domingo, 17 de dezembro de 2023

AS CODAS DO KATUANDÍ NO KARIRI


 Como expliquei em algumas publicações anteriores, codas são consoantes que seguem o núcleo da sílaba, se tenho uma sílaba como tók, ó seria o núcleo e -k seria a coda, formando uma rima. As codas tem uma história interessante dentro das línguas do tronco Macro-Jê, como o foco dos estudos Terejê se baseiam em seu parente linguístico mais próximo, o Akuwẽ, usarei ele bastante como base de meu argumento.


 O Akuwẽ herdou seu vocabulário base de seu ancestral direto, o Proto-Akuwẽ, que em si herdou seu vocabulário do Proto-Cerratense, nessa transição é possível perceber uma mudança clara na estrutura das sílabas do PCerr:


PCerr.: *prə̃m 'fome, querer' -> PA.: *mrə̃m ~ *mrə̃ 'fome'

PCerr.: *prẽp 'falar' -> PA.: *mrẽmẽ ~ *mrẽːmẽ 'falar'

PCerr.: *mbyt 'sol' -> PA.: *bətə ~ *bəːdə 'sol, dia'

PCerr.: *mbut 'pescoço' -> PA.: *butu ~ *buːdu 'pescoço'

PCerr.: *mbec 'bom' -> PA.: *pêcê ~ *pê 'bom'


 Destes exemplos é possível perceber que o Akuwẽ herda do Cerratense suas codas de três formas distintas, ou perdendo-a completamente ou estendendo sua forma de -C > -CV, sendo que V (vogal) é uma reduplicação da vogal da sílaba anterior ou preservando-a como no primeiro exemplo. O Terejê parece seguir o primeiro padrão explicando, visto nos últimos dois cognatos preservados no Kariri:


PCerr.: *krat 'base, tronco, suporte'

PA.: *krata ~ *kraːda 'começo, base; velho; perto'

Kipeá: kra-bu 'peito' <- Terejê *kra(ʔ)


PCerr.: *mbut 'pescoço' 

PA.: *butu ~ *buːdu 'pescoço'

Kipeá: ki-bu 'osso da garganta' <- Terejê *bu(ʔ)


Ao que parecer ser, baseado nestes dois resultados, todas as codas passaram por algum processo de redução para Ø, possivelmente através de um estágio intermediário onde todas se fundiram no fonema /ʔ/ que é a oclusiva glotal ou 'travada na garganta'. No entanto existe um exemplo que me pôs dúvidas sobre essa teoria, o Natú tem uma palavra com uma coda na sua segunda sílaba:


Natú: zitók 'estrangeiro, não-indígena'


 No começo quando pensava que o Terejê participava de forma distante das outras línguas Jê, sendo descendente direto do Proto-Macro-Jê e formando um ramo por si só, achava que tók fosse uma preservação da negação *tũK 'não', no entanto agora que sei que esse grupo linguístico participa do ramo Cerrado, não faz sentido manter essa teoria, já que esse ramo não herda a coda de *tũK, a palavra para negação do Cerratense é *tõ ou *kõ.


 Foi aí que lembrei de algo, o Xukurú e o Tarairiú do Norte (Karatiú) que estudei há alguns meses atrás passaram por um processo de redução de suas sílabas, Lapenda nota isso e discute sobre brevemente em sua publicação de 1962 sobre o dialeto Xucurú, eu também havia notado seguindo a menção feita por Lapenda que algumas palavras pareciam ter se reduzido de formas dissilábicas para monossilábicas, uma delas é xekl 'casa':


Karatiú: sekri

Xukurú: sekre, sek, xekh, xekl, xáko


 Note que em um dos exemplos, xáko, a sílaba tônica cai na sílaba xá, cujo parece ser cognata de se e xe das outras variantes, sendo esse o possível motivo de vermos sekri 'casa' no Karatiú, mas nos dialetos e línguas do sul como Xukurú, a dissílaba se reduziu para uma monossílaba (sekri/sekre > sekr/sekl > sekh > sek). O que creio que aconteceu no Natú foi algo semelhante, veja que o Akuwẽ herda as duas negações do Cerrado, tõ como privativo e kõ como negação geral, o Natú assim como o resto do subramo Terejê talvez tenha herdado os dois como negações, mas em certos casos ou talvez em todos os casos, a estrutura comum para negar algo era juntar os dois, assim como em expressões coloquiais do português 'não faça isso não' que possui duas negações, veja a evolução:


ji 'pessoa indígena'

ji-tó 'não-indígena'

ji-tó-kó 'não-indígena'         com reforço da negação

ji-tóko 'não-indígena'           reforço se torna obrigatório

ji-tók 'não-indígena'             a sílaba tônica do Terejê é em sua maioria paroxítona, causando -tóko > -tók


 Também possível ver esse desenvolvimento no Wakonã e Xocó, no Wakonã temos a palavra 'mentiroso'


Wakonã: a-tôr-nê 'mentiroso'

Kipeá: prétôré 'mentiroso'


 O Kipeá, por ser mais antigo, preserva a antiga palavra 'mentiroso' do Terejê fundida com sua própria palavra upré 'mentir'.


 Eu disse que todas as codas viraram oclusivas glotais e se perderam, no entanto, há menos de um mês eu descobri que a palavra háê/hêi/hái 'bom' era descendente do Cerratense *mbec 'bom', os padrões de evolução são bem claros e seguem tudo que venho notando sobre o Terejê, /ɛ/ em certos casos parecia sofrer abaixamento vocálico para /a/, por isso mbEc vira hAi e hAê, /ᵐb/ vira /p/ no Akuwẽ e o Terejê faz o mesmo, mas este leva mais adiante e transforma seus /p/ em /ɸ/ e depois /h/, e por último a coda -c foi a única coda que quase se preservou, nesse caso ela parece ter tomado o lugar da coda -j (mesmo som que y do inglês como em hey), este -j se perdendo junto com as outras, já -c não foi perdido pois se vocalizou bem cedo (mas não antes da perda de -j) para /i/ e /ɪ/, por isso temos háê, hêi e hái.


 Dos pouquíssimos exemplos restantes, é possível inferir que em algum momento do século 19 pro 20, o Terejê talvez estivesse recriando suas codas, ou seja, as codas que veríamos caso tivessemos acesso ao vocabulário do Xocó, Natú ou Wakonã talvez viriam de processos de redução de sílabas bem recentes ou de uma única preservação que derivaria de -c.




Autor da matéria: Suã Ari Llusan 





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