Um conto sobre o CD de memória e som Kariri-Xocó
Na aldeia banhada pelo Rio São Francisco, os dias corriam no compasso dos cantos ancestrais e dos passos do Toré. Era o tempo em que o vento ainda trazia o cheiro da terra molhada e os velhos contavam histórias ao pé do fogo. Mas o tempo, esse andarilho invisível, trouxe mudanças. E entre elas, chegou o som do mundo moderno.
Foi numa tarde de céu claro, quando o sol começava a se despedir atrás das palmeiras, que um objeto encantado fez sua aparição na aldeia. Tinha forma de caixa, com uma roda que girava em silêncio, mas quando tocada, fazia brotar músicas que pareciam espíritos cantando. Chamavam-na de toca-disco.
As famílias se reuniam ao redor dele como em torno de uma fogueira. Era comum ouvir um bolero, um xaxado, ou até mesmo um forrozinho, ecoando entre as casas de taipa. As crianças dançavam, os mais velhos sorriam e os jovens aprendiam que som também é memória.
Mas o mundo lá fora também girava — como a roda do toca-disco — e trouxe outra invenção: um pequeno disco prateado que brilhava como o luar. Chegou primeiro nos grandes centros em 1982, chamavam-no de Compact Disc. No Brasil, se fez presente em 1986. E logo a novidade bateu à porta da aldeia Kariri-Xocó.
— "É um CD, Nhenety," disse um jovem com os olhos brilhando.
— "E como se usa essa mágica?" perguntava uma anciã.
— "Com uma nova caixa. Menor. Mais leve. Mais rápida..."
Vieram os CD players. Pequenas caixas que tocavam e cantavam sem agulha, sem roda visível, mas com a mesma missão: embalar corações.
Já nos anos de 1990, muitos lares indígenas já guardavam esses aparelhos. As vozes nativas se reinventaram, ecoando agora em formato digital. Em 2008, um marco: a ONG Thydewá, ao lado de Sebastian, Nhenety e o povo Kariri-Xocó, gravou o CD Toré Som Sagrado, reunindo cantos em língua Kariri para manter viva a memória da floresta, do sagrado, da alma coletiva.
Outros também seguiram o caminho do canto gravado: o Grupo Dzubukuá, o grupo Sabucá, e até a dupla sertaneja da aldeia, Rei e Reinaldo. Cada um guardava no peito e no CD um pedaço da cultura, como se o tempo pudesse ser enrolado e guardado numa canção.
Certa vez, a jovem Kayany, olhos curiosos e mente desperta, perguntou:
— “Nhenety, e como se chama CD em nossa língua?”
O ancião olhou para o céu como quem busca resposta nos olhos do Criador, sorriu e disse:
— “Craiwopiwon.”
E explicou:
— “Cramenu é caixa, Iworó é roda, Pineté é pequena, e Wonhé quer dizer tocar e cantar. Assim nasceu o nome: Craiwopiwon, a Caixa Roda Pequena que Toca e Canta.”
Desde então, os mais jovens passaram a chamar assim aquela pequena jóia sonora. E em cada CD, ecoava o passado e o futuro do povo, como um Toré gravado no tempo.
Porque o som não morre — ele apenas muda de forma. E enquanto houver uma Craiwopiwon, a alma Kariri-Xocó continuará dançando com o vento.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
Nenhum comentário:
Postar um comentário