povo.
No cimo da colina conhecida como Alto do Bode, onde a mata se adensava e as folhas dançavam ao comando do vento, o pajé Ludovico, ancião de palavras pausadas e olhar profundo, ergueu-se com dificuldade sobre o solo vermelho. Ao redor dele, reunidos em semicírculo, estavam os guerreiros, as mulheres com seus filhos nos braços, e os jovens que ainda aprendiam os cantos sagrados.
Ludovico fixou os olhos no horizonte, onde o céu se confundia com a terra numa linha difusa. De súbito, ergueu o braço trêmulo e apontou:
— Olhem… — sua voz soou grave, mas cheia de esperança. — A grande árvore se ergue lá, na linha onde o mundo toca o infinito…
Todos voltaram os rostos para onde ele indicava. Lá, como uma sentinela solitária, despontava um angico frondoso, suas raízes agarradas com força à terra, seus galhos abertos como braços que acolhem.
— O velho angico… — murmurou uma das anciãs, levando a mão ao colar de sementes que pendia sobre o peito.
O pajé então falou, como se evocasse os espíritos ancestrais:
— Nossos passos são antigos como as águas deste rio. Mas os colonizadores apertam o cerco, querem nossas terras, nossos corpos, nossa alma. Precisamos seguir, não apenas para sobreviver, mas para manter viva a nossa essência. A Taba Original do Ouricuri deve migrar. Aquele angico será o novo guardião dos nossos rituais, o abrigo da nossa memória.
Um silêncio denso pairou sobre o grupo, rompido apenas pelo lamento suave de um maracá, que uma criança fazia soar inconscientemente, como quem embala o tempo.
Ludovico então colheu um punhado de terra do solo onde estavam e, fechando a mão, disse:
— Levemos conosco este chão, para que nunca esqueçamos de onde partimos…
E assim, cada membro da comunidade fez o mesmo: colheram um pouco de terra, guardando-a em pequenos sacos de palha, um gesto simbólico que unia passado e futuro.
A travessia foi lenta, mas firme. O sol já descia quando chegaram sob a copa generosa do angico. Ali, Ludovico ajoelhou-se, tocou as raízes expostas e, com reverência, sussurrou:
— Velho guardião, recebe teu povo.
A comunidade então circundou a árvore, e as mulheres começaram a entoar o toré, a dança circular que embala o espírito coletivo, enquanto os homens fincavam as primeiras estacas da nova aldeia.
Naquele instante, as folhas do angico balançaram suavemente, como quem responde, e um bando de araras cortou o céu com seus gritos vibrantes, como se anunciassem aos quatro cantos: “Eles permanecerão!”
E assim permanece, até os dias de hoje, a sombra protetora do velho pé de angico dos Kariri, onde a memória, a resistência e a espiritualidade continuam enraizadas, firmes como as raízes daquela árvore sagrada.
EPOPEIA DO ALFERES KARIRI, O Guardião de Colégio
Ouçam, filhos da floresta e do rio, ouçam o cântico que atravessa os séculos e dança com o vento nas folhas do Ouricuri! Pois nesta terra sagrada, onde o Xocó e o Kariri entrelaçaram suas raízes, ergueu-se um guerreiro cujo nome jamais será silenciado: Firmino José dos Santos, o Alferes de Colégio!
Na era dos homens de farda e coroa, quando o Império do Brasil enviou seus filhos à guerra, o chão tremeu, e os céus cerraram-se em tempestade. De 1864 a 1870, o sangue regou a terra na Guerra do Paraguai, e até das aldeias do grande rio São Francisco, os espíritos dos guerreiros foram chamados para o combate.
Dos rituais ancestrais, das rodas de dança e do sopro das flautas, ergueu-se Firmino, com olhos de onça e peito de pedra, respondendo ao chamado da Pátria, mas levando consigo a alma de seu povo. Partiu com os "Voluntários da Pátria", cruzando matas e rios, enfrentando a fúria dos canhões, a lâmina dos inimigos e as sombras da morte.
Mas os encantados o protegeram! Os velhos pajés, em suas rezas, enviaram-lhe a força da jurema e a visão da jandaia. E Firmino voltou, não como homem comum, mas como herói, com a patente de Alferes brilhando como estrela nas noites de Colégio.
Os ciclos giraram, como gira o maracá na mão do pajé. As aldeias tornaram-se vilas pelo decreto dos homens da cidade, e no dia 7 de julho de 1876, Porto Real do Colégio ergueu-se com novos nomes e novos títulos.
Por um tempo, um homem branco, Francisco Xavier Ourives, governou a vila — como manda a tradição dos que desenham linhas sobre a terra e escrevem leis que não ouvem o canto dos pássaros.
Mas os espíritos haviam traçado outro destino! E em 1880, como o trovão que rasga o céu, Firmino foi nomeado intendente. Um indígena! Um filho da terra governando sua própria aldeia transformada em vila!
Contam os anciãos, à beira do fogo, que Firmino nunca renegou sua essência. Montado em seu cavalo, com a farda do Império e a espada reluzente, atravessava as veredas rumo ao sagrado Ouricuri, onde o povo se reunia para celebrar os mistérios da criação, os ciclos da vida e da morte, o sopro do Grande Espírito.
Ali, entre folhas e raízes, o Alferes vestia o orgulho de sua farda, mas nunca deixava de ser Kariri. Sua espada não feria: protegia. Seu cavalo não invadia: guiava. Sua presença não impunha: honrava.
E assim, Firmino tornou-se mais que homem: virou mito, virou canto, virou eternidade. Quando as estrelas se acendem sobre as águas do São Francisco e o som do maracá ecoa na mata, é sua memória que cavalga, altiva, como relâmpago entre as árvores.
Ó, jovens de hoje, que escutam este cântico! Lembrai-vos do Alferes Kariri, aquele que cruzou os mundos, que lutou com espada, mas viveu com alma de raiz. Guardião eterno de Colégio, sua epopeia vive, como vive o vento, como vive a terra, como vive o povo que jamais será esquecido!
E assim se canta. E assim se guarda. E assim se honra.
GRAVIÉ, O CURADOR DO BAIXO SÃO FRANCISCO
No final do século XIX, quando as águas do Rio São Francisco ainda desenhavam com majestade as margens férteis do Baixo Sertão, havia um homem que era mais que um simples habitante da região; era uma lenda viva entre os povos indígenas e ribeirinhos. Seu nome era Gabriel Gonçalves, mas todos o conheciam como Gravié.
Gravié era um indígena forte, respeitado e, acima de tudo, generoso. Vivia na Rua dos Índios, na periferia de Porto Real do Colégio, Alagoas, onde o tempo parecia caminhar ao ritmo das águas do Velho Chico. Com seu talento incomum para a cura e a sabedoria herdada dos seus ancestrais, Gravié tornou-se um homem próspero. Possuía fazendas, terras férteis e um imenso rebanho de gado que pastava livre pelas campinas do sertão. O dinheiro era abundante, mas não era a riqueza que fazia dele um homem admirado — era sua capacidade de aliviar a dor dos outros.
As portas da casa de Gravié nunca se fechavam. De manhã até o anoitecer, indígenas de diversas partes do Baixo São Francisco vinham em busca de alívio, cura e orientação. Com ervas, rezas e conhecimento ancestral, Gravié atendia a todos com paciência e sabedoria. Ao seu lado, sempre estava sua esposa, Luzia, irmã do respeitado Pajé Manoel Paulo, que também partilhava do dom e da responsabilidade de cuidar dos seus.
Os anos se passaram, e a casa de Gravié se tornou um verdadeiro centro espiritual e comunitário, onde vidas eram salvas e tradições preservadas. Mas em 1910, um silêncio profundo abateu-se sobre a Rua dos Índios: Luzia faleceu, deixando um vazio imenso não apenas no coração de Gravié, mas em toda a comunidade.
Mesmo tomado pela dor, Gravié não se entregou à tristeza. Tempos depois, uniu-se em matrimônio com Maria Matildes, uma mulher forte e conhecedora dos mesmos saberes curativos que faziam parte de sua trajetória. Com ela, Gravié encontrou nova força para seguir atendendo aos seus irmãos indígenas, mantendo viva a chama da solidariedade e do cuidado.
Em 1932, Gravié fez sua última viagem, deixando a vida com a mesma dignidade com que viveu. Mas seu legado não se perdeu. Maria Matildes continuou a acolher, curar e proteger os indígenas que, diariamente, buscavam refúgio e cura naquela casa que há décadas era símbolo de resistência e esperança.
O tempo seguiu seu curso, e em 1944, com a criação do Posto Indígena Padre Alfredo Dâmaso, uma nova fase se iniciou para os povos indígenas da região. A missão de assistência e acolhimento que Gravié e Matildes haviam mantido por tantos anos passou a ter respaldo institucional, mas a memória de Gravié permaneceu viva, como as águas do São Francisco que jamais cessam de correr.
E até hoje, nas histórias contadas pelos mais velhos sob a sombra das gameleiras, ecoa o nome de Gravié — o curador, o homem que transformou sua sabedoria em vida, seu lar em abrigo, e sua existência em legado.
MARIA MATILDES, A PROTETORA DOS ÍNDIOS
Conto baseado em fatos da história Kariri-Xocó
No calor do sertão alagoano, nos tempos em que o trem mal alcançava Porto Real do Colégio, ecoavam nas noites de lua cheia as histórias do povo Kariri-Xocó. Entre elas, uma se contava com respeito e reverência: a de Maria Matildes, a mulher que se tornou escudo e esperança para os indígenas da Rua dos Índios.
Gabriel Gonçalves, conhecido como Gravié, era um homem de posses, índio respeitado e dono de terras, casas e rebanhos. Seu nome era falado em voz baixa, não por medo, mas por admiração. Morava com sua esposa Luzia, irmã do pajé Manoel Paulo, e juntos mantinham viva a tradição de seu povo com rituais e encontros sagrados.
Mas o destino, com sua vara torta, veio pousar sobre Luzia, deixando-a paralisada por uma enfermidade sem nome. Foi então que Maria Matildes chegou àquela casa, trazida não por acaso, mas pelo sopro do espírito ancestral. Contratada para cuidar da enferma, logo se tornou mais que uma ajudante — tornou-se presença, silêncio, afeto.
Quando Luzia partiu, em 1912, a tristeza vestiu a casa por longos meses. Gravié recolheu-se, e, no tempo em que o luto cicatrizava a dor, o coração se reabriu: ele e Matildes tornaram-se companheiros de jornada.
A força de Matildes ia além do amor. Ela caminhava entre os brancos com firmeza, mas era entre os seus que se fazia rocha. Ao lado de Gravié, oferecia assistência ao povo Kariri e aos Xocó, mantinha vivo o espírito dos rituais, garantia espaço, respeito e acolhimento na Rua dos Índios.
Quando Gravié faleceu em 1932, não deixou apenas lembranças: deixou a ela tudo que possuía. Terra fértil, casas de tijolo, bois de chifre longo, moedas de prata. Maria Matildes tornou-se senhora de si e do destino de muitos. Ao redor de sua casa viviam parentes: o irmão Luiz Teipó, os primos Quinca, João Menino e Zeca. E todos sabiam: com ela, nenhum indígena estava só.
Matildes enfrentava autoridades, enfrentava o preconceito, e se impunha com o peso do respeito que conquistara. Era a voz dos que não podiam falar, o escudo dos que apanhavam calados.
Enquanto ela fazia valer os direitos dos seus, o pajé Francisquinho atravessava o sertão rumo a Bom Conselho, em Pernambuco, buscando apoio do padre Alfredo Dâmaso. Sonhavam com reconhecimento, com um lugar onde o povo não precisasse pedir permissão para existir.
Em 1944, Maria Matildes fez sua última travessia, deixando um rastro de lágrimas e saudade na comunidade. Muitos sentiram-se órfãos. Mas dizem os mais velhos — e em cada canto da aldeia isso ecoa — que parte da sua fortuna ajudou a erguer o Posto Indígena Padre Alfredo Dâmaso naquele mesmo ano. Lá surgiram a sede, a enfermaria e uma escola, tudo erguido com a força de um legado.
O que restou foi dividido entre os familiares, como era justo. Mas o maior bem que deixou foi a memória viva de uma mulher que amou e lutou como poucas. Até hoje, quando os mais antigos se reúnem à beira do fogo, alguém sempre diz:
— Ela ainda caminha por aqui... na força de nossa luta.
SUÍRA, O JOVEM PAJÉ
Na beira serena do rio São Francisco, onde as árvores antigas sussurram segredos aos ventos de Alagoas, ergue-se a Aldeia de Colégio. Ali, entre cantos e memórias, pulsa forte a tradição do Ouricuri, ritual sagrado que atravessa o tempo, guiando gerações dos Kariri-Xocó.
Por muitas luas e sóis, a condução desse ritual permaneceu nas mãos de uma mesma família: os Suíra. Foi Luvico quem primeiro recebeu o chamado espiritual, passando adiante a missão a Manoel Baltazar. Depois, as palavras do sagrado foram guardadas por Manoel Paulo, que as transmitiu a seu neto, Manoel Joaquim de Santana, conhecido por todos como Dunga.
Mas como o rio, a vida também faz curvas inesperadas. Dunga, em meio a um desentendimento com Gravié, outro importante líder da aldeia, interrompeu o ritual do Ouricuri. Três longos anos se passaram, e o silêncio parecia ter calado as vozes dos ancestrais.
Porém, a tradição não podia morrer.
O Conselho Tribal reuniu-se em círculo, sob a sombra acolhedora dos juazeiros. Depois de muitos diálogos e olhares para o passado e o futuro, escolheram um novo guardião para o ritual: Francisco Suíra, outro neto de Manoel Paulo. Ele era apenas um jovem de dezesseis anos, mas já carregava no olhar a força dos antigos. Entre os seus, era chamado carinhosamente de Francisquinho.
Assim, com a responsabilidade que só os grandes líderes conhecem, Francisco Suíra tornou-se o novo pajé. Conduziu novamente o Ouricuri, devolvendo vida ao que parecia adormecido.
Ao longo de sua trajetória, Suíra deixou marcas profundas: fundou, em 1944, o Posto Indígena na Aldeia de Colégio, durante os tempos do Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Décadas depois, ao lado do cacique Cícero Irêcê, lutou bravamente pela retomada da Fazenda Modelo, conquista emblemática de 1978.
Francisco Suíra — ou simplesmente Pajé Suíra — partiu em 1994, aos 82 anos. Mas sua presença permanece viva: na memória do seu povo, no fortalecimento da cultura Kariri-Xocó e no nome que batiza a Escola Estadual Indígena Pajé Francisco Queiroz Suíra, onde novas gerações aprendem, crescem e sonham.
E assim, como os ciclos eternos da natureza, a história de Suíra continua a ecoar, inspirando os que seguem pelo caminho da tradição.
Autor dos Contos: Nhenety Kariri-Xocó
🔹️APÊNDICES
Apêndice I — Notas sobre a Narrativa e seus Caminhos
As histórias reunidas neste livro transitam entre a memória afetiva, a inspiração cotidiana e as raízes culturais que conectam o autor ao seu povo. Embora muitas delas tenham origem em experiências ou percepções reais, cada conto recebeu espaço para respirar literariamente, permitindo que o simbólico ampliasse o concreto.
Algumas narrativas carregam ecos de ensinamentos antigos, outras são fruto de observações sobre o mundo contemporâneo. A mistura entre tradição e modernidade é intencional: reflete a identidade múltipla de quem vive entre o ontem e o hoje, entre o que herdou e o que escolheu ser.
Este apêndice serve como um breve mapa: não para explicar cada conto, mas para lembrar ao leitor que a literatura nasce, quase sempre, de lugares invisíveis.
Apêndice II — Notas Culturais e de Contexto
A tradição oral
No universo indígena, a palavra dita é tão importante quanto a palavra escrita. Muitas histórias que inspiram este livro vêm dessa tradição viva — de conversas ao pé da noite, de ensinamentos transmitidos sem pressa, de narradores que a comunidade reconhece como guardiões da memória.
O sentido da caminhada
Para muitos povos originários, caminhar não é apenas deslocar-se: é aprender. A caminhada presente em vários contos simboliza transformação, passagem e autoconhecimento.
Natureza como personagem
A terra, o vento, o rio e os ciclos naturais aparecem como forças que conversam com os personagens. Não são cenário: são presenças.
Apêndice III — Notas do Autor
Escrevo porque a vida pede.
E porque cada conto que nasce carrega, dentro de si, uma forma de resistência.
A resistência da memória, da cultura, e da palavra que insiste em existir.
Este livro é fruto dessa insistência.
🔹️GLOSSÁRIO
Ancestralidade – Conjunto de saberes, memórias e forças transmitidas entre gerações. Não apenas passado, mas presença contínua.
Canindé – Líder indígena da região Nordeste no século XVII, seu nome significava "arara azul".
Cosmovisão – Maneira de compreender o mundo a partir de uma perspectiva cultural, espiritual e comunitária.
Encantos – Presença espiritual que habita natureza, rios, matas, ventos ou lugares sagrados; figura importante em diversos povos indígenas.
Gararu – Chefe indígena do Baixo São Francisco do final do século XVII, seu nome significa "Garça vermelha escura".
Gravié – Apelido do líder indígena de Porto Real do Colégio, final do século XIX e início do século XX, Gravié significa "Gabriel".
Jaciara – Uma líder indígena da Aldeia Jaciobá do Baixo São Francisco no século XVII, foi esposa de Arco Verde líder indígena que visitou a região. O nome Jaciara significa "Lua do dia".
Memória viva – Lembrança que permanece ativa na prática e na palavra, como parte da identidade coletiva.
Pindaíba – Chefe indígena Aramuru da Ilha de São Pedro no século XVII, seu nome significa "anzol pequeno" ou "anzol da medida".
Território – Muito além de espaço físico; abrange pertencimento, história, vínculo espiritual e afetivo com a terra.
Uiráubi – O nome de um chefe indígena, significa "Arco Verde".
🔹️DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR
Nhenety Kariri-Xocó é escritor, contador de histórias e guardião da memória ancestral de seu povo, originário da Aldeia de Porto Real do Colégio (AL).
Poeta, pesquisador e artesão da palavra, dedica sua obra a fortalecer a identidade indígena, preservar tradições e transformar história oral em literatura escrita.
Sua produção literária une espiritualidade, resistência e beleza poética, sendo referência na valorização da cultura Kariri-Xocó.
🔹️ORELHA DO LIVRO
(lado esquerdo / apresentação literária)
A palavra, quando nasce, caminha.
Assim são os contos reunidos neste livro — histórias que respiram, que carregam memória, que atravessam o tempo com a suavidade de quem reconhece que cada leitor é também um viajante.
Em Woroy História, os Heróis e Heroínas
Nhenety Kariri-Xocó transforma pequenas percepções em narrativas profundas, revelando um olhar capaz de unir raízes ancestrais e a sensibilidade contemporânea. Não há aqui exageros: há verdade. Há silêncio. Há força.
Suas histórias não buscam explicar o mundo; buscam tocá-lo.
E ao tocá-lo, tocam também quem as lê.
Este livro não é apenas para ser lido — é para ser sentido.
🔹️ORELHA DO LIVRO
(lado direito / sobre o autor)
Nascido no povo Kariri-Xocó, em Porto Real do Colégio (AL), Nhenety cresceu entre vozes sábias, histórias antigas e paisagens que moldaram sua percepção de mundo. Guardião da palavra, dedica-se a preservar e compartilhar a visão de sua ancestralidade através da escrita, do conto e da oralidade.
Seu trabalho combina espiritualidade, observação sensível e consciência histórica, resultando em narrativas que conversam tanto com o leitor comum quanto com quem busca reflexão profunda.
Com Woroy História, Kariri-Xocó os Heróis e Heroínas, Nhenety reafirma sua presença na literatura indígena contemporânea, trazendo ao papel aquilo que sempre viveu: a palavra como caminho.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó












Nenhum comentário:
Postar um comentário