⭐ FALSA FOLHA DE ROSTO
WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ
PEQUENOS GUARDADORES DA MATA
Contos – Volume 15 – Coletânea
Nhenety Kariri-Xocó
⭐ VERSO DA FALSA FOLHA DE ROSTO
Obra de autoria indígena Kariri-Xocó.
Todos os direitos reservados ao autor.
Proibida a reprodução sem autorização prévia.
Blog oficial: kxnhenety.blogspot.com
⭐ FOLHA DE ROSTO (Frontispício)
WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ
PEQUENOS GUARDADORES DA MATA
Contos – Volume 15 – Coletânea
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
2025
⭐ FICHA CATALOGÁFICA / FICHA TÉCNICA
Modelo padrão. Quando você publicar, o bibliotecário poderá ajustar o código CDU/CIP.
Kariri-Xocó, Nhenety.
Woroy História, Kariri-Xocó, Pequenos Guardadores da Mata: contos – vol. 15.
/ Nhenety Kariri-Xocó. – 1. ed. – 2025.
128 p. (aprox.).
Inclui apêndices, glossário e notas culturais.
Literatura indígena brasileira.
Contos tradicionais.
Cosmologia Kariri-Xocó.
Cultura ancestral indígena.
⭐ DEDICATÓRIA
Dedico este livro aos Espíritos Guardiões da Mata,
aos que vieram antes, que caminham comigo
e aos que virão, para que nunca se apague
a fogueira viva da Palavra Ancestral.
A todos os povos originários:
Que este livro seja ponte, raiz e canto.
⭐ AGRADECIMENTOS
Agradeço à Mãe Terra, ao Velho Chico, às matas vivas,
e a cada ser — pequeno ou grande — que ensinou lições
de força, equilíbrio e sobrevivência.
Agradeço ao meu povo Kariri-Xocó,
aos antepassados que guiaram cada palavra,
e aos jovens guardadores da oralidade,
que continuarão a trilha sagrada.
E agradeço aos que leem estas histórias
com respeito e coração aberto.
⭐ EPÍGRAFE
"A natureza fala para quem sabe ouvir.
E a memória ancestral caminha com quem sabe lembrar."
— Provérbio Kariri-Xocó
⭐ SUMÁRIO (Índice)
Prefácio
Apresentação
Introdução
CONTOS – PEQUENOS GUARDADORES DA MATA:
1. Araci, A Cigarra Anunciadora;
2. Crowerú, A Festa das Borboletas nas Flores;
3. Tanajura, A Rainha das Formigas;
4. Arapuá, Abelha de Colmeia Redonda;
5. Pimocléclé, A Formiga Oncinha;
6. Ieendê Naté, O Pássaro Construtor;
7. Wirím e o Cupim da Terra;
8. Piraboia, O Peixe Cobra;
9. Tõbozu Buneá, O tatú de todos;
10. Içamikaraí, As Formigas Comem Como Brancos.
Apêndices
Glossário Indígena
Dados Biográficos do Autor
Orelha do Livro
Capa e Contracapa
⭐ PREFÁCIO
Os contos reunidos neste volume revelam um mundo onde o visível e o invisível caminham juntos. As histórias aqui apresentadas são sementes que brotam do solo ancestral do povo Kariri-Xocó, carregando a essência dos ensinamentos que atravessaram gerações pela força da oralidade.
Ao mesmo tempo em que narram a vida dos seres pequenos — borboletas, abelhas, cupins, cigarras, formigas —, estas narrativas traduzem a grandeza espiritual do mundo indígena. Os “Pequenos Guardadores da Mata” são mais do que animais; são professores, conselheiros e espelhos do comportamento humano.
Este livro é um gesto de resistência cultural e um monumento ao poder da palavra viva.
⭐ APRESENTAÇÃO
O autor indígena Nhenety Kariri-Xocó apresenta nesta coletânea um conjunto de narrativas que preservam a cosmovisão do seu povo. O leitor encontrará sabedoria antiga, profunda compreensão da natureza e ensinamentos sobre respeito, equilíbrio e comunhão com o mundo vivo.
Cada conto revela um fragmento do universo Kariri-Xocó, onde o tempo não é linear, mas circular; onde cada vida — do maior animal ao menor inseto — é parte essencial da teia da existência.
Este volume é um convite: caminhar devagar, ouvir a mata e aprender com os guardiões da vida.
⭐ INTRODUÇÃO
Os povos originários do Brasil sempre aprenderam observando. A floresta é livro, mestra e templo. Animais, plantas, ciclos e ventos ensinam mais do que qualquer escola pode ensinar. Assim surgiram estes contos: da convivência íntima com a natureza e da sabedoria transmitida pelos anciãos, que mantêm viva a chama da tradição oral.
Neste volume, cada conto é uma janela para o passado, um ensinamento para o presente e uma proteção para o futuro. São histórias que fortalecem a identidade indígena, celebram a ancestralidade e revelam o papel espiritual de cada ser vivo.
Este livro foi criado para que as futuras gerações continuem ouvindo a voz da mata. Porque enquanto houver quem conte, haverá quem se lembre.
⭐ CONTOS – PEQUENOS GUARDADORES DA MATA:
01. ARACI, A CIGARRA ANUNCIADORA
No coração da Caatinga, em tempos de sol ardente e céu sem nuvens, tudo parecia adormecer. A vegetação se vestia de marrom, os poços se esvaziavam como panelas esquecidas no fogo, e os pássaros batiam asas para outras terras em busca de alento. Era o tempo da estiagem, o tempo em que o povo esperava em silêncio os sinais da mudança.
Mas havia um som que rompia a secura do vento: o canto firme e vibrante de Araci, a Cigarra. Seu nome, herdado do tupi antigo — Ciara, "Mãe do Dia" — ecoava pelas matas como se o próprio tempo tivesse voz. Para os mais desatentos, era apenas um som de verão. Mas para os antigos, para os que escutam com o coração, seu canto era anúncio, era aviso, era profecia.
"Estar... terminando... o verão...
Estar... chegando... o inverno...
Bis... Bis... Bis..." — entoava ela, com paciência sagrada.
E então, como se obedecessem à sua melodia ancestral, as nuvens se formavam no céu. Em poucas horas, ou talvez dias, as primeiras gotas caíam sobre a terra quente. A chuva trazia o verde de volta, despertava sementes adormecidas, enchia os olhos do povo de esperança. Os riachos corriam para o Velho Chico, as lagoas transbordavam de vida, e a alegria dançava nos rostos das crianças.
Quem vem de longe talvez não entenda. Talvez não saiba que a Mãe Terra fala. Mas os povos da floresta, os guardiões do saber antigo, escutam e aprendem. Sabem que a natureza tem seus termômetros — os ventos, os pássaros, os roedores, os ciclos. E que também tem seus mensageiros: o sapo, o joão-de-barro, e, acima de todos, Araci, a cigarra anunciadora.
Desde tempos imemoriais, os povos indígenas convivem com esses seres com respeito e aprendizado. Porque a floresta ensina, a chuva ensina, o canto da cigarra ensina. E quem escuta com sabedoria, aprende a viver em harmonia com o mundo.
02. CROWERÚ, A FESTA DAS BORBOLETAS NAS FLORES
Há muito tempo, quando o mundo era ainda jovem e os seres viviam em perfeita harmonia, a natureza tinha seus próprios sinais para anunciar os ciclos da vida. Cada ser, pequeno ou grande, tinha sua função sagrada no equilíbrio do mundo.
No coração da grande floresta, os sapos coaxavam com força nas noites úmidas, avisando às raízes que a chuva estava chegando. As árvores, em resposta, estendiam seus galhos para receber a água que alimentaria a vida. As águas dos rios tornavam-se mais cristalinas, e os peixes subiam as correntezas em busca dos ninhos de pedras.
Mas havia um momento especial, esperado por todos: o Crowerú, a festa das borboletas nas flores.
Quando os dias se tornavam mais quentes e o aroma das flores começava a perfumar o ar, as borboletas despertavam de seu repouso silencioso. Saíam das cascas que haviam cuidadosamente tecido, revelando asas de cores vibrantes — vermelhas como o fogo, azuis como o céu da manhã, amarelas como o ouro do sol.
Assim que a primeira flor desabrochava, surgia a mais antiga e sábia das borboletas, chamada Yapó, cujas asas brilhavam com todas as cores do arco-íris. Ela fazia um voo em círculos sobre a clareira, anunciando a todos os seres que o Crowerú havia começado.
As flores, em respeito e alegria, abriam-se em coroas exuberantes. Os beija-flores vinham em revoada, acompanhando as borboletas no balé da polinização. Os veados paravam suas corridas e observavam em silêncio, enquanto os macacos, nas copas das árvores, cantavam melodias alegres para saudar o espetáculo.
Durante sete dias e sete noites, as borboletas dançavam de flor em flor, levando vida e fertilidade por onde passavam. A floresta inteira se vestia de festa: folhas mais verdes, frutos mais doces, e o ar impregnado de esperança.
Os anciãos da aldeia, reunidos em torno do fogo, contavam às crianças que o Crowerú era o sinal de que a natureza estava feliz, e que o equilíbrio do mundo havia sido renovado. Eles ensinavam que, assim como as borboletas tinham sua função, cada ser humano também deveria cumprir o seu papel com respeito, harmonia e sabedoria.
No final do sétimo dia, Yapó fazia seu último voo sobre a floresta, pousando sobre a flor mais alta do ipê-amarelo. Lá, ela batia as asas três vezes, espalhando um pó dourado que, ao tocar o solo, fazia germinar novas sementes para o próximo ciclo da vida.
E assim, a festa das borboletas se encerrava, deixando um legado de cores, aromas e esperança.
Até hoje, quando as borboletas surgem em bandos, os mais velhos sussurram com reverência:
— O Crowerú chegou... é hora de celebrar a dança da vida.
Agora o conto do Crowerú em forma de Provérbios:
"E os anciãos sempre encerravam a história do Crowerú com um ensinamento antigo, passado de geração em geração:
"Assim como a borboleta toca a flor sem feri-la, devemos caminhar sobre a terra com leveza e respeito, pois somos parte dela e ela é parte de nós."
E assim, cada criança que ouvia o conto entendia que o verdadeiro sentido da festa não era apenas a beleza das cores ou o perfume das flores, mas a lembrança de que tudo na natureza vive em comunhão.
E que, como as borboletas, também devemos cumprir nossa função com alegria, humildade e sabedoria."
03. TANAJURA - A RAINHA DAS FORMIGAS
Nos vastos campos vermelhos da terra indígena Kariri-Xocó, em Porto Real do Colégio, Alagoas, erguiam-se verdadeiras torres de barro. Aos olhos atentos de quem caminha entre as roças, pareciam castelos antigos — fortalezas vivas, pulsantes, construídas não por mãos humanas, mas por patas incansáveis de formigas.
Ali, reinava a Tanajura, rainha absoluta das saúvas.
Sua história começara em outro reino. Foi um ovo cuidadosamente protegido pela Rainha Mãe, um pequeno milagre no interior da terra quente. Daquele ovo nasceu uma formiguinha fêmea, que logo se tornaria cortadeira, depois lixadeira, até passar por todos os estágios da vida formigueira. E quando chegou seu tempo, cresceu asas: era agora uma içá alada — a Tanajura.
Era abril, e a chuva anunciava nova estação. No entardecer úmido, ela voou entre os ventos da aldeia, unindo-se aos machos num balé antigo e misterioso. Após o voo nupcial, caiu no chão, arrancou as próprias asas e escolheu o local onde iniciaria um novo império subterrâneo. Ali, começou sua jornada solitária de três anos para formar o formigueiro: túneis, soldados, enfermeiras, cortadeiras — todos filhos dela, todos súditos do seu reino fértil.
Enquanto o tempo passava, as formigas escavavam a terra, construíam galerias, cortavam folhas, adubavam o solo. Sem que muitos percebessem, aquelas pequenas criaturas deixavam a terra mais fértil, ajudavam a floresta a crescer. Eram jardineiras do invisível, operárias do equilíbrio.
No passado, a chegada das tanajuras era festa para o povo Kariri-Xocó. Ao primeiro sinal das chuvas, quando as içás voavam pela aldeia, as crianças corriam com galhos nas mãos, cantando:
"Cai, cai, Tanajura,
Na panela da gordura!"
As mães sorriam e esperavam com as panelas quentes. As Tanajuras viravam farofa: alimento sagrado do inverno.
Hoje, muitos já não conhecem esse costume. Outros ignoram o papel das saúvas no ciclo da vida e tentam destruí-las. Mas quem somos nós para julgar essas pequenas guerreiras da terra? As formigas fazem sua parte — constroem, nutrem, equilibram. E nós, humanos, o que fazemos pelo planeta Terra?
04. ARAPUÁ, ABELHA DE COLMEIA REDONDA
Na clareira sagrada da floresta viva, quando o sol se deita por entre as folhas, é possível ouvir o zumbido de uma pequena guardiã do equilíbrio: a Arapuá.
Ela não possui ferrão, mas é valente. Voa com firmeza entre as flores, carregando o pólen que dá vida aos frutos que alimentam os bichos, os pássaros e até mesmo nós, os filhos da terra.
Certa vez, um jovem curioso da aldeia resolveu seguir o zumbido da Arapuá. Já ouvira dos mais velhos que essa abelha guardava o segredo do mel mais espesso e nutritivo da mata. Seu nome era travoso, difícil de dizer com a boca, mas fácil de entender com o espírito. Ele se aproximou de sua colmeia — uma construção redonda, pendurada como um tambor ancestral nos galhos altos de um angico. Ali morava a doçura escondida da floresta.
O jovem estendeu a mão para colher o mel, mas não esperava a reação das pequenas guerreiras. Elas saíram em bando, rodopiando seus corpos negros como fumaça de ritual. Não ferroavam — não era da sua natureza —, mas se enrolavam nos cabelos, grudavam nas orelhas, entravam nos ouvidos. O menino caiu no chão, assustado, tentando se livrar delas.
Um velho ancião que observava de longe se aproximou com calma. Com um ramo de folhas cheirosas, espantou as Arapuás e ajudou o menino a se levantar.
— Viste como não é fácil colher o que é valioso? — disse ele. — O mel da Arapuá não se tira com pressa nem com descuido. É preciso proteger os ouvidos, ter respeito e atenção. É assim com tudo na floresta.
Ele então lhe contou que a cera da Arapuá é usada há gerações para dar liga ao cordão de fios de algodão no artesanato da aldeia. O mel, embora espesso e pegajoso, nutre e fortalece. Cada detalhe daquele inseto pequeno e barulhento tem uma lição, como todos os animais e plantas da mata. Mas essas lições não se aprendem em um só dia. São ensinadas ao redor da fogueira, no brilho da lua, nas palavras dos mais velhos.
— Não sejamos apenas ouvintes das histórias — concluiu o ancião. — Devemos viver e continuar a contá-las. Qual será a tua história na tradição?
O jovem guardou o aprendizado no peito, como quem guarda mel no pote de barro. Sabia agora que toda vida, mesmo a menorzinha, tem valor e sabedoria. E que a floresta fala com quem sabe ouvir.
Assim continua a educação milenar, passada de geração em geração, como o zumbido da Arapuá, que ainda hoje ecoa por entre as árvores.
05. PIMOCLÉCLÉ, A FORMIGA ONCINHA
Há muito tempo, quando o Vale do São Francisco ainda era coberto por densas florestas, a vida florescia em abundância. A Avó Natureza e a Mãe Terra ofereciam generosamente caça, pesca e abrigo aos povos que ali viviam. Era o tempo dos antigos, em que os Kariri-Xocó viviam em harmonia com o mundo ao redor.
Entre as muitas maravilhas desse tempo, havia uma pequena criatura cercada de mistério e respeito: Pimocléclé, a Formiga Oncinha. Diziam os mais velhos que, quando os caçadores saíam em busca de alimento e nada encontravam, bastava invocar a formiguinha com um cântico de súplica:
“Oncinha... Oncinha... Der a todos nós uma carninha...”
E como por encanto, Pimocléclé aparecia, com seu ferrão tão pequeno quanto poderoso. Ela seguia silenciosa pela mata até encontrar um veado. Com um só ferroar, o animal tombava. Então os caçadores seguiam os passos da formiga e, ao encontrarem a caça abatida, agradeciam à floresta. A carne era repartida igualmente entre todos da aldeia. Era um tempo de partilha e respeito.
Mas os tempos mudaram. Os senhores de engenho chegaram com suas serras e correntes. As matas caíram. O canto dos pássaros calou. A fartura virou escassez. O Vale foi tomado por pastagens, e o rio passou a ser chamado Rio dos Currais. O povo Kariri-Xocó passou fome.
Em desespero, recorreram novamente à velha aliada:
“Oncinha... Oncinha... Der a todos nós uma carne para comer com farinha...”
Pimocléclé ainda escutava. Mas, sem as florestas e os animais silvestres, restava-lhe apenas um novo caminho. E assim, começou a ferroar bois, carneiros, cabras e porcos — os animais dos fazendeiros. Um a um caíam, como antes caíam os veados. E os fazendeiros, sem entender o mistério, chamavam os indígenas para aproveitarem a carne.
Aos poucos, a fome deu lugar à esperança. E os próprios donos da terra passaram a ver com outros olhos o valor de manter a floresta viva. Com o tempo, os homens deixaram de destruir, e os animais selvagens voltaram. O ciclo da vida se refez.
E assim, conta-se até hoje no Vale, que quando o homem respeita os caminhos da floresta, os bichos o deixam viver em paz. Mas se esquecer, talvez ainda escute no vento um sussurro antigo:
“Oncinha... Oncinha... Der a todos nós uma carne para comer com farinha...”
06. IEENDÊ NATÉ, O PÁSSARO CONSTRUTOR
Ieendê, o Pássaro Construtor
Conto tradicional inspirado nos saberes do povo Kariri-Xocó
Na vastidão quente e ressequida da Caatinga, onde pulsa o coração da Terra Indígena Kariri-Xocó, em Porto Real do Colégio e São Brás, um pequeno ser alado se tornou mestre entre os povos: Ieendê, o João-de-Barro.
Diziam os anciãos da aldeia que Ieendê era muito mais que um pássaro; era um velho espírito da floresta disfarçado em penas castanhas, com a missão de ensinar. De manhã cedo, enquanto o sol dourava as folhas secas dos juazeiros e mandacarus, Ieendê trabalhava sem descanso. Com seu bico firme e decidido, amassava argila e misturava com fibras vegetais, moldando cada curva de sua casa redonda com a paciência dos sábios.
As crianças da aldeia corriam para vê-lo construir. “Olhem como ele molda a parede com barro e bagaço!”, dizia o velho Kairó, com um sorriso de sabedoria nos olhos. “Foi assim que nossos avôs aprenderam a levantar as paredes das casas de taipa. A natureza sempre foi nossa mestra.”
Mais do que um construtor, Ieendê era também um mensageiro. Quando fazia a portinha de sua casa voltada para o norte, os mais velhos logo diziam: “Vem muita chuva por aí!”. Mas se virada estivesse ao sul, sabiam que o tempo seria de seca, e era preciso preparar os potes e estocar os alimentos.
Ieendê não trabalhava só para si. Segundo a crença da aldeia, muitas vezes o periquito — um pequeno papagaio esperto — tomava conta da casinha depois de pronta. “É a partilha da floresta”, dizia Dona Yara, parteira e conhecedora das ervas. “Cada ser tem seu tempo, seu lugar, sua lição.”
Assim, geração após geração, o povo Kariri-Xocó aprendeu a respeitar cada ser vivo, entendendo que não estão acima, mas dentro do grande círculo da vida. Com os pássaros aprenderam a construir; com os peixes, a nadar e pescar; com as plantas, a curar. Cada ensinamento brotava do silêncio atento diante da natureza viva.
E até hoje, quando o céu se enche de nuvens ou o chão racha sob o sol, alguém olha para uma casinha de barro pendurada num galho e pergunta:
— E então? O que Ieendê está dizendo?
07. WIRÍM, E O CUPIM DA TERRA
Era um tempo em que tudo vivia em harmonia. A floresta era viva, verdejante e sagrada. Os rios corriam límpidos como olhos de divindade, e os animais conversavam entre si com respeito e alegria. O índio vivia livre em sua maloca — grande casa coletiva de palha — onde não havia paredes, apenas o espaço do afeto. Cada família tinha seu canto, seu fogo, sua cama de vara. Os troncos serviam de banco. Tudo era dado pela Mãe Terra: peneiras, abanadores, pilões, arcos, flechas... A floresta era fonte, lar e altar.
Mas então veio o europeu, e com ele, o corte. Cortou-se a mata, feriu-se o chão, e o equilíbrio se partiu. Chegaram os móveis, os guarda-roupas, as camas estrangeiras, os armários de madeira serrada. A aldeia teve que se adaptar.
Wirím, filho da floresta, cresceu nesse novo tempo. Estudou na escola do branco, recebeu diploma, conseguiu emprego. Casou-se com Surinã, bela filha da aldeia. Com esforço, construiu uma casa de tijolos. Queria o melhor para sua família. Colocou dentro de casa móveis de qualidade, comprados na cidade: cama, mesa, guarda-roupa, tudo embelezando o lar.
Mas, com a floresta desmatada, o Cupim da Terra ficou sem lar. Sem raízes e sem troncos, saiu em busca de abrigo. Encontrou a casa de Wirím. Entrou manso, em fila. Devagar, sem alarde, alojou-se nos móveis. Ruiu primeiro o guarda-roupa. Depois, a cama. Em seguida, a mesa. Quando Wirím percebeu, era tarde: tudo o que havia comprado com tanto suor estava destruído.
O que não servia mais, foi jogado fora. A madeira virou pó, o pó virou terra. Tudo voltou ao seu princípio.
E assim Wirím compreendeu: nada se separa da Terra. A natureza precisa estar em equilíbrio, pois dela somos parte, não donos. Os animais, mesmo os pequenos, também são vida. Quando tiramos seu lugar, tiramos também o nosso.
08. PIRABOIA, O PEIXE
Nas margens caudalosas do velho rio São Francisco, vivia um indígena de sabedoria profunda e olhos que brilhavam como as estrelas do sertão. Chamava-se Poitébo — nome de poder entre os Kariri-Xocó — mas na cidade o conheciam como Euclides Ferreira, o pescador afamado.
Era homem de poucas palavras, mas muitos segredos. Diziam que nas noites de lua cheia ele falava com Yara, a Mãe D’água, que lhe concedia proteção e fartura nas redes. Contudo, os mais atentos sabiam: tudo que Poitébo fazia, inclusive as rezas baixas e os cantos de pescaria, era também para manter os curiosos bem afastados.
Certa noite de enchente, Poitébo saiu com sua tarrafa — rede fina e afunilada — e foi pescar no antigo porto das canoas. Jogava a rede com precisão de mestre, colhendo aragu, sarapó, crumatá. O balaio logo estava transbordando em fartura.
Iraminon, um jovem do povo, o acompanhava em silêncio, aprendendo com os olhos.
Foi quando apareceu Cicinho, um branco da cidade, curioso demais para o próprio bem. Aproximou-se sorrateiro, quis ver de perto o que havia no balaio do velho pescador. Estendeu a mão sem pedir licença.
Lá do barco, Poitébo viu. Seus olhos faiscaram. Murmurou palavras que pareciam vento e assobio, e no instante seguinte — milagre ou feitiço — os peixes do balaio se torceram e cresceram, transformando-se em cobras serpenteantes, "piraboias", que sibilaram ferozmente.
Cicinho gritou um grito tão forte que ecoou pelas grotas e baixios. Saiu correndo desengonçado, tropeçando em si mesmo, mais branco que a lua.
Iraminon arregalou os olhos:
— Home, o que foi aquilo, Poitébo?
O velho sorriu, com um canto de sabedoria nos lábios:
— Foi só pra ele aprender, menino. Não se mete a mão no balaio de um índio sem o seu consentimento. Os peixes são protegidos da Yara, e todo pescador deve mais que técnica — deve respeito.
Com um gesto suave, desfez o encantamento. As cobras tornaram-se novamente peixes. A noite voltou a respirar em silêncio, e Poitébo continuou sua pescaria.
Na margem do rio, Iraminon sabia que aquela noite lhe ensinara mais que anos de rede: ensinara o valor do respeito, da convivência e da proteção ao sagrado.
09. TÕBOZU BUNEÁ - O TATU DE TODOS
No início, o Nordeste era floresta viva. A Mata Atlântica e a Caatinga eram casa, alimento, abrigo e espírito dos povos originários. Mas logo vieram os colonizadores, com seus machados e ambições. A mata caiu, e no seu lugar brotaram canaviais e pastos para o gado. Os povos indígenas, arrancados de suas terras, viram a caça desaparecer, as trilhas se apagarem e a cultura ser empurrada para dentro de pequenas ilhas verdes — os últimos pedaços de floresta.
Nessas ilhas de resistência, entre sombras de árvores antigas, o povo Kariri-Xocó ainda sussurrava as histórias da mata, mas também via o mundo mudando. O progresso chegou com seu fôlego de metal. As comidas passaram a vir em latas, sacos e embalagens brilhantes, vindas dos mercados das cidades. O milho já não era o mesmo. O arroz vinha empacotado, o gado inchado de vacinas, as galinhas alimentadas com hormônios. O alimento deixou de ter alma.
Foi então que Kandará, velho caçador da aldeia, sentiu saudade. Uma saudade funda, que não se mata com palavras. Reuniu alguns homens e disse:
— Vamos caçar. Não só por carne, mas pelo gosto da memória.
Entraram na mata pequena, silenciosa como quem guarda um segredo. Andaram por horas até que encontraram o rastro de um tatu. Um buraco no chão, sinal da toca. Começaram a cavar. Mas o tatu era esperto e valente. Cavava mais fundo, e os homens também. Foram dois dias e duas noites no esforço. A terra, quente e seca, se abria como ferida, mas eles não desistiram.
Por fim, o tatu foi capturado. Pequeno, mas carregado de significado. Voltaram para a aldeia exaustos, cobertos de areia e suor. Kayaní, o filho mais novo de Kandará, olhou com espanto e perguntou:
— Meu pai, será que valeu a pena tanto esforço por um só tatu?
Kandará sorriu, seus olhos cheios de tempo:
— Vale sim, meu filho. Faz muito tempo que não sentimos o sabor do mato. Estamos cheios de galinha de granja, carne de boi com gosto de remédio, verduras envenenadas que só adoecem o mundo. Esse tatu é mais que comida. É lembrança. É cura.
Naquele dia, o tatu foi cozido com ervas da terra. A fumaça subiu como reza. A comunidade inteira veio comer. Cada pedaço era mastigado com respeito, como se alimentassem também o espírito. Os mais jovens, que quase não conheciam o gosto da floresta, aprenderam. Aprenderam com a língua, com os olhos e com o coração.
A partir daquele dia, a aldeia decidiu que era hora de renascer. Plantar sementes sem veneno. Cuidar dos bichos sem hormônios. Comer do que a terra dá, e não do que o mercado impõe. Para viver mais e melhor, sem ferir o mundo.
Porque o tatu — Tõbozu Buneá — não era só caça. Era memória viva. Era cultura servida na panela. Era o gosto de ser quem se é.
10. IÇAMIKARAÍ, AS FORMIGAS COMEM COMO BRANCOS
Nas florestas e campos, os animais silvestres sempre viveram do que a natureza generosamente oferecia. Frutos, raízes, folhas, flores… e, às vezes, até outros animais. Assim também era com o meu povo, os Kariri-Xocó. Quinzenalmente, seguimos para a mata do Ouricuri, onde praticamos nossas tradições, renovamos o espírito e alimentamos o corpo com o que a terra nos oferece.
Mas o tempo passou… vieram os colonizadores, derrubaram as florestas para construir cidades, estradas, muros. A mata do Ouricuri foi a única que resistiu em nosso município de Porto Real do Colégio, Alagoas. Agora, seus produtos silvestres já não bastam para alimentar a todos. E assim, compramos arroz, macarrão, biscoitos e outros alimentos artificiais, embalados e empilhados nas prateleiras do comércio.
Certa vez, caminhava sozinho pelas redondezas, perto das casas onde moramos. O chão de terra batida, as folhas secas espalhadas… quando, de repente, parei. Meus olhos não acreditavam: ali, uma trilha apressada de formigas içá carregava grãos de arroz, pedaços de biscoito, fios quebrados de macarrão.
— Olha só… — falei em voz baixa, me agachando para observar melhor.
Nesse momento, meu avô, que vinha logo atrás com sua bengala de pau-ferro, se aproximou e, percebendo meu olhar curioso, perguntou:
— O que vês, meu neto?
— As içás… elas não carregam mais folhas e sementes… Olhe, vô! Agora levam arroz, biscoito… até macarrão!
Ele sorriu, ajeitou o chapéu de palha e disse com a sabedoria de quem guarda muitas histórias:
— Ah… Içamikaraí…
— Içamikaraí? — perguntei, sem entender.
— Sim… — ele respondeu, olhando para o horizonte como quem vê além do tempo. — "As comem como os brancos". Assim diziam nossos ancestrais, quando viam os costumes mudando, a mata diminuindo… As formigas, meu neto, estão apenas seguindo o que restou. Como nós também seguimos…
Fiquei em silêncio, olhando as pequenas içás que sumiam em suas tocas com os alimentos. Uma sensação estranha me invadiu: de admiração, de tristeza… e de respeito.
Meu avô, então, pousou a mão em meu ombro e completou:
— O mundo muda… mas a memória do nosso povo continua. E sempre que vires as içás carregando arroz e biscoito, lembra-te: elas são como espelhos da nossa história.
E assim seguimos, caminhando de volta para casa, com a certeza de que, mesmo diante das mudanças, nossa essência resiste, como a mata do Ouricuri, firme e viva.
Autor dos Contos: Nhenety Kariri-Xocó
⭐ APÊNDICES (rascunho inicial)
– Sobre os animais citados
– Usos culturais nas aldeias
– Observações tradicionais sobre clima e ciclos
– Funções espirituais e simbólicas
⭐ GLOSSÁRIO INDÍGENA
Araci – Mãe do Dia, nome tupi dado à cigarra.
Arapuá – Abelha de Colmeia Redonda.
Crowerú – Festa tradicional das borboletas e flores.
Içamikaraí – As Formigas Comem Como Brancos.
Maloca – Casa coletiva tradicional indígena.
Pimocléclé – Formiga Oncinha.
Ieendê – João-de-barro.
Piraboia – O Peixe Cobra.
Tõbozu – O tatu nome dado pelos Kariri-Xocó.
Tanajura – A Rainha das Formigas cortadeiras conhecidas por içás.
Yara – Mãe D’água, a protetora de rios e lagos.
⭐ DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR
Nhenety Kariri-Xocó
Indígena do povo Kariri-Xocó, de Porto Real do Colégio (AL), contador de histórias orais e escritas, pesquisador da cultura ancestral, escritor de cordéis, contos, narrativas míticas e estudos culturais. É preservador da memória viva e defensor do diálogo entre tradição e contemporaneidade.
⭐ ORELHA DO LIVRO (lado de dentro da capa)
“Woroy História, Kariri-Xocó, Pequenos Guardadores da Mata” é um mergulho no coração espiritual da Caatinga e do Velho Chico. Aqui, os animais falam, a mata respira e a ancestralidade berra viva como tambores antigos.
O autor, Nhenety Kariri-Xocó, reúne contos que nascem do chão sagrado de seu povo, celebrando os ensinamentos dos seres pequenos. São histórias de beleza, magia, respeito e sobrevivência — um legado que reafirma a força da oralidade indígena.
Este livro é um convite a ouvir o que a floresta ainda tem a dizer.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó












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