terça-feira, 24 de junho de 2025

BADOQUE DAPRÓ, O Arco Lançador de Pedras




 



Na aldeia do tempo em que os caminhos ainda eram riscados pelos pés descalços na terra batida, havia um menino curioso chamado Dapró. O seu nome, como cantavam os mais velhos no Toré, significava “Arremessar longe”. E de fato, Dapró era atento. Enquanto os outros meninos brincavam de correr entre os cajueiros, ele observava as mãos dos velhos artesãos, os modos dos caçadores, os segredos dos pássaros.


Certa tarde, seu avô, o sábio Manoel Karuá, o chamou debaixo do pé de juazeiro. Com voz lenta, como o vento nas folhas secas, lhe mostrou um instrumento antigo, pendurado num galho, meio esquecido:


— Tá vendo isso aqui, meu neto? — disse erguendo o objeto. — É o badoque. Arco de dois cordões e couro de veado no meio. Foi com ele que cacei preás, nambus e até coelho selvagem lá nas matas do Aricuri.


Dapró arregalou os olhos. Parecia um arco de brincar, mas havia algo de misterioso naquele couro firme, na curvatura exata dos fios de algodão trançado. O avô sorriu com orgulho e continuou:


— Isso aqui não é brinquedo. Era arma de precisão. Nós, Kariri do Nordeste, sabíamos usar isso com destreza. O melhor de todos foi Geraldo dos Baca, homem de vista fina e pulso firme. Dizem que acertava passarinho em pleno voo sem errar.


O menino ouviu como quem ouve um canto sagrado. Quis aprender. E aprendeu.


Os dias seguintes foram de treino e prática. Dapró recolhia pedras arredondadas do rio, cortava o couro com cuidado, trançava os cordões com fibra de algodão cru e, aos poucos, o som do zunido do badoque cortava o ar da aldeia.


A primeira caça foi um susto: um nambu desceu do galho com um só disparo. Não era apenas sorte, era tradição renascida.


Os mais velhos começaram a sorrir. Diziam que o espírito de Geraldo dos Baca talvez tivesse escolhido aquele menino para continuar o dom. E assim foi.


Dapró cresceu e virou mestre do badoque. Mas sua missão não era apenas caçar. Era ensinar. Reuniu crianças e adolescentes, contou histórias, mostrou como fazer e usar o arco lançador de pedras.


— Não adianta ter badoque pendurado na parede — dizia com firmeza. — A tradição vive é no fazer, no usar, no ensinar. Se não passar adiante, a memória morre.


Hoje, muitos jovens da aldeia sabem o que é um badoque. Alguns até se tornam bons caçadores, mas todos sabem que aquele instrumento carrega mais que pedras — carrega história, saber, espírito ancestral.


E lá na parede da casa de Dapró, agora homem velho, pendura-se um badoque novo, feito por seu neto. E a roda do tempo segue girando.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





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