Uma Fábula do Kaplan o Jabuti
Em tempos antigos, quando os ventos ainda cantavam o nascimento das montanhas e os rios falavam com as árvores, a Terra chamada Radda era habitada por muitos seres vivos — os ba — que dançavam a canção da vida sob o sol do Brasil.
Entre todos os animais, havia um que caminhava devagar, mas com o coração cheio de histórias: o Jabuti, conhecido entre os Kariri do Sertão como Kaplan. Sua carapaça era como uma pedra antiga e sagrada, marcada pelos caminhos do tempo. Kaplan era velho, muito velho — e todos os animais o respeitavam por sua sabedoria.
Um dia, uma criança curiosa — um Inghé — se aproximou dele à beira do rio, onde o sol aquecia suavemente as pedras. Sentou-se perto do velho Kaplan e perguntou:
— Kaplan, como você vive há tanto tempo nesta floresta?
O Jabuti olhou com olhos lentos e profundos, e respondeu:
— Ora, Inghé... vivo tanto porque tenho memória. Tenho Samy.
A criança inclinou a cabeça, intrigada:
— Memória? Como assim?
Kaplan sorriu com serenidade:
— Ter memória, meu pequeno, é andar no ritmo da vida. É seguir devagar, como o tempo da terra. É ouvir os passos dos outros seres e sentir o vento antes que ele sopre. É aprender a se adaptar, a fugir do perigo — e a fazer amigos entre árvores, águas e pedras. É respeitar o caminho.
O Inghé abriu um sorriso:
— Que bonito, Kaplan! Então você conhece cada pedaço do mundo?
— Sim... — disse o Jabuti com orgulho. — Conheço os Keríá, os animais da mata. Os Ieendeá, os pássaros do céu. Os Wãmyá, peixes dos rios. E até os Cró, as pedras que dormem em silêncio. Eles me chamam de Dimécro, o Senhor da Pedra.
Os olhos do Inghé brilharam de encanto:
— Gratidão, velho Kaplan... Dimécro. Que conselho o Senhor me dá?
Kaplan pousou uma pata sobre o chão e disse com voz firme e terna:
— Ande no seu ritmo, criança. Assim você aprenderá a viver.
E assim, o Inghé seguiu seu caminho mais devagar, aprendendo a escutar a floresta com os ouvidos da alma, e a caminhar como fazem os sábios: com Samy, a memória que conecta todos os seres da vida.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
📜CORDEL: DIMÉCRO KAPLAN, O Senhor da Pedra
Em tempos de sol nascente,
Onde os ventos tinham voz,
A Terra era reluzente
Com seus bichos e seus pós.
Radda era o nome sagrado,
Um chão vivo, encantado.
Viviam os seres “ba”,
Na floresta e no sertão,
Cada qual na sua cá,
Com respeito e conexão.
E o mais velho da jornada
Era o Kaplan, pé de estrada.
Era um Jabuti sagrado,
Com a carapaça de chão,
Caminhava sossegado
Com história no coração.
Era lento, era ancião,
Mas guardava a tradição.
Certo dia um “Inghé” curioso,
Uma criança a perguntar,
Chegou com olhar garboso
Querendo se orientar:
— Kaplan, qual o segredo
Do teu tempo tão sem medo?
Kaplan disse com ternura:
— Vivo tanto por saber.
Tenho “Samy”, a estrutura
Da memória do viver.
Ando lento, mas atento,
Vejo o mundo num só tempo.
— Como assim? — disse o menino.
E o velho explicou com calma:
— No silêncio tem destino,
Na lembrança vive a alma.
Cada passo em sintonia
Faz brotar sabedoria.
— Conheço bicho e madeira,
Pássaro e peixe no rio.
Keríá da ribanceira,
Ieendeá que canta frio.
Wãmyá das correntezas
E Cró, as pedras acesas.
As pedras me dão respeito,
Me chamam Dimécro então.
Carrego em mim o conceito
Do tempo da criação.
O Senhor da Pedra sou,
Na memória que ficou.
O Inghé, emocionado,
Disse: — O que me aconselhas?
Kaplan, com olhar sagrado,
Disse: — Que tu nunca te espelhas
No correr sem direção…
Vá no teu tempo, irmão.
Assim o Inghé seguiu
Seu caminho, passo a passo,
Ouvindo o que o vento riu
E entendendo o velho traço.
Aprendeu com Dimécro
Que viver é ser concreto.
E até hoje a floresta,
Quando o sol beija o chão,
Sussurra em brisa modesta
A canção da conexão:
— Lembre sempre de Samy...
E ande com o coração.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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