Um Conto Sobre a Câmara de Vídeo
Na aldeia onde o vento carrega cantos antigos e os olhos veem além do visível, chegou um dia um artefato estranho, mágico aos olhos de muitos. Brilhava como espelho, mas em vez de refletir, parecia roubar as imagens e guardá-las em sua barriga metálica. Os mais velhos, com olhos atentos e corações firmes, deram-lhe o nome de Pohiesawa – Olho Grande que Grava Imagem.
Naquele tempo, nas décadas de silêncio e resistência, os Kariri-Xocó eram visitados por pessoas de fora. Chegavam com vozes apressadas, roupas diferentes e sempre carregando aparelhos curiosos. Repórteres de TV, cientistas, documentaristas, curiosos – todos queriam filmar, captar, guardar a imagem daquele povo tão antigo quanto o rio São Francisco.
Foi em 1973, numa viagem a Aracaju, que um grupo de indígenas levou consigo o Toré – dança, reza, espírito. Eles se apresentaram com a força de seus ancestrais, e a televisão registrou. A imagem foi transmitida para as casas da cidade, e em algum lugar, alguém viu.
Mas na aldeia, quando a notícia chegou, foi como se o céu tivesse se curvado. Um corre-corre tomou as casas de palha: “Os Kariri-Xocó estão na TV!”. As crianças ficaram em silêncio. Os velhos, emocionados, diziam:
— Um homem ficou o tempo todo com aquela máquina... o olho grande... ele gravava tudo.
Foi então que nasceu o nome: Pohiesawa.
Poh – olho.
Ié – grande.
Samy – memória, gravar.
Waruá – imagem.
Mas o Pohiesawa não era para qualquer um. Pertencia aos que tinham poder, dinheiro ou ligação com as grandes instituições. Ninguém podia ter uma daquelas câmeras. Era como um espírito dos encantos que só visitava os outros.
Com o tempo, no fim dos anos 1990, as pequenas máquinas fotográficas começaram a gravar vídeos. Mesmo assim, poucos indígenas tinham acesso a uma. E quando os celulares com câmera começaram a chegar nos anos 2000, era como se um novo tempo estivesse soprando nas matas.
Foi em 2008 que a virada aconteceu. Nhenety, filho do povo e guardião da memória, criou o Projeto de Ponto de Cultura Horizonte Circular, com o apoio da Secretaria de Cultura de Alagoas. E então, como presente dos céus, chegou à aldeia um kit mágico: câmera de vídeo, câmera fotográfica, notebook e projetor.
Os jovens Kariri-Xocó, antes apenas filmados, passaram a filmar. Gravaram o Toré, o barro ganhando forma nas mãos das ceramistas, os cantos de mutirão, as pescarias ao entardecer, os ensinamentos dos anciões. Tudo agora era também imagem guardada, memória registrada, visão do próprio povo sobre si mesmo.
Até 2014, o Projeto Horizonte Circular percorreu caminhos e trilhas, fez da escola indígena Francisco Queiroz Suíra um palco de saberes e trocas. Os curandeiros, pescadores, artesãos, mulheres de barro e fogo – todos foram vistos pelo Pohiesawa, mas dessa vez, sob as mãos dos próprios filhos da terra.
Hoje, com celulares nas mãos, todos filmam. Mas há quem diga que aquele tempo... aquele tempo ficou guardado como um canto ancestral.
O Pohiesawa já não assusta. Ele é agora aliado.
Mas foi preciso coragem, luta e sonho para transformar o “olho grande” em memória viva do povo Kariri-Xocó.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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