quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

DZÉÁ WANHERÉCÓ — Os Muitos Nomes da Fazenda Sementeira





O sol se punha manso sobre as águas do São Francisco quando Ynorá, ainda menina, sentou-se aos pés do velho cacique Irecê. O vento passava entre os coqueiros como se soprasse lembranças antigas, e a terra, silenciosa, parecia ouvir.


— Vovô Irecê, — perguntou ela, com a curiosidade limpa dos que ainda aprendem a escutar — essa terra onde vivemos, a Aldeia Kariri-Xocó, sempre teve esse nome?


O cacique respirou fundo. Seus olhos, marcados pelo tempo, atravessaram o rio, como se enxergassem não apenas a outra margem, mas também outros tempos.


— Não, minha neta, — respondeu com voz baixa e firme — essa terra teve muitos nomes, porque muitos foram os que tentaram apagar o nosso. Cada nome foi uma tentativa de nos arrancar da raiz. Mas a terra nunca nos esqueceu.


Irecê então começou a contar.


Disse que depois da suspensão dos aldeamentos em Alagoas, em 1873, o povo Kariri foi empurrado para fora de suas próprias moradas. Em 1876, o governo deu outro nome à terra ancestral: Vila de Porto Real do Colégio. O nome novo veio como cerca invisível, marcando no papel aquilo que já tinha dono desde o tempo dos antigos.


Pouco depois, em 1878, a Província de Alagoas criou ali a Colônia São Francisco, dizendo que era para acolher os flagelados da grande seca de 1877. Mas, enquanto acolhiam uns, continuavam afastando outros — os verdadeiros filhos da terra.


O tempo passou, e a terra ganhou mais um nome estranho: Aprendizado Agrícola e Campo de Demonstração, criado em 1º de agosto de 1912. Diziam que era para ensinar a trabalhar a terra, como se a terra não tivesse sido trabalhada, cuidada e respeitada pelos Kariri muito antes de qualquer escola chegar.


Mas o golpe mais duro, contou o cacique, veio entre 1923 e 1924, com a criação do Serviço do Algodão de Plantas Têxteis. A terra passou a ser medida, loteada, vendida. Quem quisesse ficar precisava pagar pelo chão onde seus ancestrais haviam sido enterrados. Cinco anos de prestações, juros sobre o próprio sangue. Preferência aos posseiros, diziam — mas os Kariri nunca foram vistos como posseiros, e sim como incômodo.


Em 1940, a terra mudou novamente de mãos e passou ao Fomento Agrícola, por acordo entre o governo estadual e a União. No ano seguinte, em 25 de agosto de 1941, ganhou mais um nome: Campo Experimental das Sementes. Sementes plantadas ali, mas não as sementes do povo.


Foi só em 1944 que o Estado voltou o olhar para os Kariri, criando o Posto Indígena Padre Alfredo Dâmaso, pelo Serviço de Proteção aos Índios. Não devolveu a terra, mas reconheceu a presença.


Em 1947, cinquenta hectares do Campo Experimental foram oficialmente doados aos índios de Colégio. Chamaram esse pedaço de Colônia Indígena. Pequeno território para um povo grande em história.


Vieram ainda o Posto Agropecuário Federal, em 1949; o Centro de Treinamento para Operadores Tratoristas, em 1955; a Fazenda Escola, em 1960, com cursos para rapazes e moças, todos em regime de internato. Depois, a terra passou à Companhia do Vale do São Francisco, que manteve apenas o curso de Economia Doméstica.


Em 1964, chamaram a terra de Fazenda Modelo, criando gado holandês puro, enquanto o povo originário seguia esperando justiça.


Em 1975, cessaram as atividades da fazenda. O gado foi levado, os projetos encerrados. A terra ficou em silêncio outra vez, como se aguardasse.


Então o cacique sorriu, e sua voz ganhou força.


— Em 1978, minha neta, — disse Irecê — nós voltamos. O povo Kariri-Xocó ocupou a Sementeira e retomou 225 hectares. Saímos da Rua dos Índios e fundamos nossa nova morada: a Aldeia Kariri-Xocó.


Ynorá olhou ao redor. A terra parecia respirar.


— Então, vovô, quantos nomes essa terra teve?


— Muitos, — respondeu ele — mas o verdadeiro nome nunca se perdeu. A terra sabe quem somos. E enquanto houver memória, canto e luta, nenhum papel será mais forte que nossos passos.


O vento voltou a soprar. E a terra, agora chamada Aldeia, permaneceu viva — guardando em silêncio todos os nomes que tentou esquecer, mas jamais conseguiu.





Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




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