segunda-feira, 7 de julho de 2025

MERABODZÓ, O Machado de Ferro






Conto do Machado baseado na tradição oral 


Nas aldeias antigas dos Kariri, chamadas de Natiá, tudo seguia o ciclo da natureza. Cada estação guiava o tempo do povo, e plantar as roças era mais que trabalho: era um ato de comunhão com a Terra. Para abrir clareiras e preparar o solo sagrado, os mais velhos ensinavam aos mais jovens o uso do Bodzó, o machado de pedra. Essa ferramenta ancestral era firme, mas não gananciosa. Só cortava o necessário — o justo para alimentar o povo, nunca para ferir a floresta.


Mas um dia, o mundo mudou. Do grande mar chegaram homens desconhecidos com roupas estranhas, vozes duras e olhos cheios de cobiça. Com eles veio um novo instrumento, feito não de pedra, mas de ferro. Um machado mais pesado, mais afiado, mais ambicioso. Esse novo objeto recebeu um nome na língua dos Kariri: Merabodzó, o Machado de Ferro — união de Merata (ferro) e Bodzó (machado).


Ao contrário do machado de pedra, o Merabodzó não parava. Ele abria clareiras como feridas, derrubava árvores milenares como se fossem capim, e com seu apetite insaciável, fez as florestas chorarem. Por onde passava, deixava troncos tombados, animais fugidos e o silêncio da destruição.


A madeira retirada era vendida para tingir tecidos com o sangue das árvores. E onde antes dançavam os ipês e os sabiás, brotaram lavouras de cana-de-açúcar, alimentadas com o suor e o pranto dos povos nativos, agora escravizados. Os que conseguiram fugir se esconderam na castinga do sertão, levando consigo a memória da mata viva.


Na região que hoje se chama Porto Real do Colégio, em Alagoas, só restou uma pequena porção de floresta: a Mata do Ouricuri, onde pulsa ainda o coração do povo Kariri-Xocó.


Mas o velho pajé ensina:


“O Merabodzó em si não é mau. O mal não está no objeto, mas no coração de quem o segura.”


O machado de ferro pode sim construir casas, bancos e portas, como faz o carpinteiro sábio. Assim como a faca pode cortar legumes na cozinha ou ferir em mãos impiedosas. Tudo depende de quem a conduz.


O verdadeiro devorador de florestas não foi o machado de ferro. Foi aquele que, em nome da riqueza, esqueceu de ouvir o canto da mata, o conselho do rio, e o clamor das árvores.


Essa é a história do Merabodzó, o Machado de Ferro, contada para que não se perca, para que as novas gerações saibam:

O instrumento pode ser o mesmo, mas a escolha é de quem o segura.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





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