terça-feira, 24 de junho de 2025

SADÁ UAPLU, A Espingarda de Caçar






No tempo antigo, quando a floresta ainda era vasta e o silêncio das matas era respeitado, surgiu um som estranho nas bandas do sertão. Era um estouro seco, como um trovão engaiolado num tubo de ferro. Os mais velhos logo disseram: "Chegou o Sadá Uaplu, aquele que fala grosso e cospe fogo."


O povo Kariri já conhecia de ouvir falar. Desde que os brancos chegaram pelo litoral, um século antes de ocuparem o sertão, as histórias desse artefato de poder ecoavam entre as aldeias. Mas ali, nas margens do São Francisco, entre matas e tabuleiros, a espingarda era ainda coisa rara, usada somente pelos chefes coloniais – Capitães-Mores, sargentos, ou homens que tinham permissão da coroa.


No idioma do povo, sadá era qualquer coisa que estalasse com fúria repentina. E uaplu, era o nome dado à espingarda que trazia susto ao bicho, ao mato e até ao próprio caçador. Quando o barulho da pólvora rasgava o ar, os seres da mata se escondiam. A Caipora se zangava, a Yara se recolhia, e o Curupira virava o pé para confundir o caminho de quem desrespeitava as regras do mato.


Mas os tempos mudaram. Com a República proclamada, os caminhos da floresta viram mais espingardas que arcos. Os Kariri começaram a usar Sadá Uaplu para caçar veado, tatu, mocó. Era pela sobrevivência. Era para alimentar os filhos, manter a tradição da caça sem desobedecer aos anciãos.


Mesmo assim, a permissão para usar a espingarda não era coisa simples. Tinha que haver um motivo maior. Caçar só por caçar era afronta. O dono espiritual de cada bicho precisava ouvir o pedido, aceitar a oferenda do respeito. E se não aceitasse, o caçador se perdia na mata, adoecia ou via seu tiro errar o alvo dia após dia.


Com o passar das luas, as matas se tornaram pequenas, cercadas por cerca de arame, invadidas por motores e fumaças. A Sadá Uaplu foi pendurada na parede, guardada como lembrança de outro tempo.


Hoje, os Kariri-Xocó não usam mais espingardas para caçar. Quando há necessidade, chamam o cão companheiro ou montam armadilhas simples, como faziam os antigos. Porque a floresta pede cuidado. E os seres da mata continuam lá, esperando que os homens lembrem do antigo pacto: caçar com respeito, viver em harmonia.


Assim ensinamos aos mais novos. Porque Sadá Uaplu pode ser forte, mas é o coração do caçador que decide se a caça é justa.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




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