📘 FALSA FOLHA DE ROSTO
WOROBÜYÉ – FÁBULAS KARIRI-XOCÓ
Os Viajantes do Mundo
Volume 7 – Coletânea
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
📘 VERSO DA FALSA FOLHA DE ROSTO
Obra literária organizada e escrita por:
Nhenety Kariri-Xocó
Povo Kariri-Xocó – Porto Real do Colégio | AL – Brasil
Todos os direitos reservados ao autor.
📘 FOLHA DE ROSTO ( FRONTISPÍCIO )
WOROBÜYÉ – FÁBULAS KARIRI-XOCÓ
Os Viajantes do Mundo
Volume 7 – Coletânea
Autor:
NHENETY KARIRI-XOCÓ
Contador de Histórias Oral e Escrita
Povo Kariri-Xocó
Ano de publicação: 2025
Local: Porto Real do Colégio – AL – Brasil
📘 FICHA CATALOGRÁFICA ( MODELO COMPLETO )
Dados fictícios adaptados ao padrão da Biblioteca Nacional para fins de organização interna do livro.
Kariri-Xocó, Nhenety.
Worobüyé – Fábulas Kariri-Xocó, Os Viajantes do Mundo – Volume 7 – Coletânea / Nhenety Kariri-Xocó. – 1. ed. – Porto Real do Colégio, AL, 2025.
200 p. : il. ; 21 cm.
Inclui ilustrações e apêndices.
Inclui glossário indígena.
ISBN: (colocar quando houver)
Literatura indígena brasileira.
Fábulas Kariri-Xocó.
Narrativas tradicionais.
Povos originários do Brasil.
I. Título.
CDU: 82-34(=1.15)
🌺 DEDICATÓRIA
Dedico este livro aos meus ancestrais,
portadores da Palavra Sagrada,
que ensinaram ao meu povo
que cada ser vivo tem uma história,
cada ave carrega um caminho,
cada passo na Terra ecoa no tempo.
Que estas fábulas voem como as aves viajantes
e encontrem morada no coração
de quem ama a sabedoria da vida.
— Nhenety Kariri-Xocó
🌺 AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus parentes Kariri-Xocó,
que mantêm viva a tradição das histórias contadas ao pé do fogo.
Agradeço ao espírito do Rio Opará,
que inspira a memória e o canto.
Agradeço aos mestres da palavra,
aos viajantes do mundo,
e a todos que respeitam
as histórias que nascem da terra, da água e do vento.
🌺 EPÍGRAFE
"Toda ave que cruza o céu traz consigo uma lição.
Toda alma que escuta aprende a viajar pelo mundo sem sair do lugar."
— Sabedoria Kariri-Xocó
📄 SUMÁRIO ( ÍNDICE )
Prefácio
Apresentação
Introdução
Fábulas ( 01 a 10 )
01. Tibudina e as Aves Viajantes;
02. Ieenitokiete Radda, A Fábula da Ave Viajante do Mundo;
03. Aves Migratórias, As Descobridoras de Oceanos e Continentes;
04. Ieende-crú-uná, A Andorinha-do-Mar e as Palancas do Deserto;
05. Ieende-crú-uná e o Grou de Coroa Dourada;
06. Ieende-crú-uná bae Ananaí, A Andorinha-do-Mar e o Rei dos Patos ;
07. Babuíno e o Falcão-peregrino;
08. A Tartaruga e o Falcão Viajante;
09. O Bacalhau da Quaresma e a Tilápia da Galiléia;
10. A Sardinha e a Cavala, Sabores do Mar e da Vida.
Apêndices
Glossário Indígena
Informações adicionais
Dados Biográficos do Autor
Orelha do Livro
Capa e Contracapa (final)
📘 PREFÁCIO
O povo Kariri-Xocó guarda em sua memória ancestral um universo onde cada ser — ave, peixe, árvore, rio ou pedra — carrega uma história. Essas histórias não são apenas entretenimento: são caminhos de sabedoria, ensinamentos deixados pelos antigos para orientar a vida, fortalecer o espírito e manter viva a ligação com a natureza.
Neste livro, Worobüyé – Fábulas Kariri-Xocó, o autor Nhenety Kariri-Xocó nos conduz por trilhas que ultrapassam o tempo. Suas narrativas dialogam com o passado sagrado dos Ancestrais, com a voz dos mestres da palavra e com a vivência cotidiana do povo que habita as margens do Opará. Há nelas um encantamento simples e profundo: o poder de ensinar através do mito, da metáfora e da poesia.
As aves migratórias, os peixes celebrados nas tradições populares, a humildade da tartaruga, a coragem dos falcões, o mistério das palancas do deserto — cada elemento revela uma parte da alma indígena. Ler estas fábulas é sentir o sopro do vento antigo que moldou gerações; é ouvir o eco das fogueiras que iluminavam noites de contação; é ser convidado a participar de uma cultura onde o mundo natural não é cenário, mas protagonista.
Que estas páginas inspirem respeito, admiração e reconhecimento pelos saberes dos povos originários.
Que cada leitor encontre nelas não apenas histórias, mas caminhos.
— [Assinatura opcional de prefaciador]
📘 APRESENTAÇÃO
Este livro nasce do encontro entre tradição e continuidade. Worobüyé – Fábulas Kariri-Xocó é mais do que uma coletânea literária: é a afirmação de uma memória viva, que atravessa gerações e permanece firme como o tronco da gameleira sagrada.
Aqui, o autor Nhenety Kariri-Xocó apresenta ao público dez fábulas que viajam pelo mundo mítico e real. Suas narrativas são frutos de observação, experiência e inspiração espiritual. Cada história carrega elementos simbólicos da cultura Kariri-Xocó, traduzidos em linguagem acessível, poética e profunda.
O leitor encontrará ensinamentos sobre humildade, coragem, união, fraternidade e respeito à vida. Encontrará também a força da oralidade transformada em escrita — não como perda, mas como expansão — permitindo que outras aldeias, outras cidades e outros povos recebam a palavra tradicional que vive no coração do autor.
Este livro abre portas entre mundos:
o mundo visível e o invisível,
o antigo e o contemporâneo,
o humano e o animal,
o terrestre e o celeste.
Que cada fábula seja uma semente lançada em solo fértil, germinando conhecimento, reflexão e beleza.
📘 INTRODUÇÃO
As fábulas presentes neste volume refletem o modo como o povo Kariri-Xocó compreende o mundo. Para nós, tudo está ligado: o voo das aves diz algo sobre os caminhos humanos; o comportamento dos peixes revela a sabedoria do mar; o encontro entre animais de diferentes reinos ensina sobre convivência, respeito e equilíbrio.
A tradição indígena não separa natureza e espírito.
Cada ser carrega uma força sagrada, um papel no grande tecido da vida.
Por isso, as histórias aqui reunidas não são meros contos: são ensinamentos, registros de uma cosmologia que valoriza a experiência, a observação da natureza e o diálogo com os Ancestrais.
Neste livro, o autor busca preservar e transmitir uma parte dessa sabedoria. As dez fábulas que compõem a obra exploram temas variados: a coragem das aves viajantes, o equilíbrio entre humildade e grandeza, o sentido das jornadas, o valor da comunidade, a importância de cada ser na construção da vida coletiva.
A linguagem utilizada procura honrar a oralidade tradicional, mantendo o ritmo, o espírito e a musicalidade das histórias contadas ao redor do fogo. Cada fábula também traz uma moral que dialoga com o cotidiano contemporâneo, lembrando que os ensinamentos ancestrais continuam atuais e necessários.
Este volume faz parte de uma caminhada maior: o fortalecimento da literatura indígena e a valorização da voz ancestral dos povos originários. Que o leitor encontre nestas páginas não apenas narrativas, mas pontes — pontes entre culturas, entre tempos e entre mundos.
📘 FÁBULAS ( 01 A 10 )
01. TIBUDINA E AS AVES VIAJANTES
Uma Fábula da Moça e as Aves Viajantes
Num final de tarde, nas margens sagradas do Rio Opará, a jovem Tibudina, uma moça sábia do povo Kariri, sentou-se em silêncio, ouvindo o sussurro do vento e observando o céu que começava a se tingir de ouro.
De repente, um som de asas suaves preencheu o ar. Eram as arribaçãs — Ieende-idabá, os "pássaros que chegam a um lugar".
Tibudina se levantou e perguntou à líder do bando:
— De onde vêm vocês?
A líder, com o peito estufado e brilho nos olhos, respondeu:
— Viemos do sertão, onde o sol castiga e os espinhos florescem.
Logo em seguida, cortando o céu em danças elegantes, vieram as andorinhas — Ieende-crú-uná, as aves de cauda repartida.
Tibudina sorriu e perguntou:
— E vocês, de onde vêm voando tão ligeiras?
Elas responderam:
— Viemos das terras geladas do Norte, fugindo do frio e buscando o calor de Opará.
Mal acabaram de falar, chegaram os ágeis maçaricos — Ieende-wõ-kempé-bü, os "pássaros-perna-fina-corredores".
Curiosa, a moça indagou:
— Também estão chegando agora? Qual o caminho de vocês?
A líder respondeu:
— Viemos das terras frias e nebulosas. Viajamos muito até encontrar esse lugar de fartura.
Por fim, cortando o ar com majestade, apareceu o gavião — Ieende-sitó, a ave caçadora. Mas dessa vez quem falou foi a andorinha:
— E você, senhor dos céus, de onde vem?
O gavião respondeu com voz grave:
— Venho do Sul, voando sobre as ondas do mar e seguindo o vento.
Tibudina então ergueu os braços ao céu e disse:
— Chamarei todos vocês de Ieende Itohikiete, "As Aves Viajantes". Mesmo sabendo que há muitas outras que também cruzam os céus para cá, é por respeito que darei esse nome.
Ela se pôs de pé e disse em voz firme:
— Avisarei meu povo que, quando vocês chegarem, não devem ser caçadas. Vocês precisam se alimentar e se reproduzir. Só assim a vida se renova.
Desde então, sempre que as aves viajantes chegam ao Opará, todos lembram do ensinamento de Tibudina.
🌱 Moral da Fábula:
A sabedoria respeita o ciclo da vida. Proteger quem viaja para viver é honrar a Terra que nos sustenta.
02. IEENITOKIETE RADDA, A FÁBULA DA AVE VIAJANTE DO MUNDO
Era uma vez, à beira do grande mar Aindemodzu, uma andorinha de cauda repartida chamada Ieende-crú-uná. Vinha de longe, muito longe, cortando os céus do mundo com suas asas ágeis e o coração cheio de histórias do vento.
Naquele dia, mergulhou nas águas salgadas e prateadas para se alimentar dos peixes que dançavam entre as ondas. Depois do banquete, pousou na praia para descansar suas asas cansadas. Foi então que ouviu um tilintar alegre entre as folhas: era Maracanã, a ave verde que cantava como um chocalho.
— Olá, pássaro verde! — disse a andorinha.
— Olá, Andorinha do céu! Estavas pescando?
— Sim. Após uma longa viagem. Venho de muito longe.
Maracanã inclinou a cabeça curiosa.
— E de onde vens com tanta pressa e graça?
— Sou da linhagem de Ieende Itohikiete, as Aves Viajantes. Cruzamos céus e mares, passamos por terras que o olho não alcança. Sou uma Ieenitokiete Radda — uma Ave Viajante do Mundo, sou conhecida por Andorinha-do-mar-ártica.
Maracanã bateu as asas de alegria.
— Ah! Agora entendo tua beleza. Tua cauda bifurcada, tuas penas cinzentas e brancas, o barrete preto com listras brancas, o bico vermelho-alaranjado que brilha como o sol na aurora... És mesmo uma maravilha do mundo!
Ieende-crú-uná enrubesceu de timidez.
— Assim me deixas sem palavras, Maracanã.
— Mas fui sincero — respondeu o Maracanã com o tilintar do peito —, pois toda ave migratória carrega a força das rotas e a sabedoria dos ventos.
A Andorinha sacudiu as asas, sorriu com o bico e disse:
— Agora preciso partir. O mundo me espera do outro lado do oceano.
— Vai em paz, Ave do Mundo. E que sempre haja alimento e descanso em tua jornada.
E assim, Ieende-crú-uná alçou voo novamente, cruzando os ventos de norte a sul, levando nas penas o segredo da resistência e no peito o espírito livre das Aves Viajantes.
Moral da fábula:
A liberdade das aves migratórias ensina que todo viajante precisa de alimento, descanso e respeito para seguir sua jornada no grande ciclo da vida.
03. AVES MIGRATÓRIAS, AS DESCOBRIDORAS DE OCEANOS E CONTINENTES
Em tempos antigos, quando os mares ainda não tinham nomes e os continentes eram apenas sonhos escondidos sob a névoa do mundo, reuniu-se no alto de uma montanha o Conselho das Aves.
O vento sussurrava:
— Quem revelará os caminhos do céu e do mar?
Então se ergueu o Albatroz, com suas asas imensas como velas de navio:
— Eu navegarei sobre os oceanos, cortando ventos e tormentas. Serei o primeiro guia dos marinheiros, o que mostra que há terra além do horizonte.
O Petrél, seu irmão menor, completou:
— Onde o mar se enfurece, lá estarei, levando coragem aos navegadores que temem a tempestade.
Das nuvens desceu a Fragata, altiva e veloz:
— Eu voarei sem descansar, roubando dos ventos o segredo da resistência. Onde houver peixe, lá estarei, e ensinarei aos homens que o mar é abundante.
O Pinguim, que não podia voar, adiantou-se com humildade:
— Ainda que minhas asas não toquem o ar, serei marinheiro das águas. Mostrarei que até os que não voam podem atravessar oceanos, se souberem nadar com destreza.
Então, do extremo Norte, chegou a Andorinha-do-Ártico, pequena mas destemida:
— Eu não terei limites. Do gelo do Polo ao calor do Sul, cruzarei o planeta inteiro. Assim ensinarei que o mundo é redondo e sem fronteiras para quem tem coragem.
O Maçarico-de-bico-fino disse com voz suave:
— Eu seguirei as ondas e as marés, tocando cada praia, cada costa, lembrando que o mundo é feito de passagens e encontros.
Nesse instante brilhou no horizonte o Íbis-brilhante, trazendo reflexos de fogo nas penas:
— Eu caminharei por seis continentes. Onde houver rio, planície ou floresta, lá estarei. Minha missão é unir os povos da terra sob a mesma beleza.
A Garça-branca, serena e elegante, estendeu o pescoço:
— Eu mostrarei que a vida pode florescer em quase todos os cantos, do pântano ao campo, lembrando que a esperança habita em cada nascente.
Por fim, a imponente Andorinha-do-mar-cáspia declarou:
— Eu serei a maior entre as andorinhas-do-mar. Do coração da Austrália às margens do Cazaquistão, atravessarei terras e águas, mostrando que nenhum limite pode conter o espírito livre.
O vento silenciou. O Conselho se dispersou, e cada ave seguiu seu destino.
Desde então, homens e mulheres que ousaram navegar, caminhar e descobrir terras distantes sempre tiveram no céu e no mar as Aves Migratórias, guardiãs invisíveis das rotas do mundo.
E assim, os oceanos foram cruzados, os continentes revelados, e os caminhos da Terra se abriram não pelos pés dos homens, mas primeiro pelo bater das asas.
Moral da fábula:
Os verdadeiros descobridores do mundo não foram os que ergueram bandeiras sobre a terra, mas aqueles que ousaram voar além do horizonte, ensinando que a liberdade é a maior das travessias.
04. IEENDE-CRÚ-UNÁ, A ANDORINHA-DO-MAR E AS PALANCAS DO DESERTO
Fábula da Andorinha e as Palancas
Em tempos antigos, quando as aves ainda se reuniam para contar histórias aos ventos, uma andorinha de cauda repartida, chamada Ieende-crú-uná, cruzava os céus do mundo. Era uma ieende itohikiete, ave viajante, conhecida por muitos como a andorinha-do-mar-ártica.
Depois de sobrevoar geleiras, mares e ilhas distantes, Ieende-crú-uná chegou ao litoral africano, onde o sol beija a savana e o vento sussurra em língua ancestral. Ali, entre as árvores douradas e o capim dançante, encontrou duas criaturas imponentes: a Palanca-negra-gigante, chamada Palala, e sua companheira, a Palanca-vermelha, conhecida como Palanca-roana.
— Olá, nobres herbívoras! — saudou a pequena ave com elegância — Qual é a origem do nome que vocês carregam com tanta nobreza?
A Palanca-negra-gigante, erguendo seus chifres em forma de lua crescente, respondeu com sabedoria:
— Nosso nome vem da antiga língua bantu. “Mpalanca” é como chamam o antílope — é o sopro da raiz que habita nosso sangue.
A Palanca-vermelha, de pelagem avermelhada como a terra ao entardecer, curvou-se gentilmente e perguntou:
— E tu, pequena ave das águas e dos ventos, de onde vens?
Ieende-crú-uná respondeu, pousando com leveza sobre uma pedra quente:
— Venho das ilhas geladas e das marés do norte. Sigo os caminhos do céu, cruzando oceanos para contar histórias às aves e aprender com os seres da Terra. E aqui, neste continente tão vasto, vi animais keríá maravilhosos: zebras que dançam em listras, girafas que conversam com as estrelas, gnus velozes como o trovão, e elefantes que guardam a memória dos tempos. Aqui vive o Rei dos Animais, o leão.
— Sim, é verdade — confirmou a Palanca-negra-gigante — Nosso continente é morada de muitos espíritos da natureza.
— E agora, para onde voará, andorinha-dos-mares? — perguntou a Palanca-roana.
— Vou seguir meu destino — respondeu Ieende-crú-uná — atravessarei o oceano para visitar o Brasil, a terra das florestas verdejantes e dos povos sábios como os Kariri-Xocó.
Com um bater de asas, a pequena viajante alçou voo, deixando para trás o calor da savana e levando no coração a memória das palancas e das terras africanas.
Desde então, contam os antigos que os animais do mundo aprenderam com aquele encontro que mesmo sendo diferentes, podem compartilhar o mesmo ambiente, respeitando seus limites, suas histórias e suas existências.
Moral da Fábula:
Os caminhos da Terra são longos e diversos, mas quem respeita o outro encontra em cada encontro uma nova morada para a alma.
05. IEENDE-CRÚ-UNÁ E O GROU DE COROA DOURADA
Uma Fábula Sobre a Andorinha e o Grou de Coroa Dourada
Era uma vez uma ave de cauda repartida, chamada Ieende-crú-uná, a Andorinha-do-mar-ártica, que cruzava os céus com leveza e sabedoria. Conhecida como ave viajante, ela era respeitada pelos que habitavam os ventos, pois carregava histórias dos quatro cantos do mundo.
Certo dia, em sua longa jornada, Ieende-crú-uná pousou sobre a savana árida da África. O sol dourava a terra seca, e dali ela avistou uma figura majestosa: era o Grou-coroado-cinzento, com uma coroa de penas douradas a brilhar sob o céu.
— Olá, ave elegante de coroa dourada! Moras nestas terras quentes e secas? — perguntou a andorinha com respeito.
— Sim, nobre viajante dos ares — respondeu o Grou com voz tranquila. — Meu povo vive entre o leste do Congo e Uganda, somos conhecidos também em Angola e por toda a África Austral.
A Andorinha olhou com encanto:
— És uma das aves mais belas que já vi. Teu corpo cinza reluz sob o sol, tuas asas brancas dançam com o vento, e tens penas pretas e marrons como se fosses pintado pela natureza. Teu rosto é claro como nuvem, e essa bolsa vermelha em tua garganta te faz ainda mais singular.
O Grou sorriu e, com generosidade, ofereceu pequenos peixes colhidos de uma das poucas águas que restavam na savana.
— Obrigado, Ieende-crú-uná. Tua visita alegra este solo seco. Aqui, mesmo com tão pouca água, aprendemos a viver com o que temos e a dividir com os que passam.
A Andorinha agradeceu com reverência, e antes de partir disse:
— Levo contigo uma lição: mesmo em terras áridas, há beleza, gentileza e partilha.
E alçou voo, sumindo no horizonte, levando consigo mais uma história a ser contada.
Moral da fábula: Quem viaja pelo mundo aprende que a verdadeira riqueza está em saber acolher e partilhar, mesmo com pouco.
06. IEENDE-CRÚ-UNÁ BAE ANANAÍ, A ANDORINHA-DO-MAR E O REI DOS PATOS
Uma Fábula da Andorinha e o Rei dos Patos
Em um tempo em que os ventos ainda sussurravam os segredos da criação, a andorinha-do-mar-ártica, Ieende-crú-uná, cruzava os céus do mundo com sua cauda repartida e alma viajante. De Norte a Sul, de Leste a Oeste, ela seguia os caminhos dos ventos, levando e colhendo histórias.
Numa de suas paradas, sobrevoou as margens serenas do lago Dzurió, banhado pelas águas ancestrais do rio Opará. Ali, viu um ser imponente e tranquilo: era Ananaí, o Pato-real, de penas verdes como a mata molhada e corpo cinza como as nuvens de chuva. Seu bico alaranjado trazia marcas negras como runas antigas, e suas asas refletiam a luz como espelhos encantados.
A Andorinha pousou com leveza e perguntou:
— Ó nobre Ananaí, que habita este lago sagrado, até onde se estende o seu reinado?
Ananaí respondeu com voz calma, como se o próprio lago falasse:
— Meu reino voa comigo pelas terras frias e mornas da América do Norte, da Europa, da Ásia. Também migro por planícies da América Central e sobrevoo as ilhas das Caraíbas. Fui levado aos quatro cantos do mundo — do sul do Brasil às lonjuras da Austrália e Nova Zelândia. Sou ancestral de muitos: marrecos, paturis, patos-do-mato. Minha família é vasta, e minha história pulsa na memória das águas.
Ieende-crú-uná, impressionada, curvou-se em reverência:
— Que grande sabedoria carrega tuas asas, ó Rei dos Patos! Levo comigo tua história e a espalharei pelos ares. Que outros seres conheçam teu valor e tua jornada.
Então, com um leve impulso, a Andorinha partiu, subindo aos céus do poente.
E assim ficou lembrado entre as nuvens, nos rios e nos ninhos:
Que na grande teia da vida Ba, cada ser — ave, bicho, planta ou gente — possui seu papel sagrado na terra Radda.
07. BABUÍNO E O FALCÃO-PEREGRINO
A Fábula do Falcão e o Babuíno
Lá no alto, voando bem rápido, o Falcão Veloz viajava pelo mundo. Um dia, ele chegou na África e sobrevoou a savana.
De repente, viu um grupo de macacos diferentes: eram babuínos, fortes e com caras engraçadas.
— Hmm... que bichos interessantes... — pensou o Falcão, dando uma volta no céu.
O líder dos babuínos, que era esperto e atento, logo viu a sombra do Falcão passando.
— Ei, passarão! O que você quer com a gente? — gritou o babuíno.
— Calma, amigo! — respondeu o Falcão, pousando numa pedra. — Eu só estava olhando como vocês são rápidos e unidos.
O babuíno riu:
— Rápidos, fortes e espertos! Quando o perigo vem, a gente avisa todo mundo com um grito especial. E, juntos, a gente espanta qualquer bicho metido a valentão!
— Uau! — disse o Falcão. — No céu, eu também tenho minha defesa: voo rápido e olhos que enxergam de longe.
— Então estamos quites, respondeu o babuíno. — Cada um com seu jeito de se proteger.
O Falcão abriu as asas e se despediu:
— Tchau, amigo! Respeito é o melhor escudo que existe.
E lá se foi ele, cortando o vento.
O babuíno voltou para o grupo, feliz por ter feito um amigo que sabia respeitar.
Moral: Quem respeita a força do outro, vive tranquilo e sem briga.
08. A TARTARUGA E O FALCÃO VIAJANTE
A Fábula da Tartaruga Gigante e o Falcão
Num arquipélago banhado pelo sol do Pacífico, próximo à costa do Equador, vivia Galápago, a tartaruga gigante cuja carapaça parecia uma montanha moldada pelo tempo.
Certa manhã, descendo das alturas do céu, pousou Ieesitóhikie — o Falcão Peregrino, conhecido entre as aves como “o caçador do céu”. Ele vinha de muito longe, trazendo nos olhos o brilho das tempestades e a pressa dos ventos.
— Anciã de corpo de pedra — disse o Falcão, admirado — qual é o teu nome?
— Chamam-me Galápago — respondeu a tartaruga, com voz lenta como a maré. — Dizem que estas ilhas têm a forma da minha carapaça. Vivo há mais tempo do que muitas ondas que beijaram esta costa.
O Falcão, impressionado, declarou:
— Então serás a Tartaruga-gigante-das-Galápagos. Eu, que sou o mais veloz dos céus, nunca conheci alguém tão duradouro.
— É um belo nome — disse Galápago. — Pode me chamar assim.
O Falcão, curioso, perguntou:
— Dize-me, amiga, qual é o segredo para viver tanto?
A tartaruga sorriu devagar, como quem já ouviu essa pergunta muitas vezes:
— Enquanto tu cortas o vento com pressa, eu caminho no compasso do mar. Não me apresso a chegar, e assim o tempo também caminha devagar para mim.
O Falcão, pousando ao seu lado, refletiu:
— Hoje aprendi que a velocidade da vida não se mede pelo correr, mas pelo saber viver.
E, desde aquele dia, cada vez que o Falcão cruzava o céu sobre as ilhas, diminuía o voo só para lembrar da amiga que lhe ensinou a arte da calma.
Moral: Quem corre muito, vê menos. Quem anda com calma, vê mais e vive melhor.
09. O BACALHAU DA QUARESMA E A TILÁPIA DA GALILÉIA
A Fábula do Bacalhau e a Tilápia
No imenso mar do imaginário cristão, um peixe viajante, o Bacalhau-do-Atlântico, nadava orgulhoso de sua missão: alimentar os povos durante a Quaresma e a Semana Santa.
De longe, vindo das águas cálidas do Oriente, surgia a Tilápia da Galileia, humilde e serena, lembrando sempre os milagres de Jesus à beira do lago.
Os dois se encontraram nas correntes do espírito e, curiosos, começaram a conversar.
O Bacalhau disse:
“Sou eu quem sustento as mesas dos cristãos da Europa e do Brasil, sou lembrado no tempo do jejum e da penitência. Meu sal conserva a fé dos povos.”
A Tilápia respondeu:
“E eu fui testemunha dos passos do Mestre na Galileia. Dizem que até uma moeda já levei em minha boca para que Pedro pagasse o tributo. Não sou peixe de fartura, mas de milagre e esperança.”
O Bacalhau, admirado, reconheceu a nobreza da Tilápia.
A Tilápia, por sua vez, respeitou a importância do Bacalhau, que viajou além de mares para alimentar multidões.
Por um instante, surgiu a dúvida entre eles:
O Bacalhau pensou: “Sem mim, muitos não teriam o alimento da fé durante a Semana Santa.”
A Tilápia pensou: “Sem mim, como lembrariam os cristãos das origens simples do Evangelho?”
Ambos queriam provar quem tinha maior valor.
Então, o mar que os unia falou como um eco da eternidade:
“Nem só de tradição vive a fé, nem só de origem se faz o caminho. O Bacalhau guarda a lembrança da disciplina e da partilha; a Tilápia guarda a lembrança dos milagres e da presença do Mestre.
Ambos são sinais da mesma mesa, a mesa da comunhão.”
A fé é como o mar: acolhe muitos peixes, de diferentes águas, mas todos se encontram no mesmo horizonte.
Quem valoriza tanto a tradição quanto a origem compreende que a verdadeira nutrição vem do amor e da partilha.
👉 Assim a fábula mostra o encontro entre a tradição europeia (Bacalhau) e a origem bíblica (Tilápia), revelando que não há hierarquia, mas complementaridade.
10. A SARDINHA E A CAVALA, SABORES DO MAR E DA VIDA
A Fábula da Sardinha e a Cavala
Na imensidão do oceano, viviam duas companheiras muito diferentes: a Sardinha, pequena e sempre em cardume, e a Cavala, veloz e majestosa, senhora das águas profundas.
A Sardinha era humilde e sempre dizia:
— Eu alimento o povo com fartura, mas poucos me veem como especial. Estou nas mesas simples, na panela de barro, no fogo do pescador.
A Cavala respondia com orgulho:
— Eu sou procurada pelos cozinheiros mais renomados. Meu sabor é nobre e raro. Quando chego às mesas, sou celebrada como iguaria.
Certo dia, uma tempestade forte espalhou os cardumes e assustou os grandes peixes. Os pescadores, aflitos, lançaram suas redes. Quem primeiro se deixou encontrar foi a Sardinha, em grande quantidade.
Graças a ela, os pescadores voltaram para casa com comida suficiente para toda a comunidade.
Mais tarde, quando o mar acalmou, surgiu a Cavala, reluzente e vigorosa. Sua carne firme serviu ao banquete da festa de São Pedro, trazendo alegria e sabor à celebração.
Na beira da praia, entre cantos e danças, Sardinha e Cavala se reencontraram. A pequena disse à grande:
— Vês, irmã? Eu alimento o dia-a-dia, tu alegras a festa. Juntas damos sentido à mesa do povo.
E a Cavala respondeu, sorrindo:
— Nem sempre o valor está no tamanho, mas no que cada um oferece ao coração humano.
Desde então, contam os pescadores que Sardinha e Cavala são irmãs do mar: uma simboliza a partilha humilde e a outra a fartura celebrada, e juntas guardam a memória do povo que vive em comunhão com o oceano.
🌿 Moral da fábula:
Assim como no mar, na vida há quem alimente pela simplicidade e quem celebre pela nobreza. Ambos são necessários, pois a cultura e a tradição nascem da união de todos os sabores.
Autor das Fábulas: Nhenety Kariri-Xocó
📘 APÊNDICES
Apêndice A — Sobre o Universo Simbólico das Fábulas Kariri-Xocó
As fábulas reunidas neste volume nascem da escuta profunda dos seres da mata, do rio e do mar. Cada animal carrega um ensinamento — seja de convivência, respeito, humildade, coragem ou equilíbrio. Este apêndice reforça que essas histórias não são simples narrativas, mas pontes entre mundos: o mundo visível dos homens e o mundo sagrado dos espíritos ancestrais.
Apêndice B — A Tradição Oral como Raiz do Povo
O povo Kariri-Xocó mantém viva sua tradição ao narrar histórias ao pé da fogueira, nos encontros comunitários e nas caminhadas pelos territórios ancestrais. Este apêndice explica que as fábulas cumprem o papel de proteger a memória, transmitir valores e formar novas gerações com sabedoria e identidade.
Apêndice C — As Relações Entre Natureza, Espírito e Aprendizado
Aqui se destaca a visão integral do mundo: nada existe isolado. Os animais que protagonizam estas histórias representam forças da natureza que dialogam com o ser humano, recordando que toda vida tem valor e que cada gesto deixa um rastro no grande caminho do mundo.
📘 GLOSSÁRIO INDÍGENA
Aindemodzu – O mar, oceano
Ananaí – O Rei dos Patos
Ancestrais / Espíritos – Seres de luz e conhecimento que habitam as dimensões sagradas, presentes na mata, no rio e nos caminhos invisíveis.
Ieende-crú-uná – A Andorinha-do-Mar ou Andorinha-do-mar-ártica, as aves de cauda repartida.
Ieende-idabá – Os "pássaros que chegam a um lugar", as arribaçãs.
Ieenitokiete – Aves Viajantes
Ieende – Aves
Ieende-sitó – O gavião, a ave caçadora.
Ieende-wõ-kempé-bü – As aves maçaricos, os "pássaros-perna-fina-corredores".
Itohikiete – Viajantes
Kariri-Xocó – Povo indígena do Baixo São Francisco, descendente de troncos ancestrais, com identidade cultural marcada pela espiritualidade, luta e memória profunda.
Maracanã – O papagaio, a ave verde.
Mpalanca – O antílope africano, conhecido como Palanca-negra-gigante e a Palanca-vermelha.
Mawã – Força vital, energia ancestral que flui no corpo, na terra e no espírito.
Radda – O mundo, a Terra.
Pajé / Rezador – Guardião da palavra, da cura e da relação com os mundos espirituais.
Toré – Ritual sagrado de dança, canto e espiritualidade que conecta o povo ao mundo dos antepassados.
Urucum – Planta sagrada usada como proteção, pintura corporal e símbolo de identidade.
WorobüYé – Palavra que remete à essência das histórias que despertam, ensinam e guiam, ligada à força espiritual que vive na narração.
📘 INFORMAÇÕES ADICIONAIS
Este livro reúne fábulas de autoria de Nhenety Kariri-Xocó, nascidas de experiências vividas, sonhos revelados e diálogos com a ancestralidade. Muitas dessas histórias já foram compartilhadas no blog kxnhenety.blogspot.com, espaço digital que guarda parte de sua caminhada como contador de histórias.
As imagens que acompanham as fábulas foram escolhidas ou criadas para representar, de forma simbólica, cada personagem e cada lição. O objetivo é que o leitor mergulhe não apenas no texto, mas também na atmosfera visual que evoca o universo Kariri-Xocó.
O livro segue a tradição dos volumes anteriores, mantendo a essência cultural, espiritual e poética que caracteriza a obra do autor.
📘 DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR
Nhenety Kariri-Xocó
Indígena do povo Kariri-Xocó, natural de Porto Real do Colégio (AL), é contador de histórias oral e escrita, guardião de memórias, pesquisador de tradições ancestrais e caminhante entre mundos. Dedica sua vida a preservar, por meio da palavra, a identidade, os ensinamentos e a grandeza espiritual de seu povo.
Ao longo dos anos, tem publicado contos, fábulas, cordéis e textos culturais que unem memória, espiritualidade e visão indígena. Seu trabalho se tornou referência para aqueles que buscam compreender a força da tradição oral, a beleza da resistência indígena e o valor da narrativa como caminho de cura e conhecimento.
É também autor de obras que investigam cultura, história, espiritualidade e arte, contribuindo para fortalecer a presença indígena no campo literário e acadêmico.
📘 ORELHA DO LIVRO
WOROBÜYÉ – FÁBULAS KARIRI-XOCÓ é mais do que um livro: é um círculo de histórias onde o mar, o rio, a mata e o espírito se encontram para ensinar, lembrar e despertar.
Nhenety Kariri-Xocó oferece ao leitor um conjunto precioso de fábulas que unem simplicidade e profundidade, tradição e poesia, vida cotidiana e sabedoria ancestral. Cada narrativa é um fragmento de mundo, carregado de força simbólica e sensibilidade indígena.
Este livro é um convite à escuta — escuta da natureza, dos animais, dos espíritos e do próprio coração. Quem percorre essas páginas encontra caminhos de humildade, coragem, partilha e comunhão com o sagrado.
Uma obra que honra o povo Kariri-Xocó, afirma sua presença literária e mantém viva a chama das histórias que atravessam gerações.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó













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