A Casa Grande sempre esteve ali, silenciosa e atenta, como se guardasse em suas paredes a respiração antiga da terra. Chamávamos de Eráye ou Picriá e ela não era apenas uma casa: era um marco, um sinal de mudança, um ponto de travessia na história do povo Kariri-Xocó.
A história da Fazenda Sementeira é muito antiga. Ao longo do tempo, aquela propriedade teve vários nomes e diferentes sedes administrativas, acompanhando os interesses dos brancos e do Estado. O prédio da Casa Grande, como sede principal, correspondeu apenas a uma das fases dessa longa história de ocupação e transformação do território indígena.
Quando, em 1978, retomamos a Fazenda Modelo — conhecida também como Sementeira — a Casa Grande deixou de ser sede de fazenda para tornar-se abrigo de muitas vidas. Funcionários da CODEVASF foram retirados, e nós, indígenas Kariri-Xocó, ocupamos as construções que ali existiam: casarões antigos, galpões, cocheiras, escola, casas de funcionários. Quem não encontrou teto, ergueu barracas. A terra nos recebia novamente.
A Casa Grande tornou-se lar de vinte e duas famílias. Cada porta, cada canto, cada alpendre guardava uma história. Ali viveram Alírio e Maria de Lourdes, Ivete e Antônio Cruz, Luiza Tenório e família, Arnaldo e Chica, Zé Brinquinho e Especília, Helena Tenório e Lucineide, Mané Galo e Ianí, Antônio Tenório e Landa, Gena e Zeire, Dinalva e Juarez, Zé Tenório e Givalda, Gergina e família, Gringo e Antônia, Maria Vermelha e Miguel Suíra, o cacique Cícero e Anália, Zé Gatinho e Eurides, Paulo Nunes e Maria Véia, Zé Taré e Antônia. Havia ainda Zefina, Vera, Roselita e Euda — famílias do coração, unidas pelos filhos e pela convivência.
Eu, Nhenety, morei ali com minha família. Por isso conto essa história.
A Casa Grande era cheia de vida. Os mais velhos contavam histórias ao cair da noite, enquanto os adultos saíam para pescar nas lagoas fartas. Nos fundos, o alpendre se enchia de fogos de lenha acesos, e tudo era repartido: comida, palavra, silêncio. À noite, redes armadas, lençóis no chão, esteiras e tapetes acolhiam corpos cansados, mas esperançosos.
Em 1979, veio a grande enchente. Ficamos ilhados. Os meninos saíam para colher mangas nas margens do Rio São Francisco, que parecia não ter fim. O alimento enviado pelo governo chegou e amenizou a fome por alguns dias, mas foi a união que nos sustentou.
Atrás da Casa Grande ficava a Dzurichi, a Lagoa Comprida. Ali pescávamos e plantávamos arroz. Suas águas banhavam o Hechi Wathõ, o Alto do Bode, morro sagrado onde antes existira a Natianie, a antiga aldeia indígena tradicional. A terra falava conosco, mesmo quando não percebíamos.
Outro fato importante sobre o local da Casa Grande me foi contado pela velha índia Mareinha. Um dia, ela me disse assim:
— Olha, Nhenety, esse lugar onde hoje fica a Casa Grande foi, no final do século XVIII, morada do Pajé Ludovico. A casinha do pajé era coberta com casca de jatobá. Depois que ele morreu, anos mais tarde, os brancos tomaram o local.
Essa palavra ficou guardada em mim como semente, mostrando que, antes das paredes de tijolo, ali já existia morada de saber, reza e cura.
Durante a enchente, os jovens que estudavam no Ginásio São Francisco, na cidade, pediram ao prefeito uma canoa para atravessar o rio e não perder as aulas. Eu estava entre eles. Ao voltar da escola, eu, Lenoir, Zé Birrinha e Dijalma fazíamos mingau de milho com leite em pó. Era nosso jantar, simples e compartilhado.
Quando as águas baixaram, surgiu uma superpopulação de preás nos arredores. Davi e meu irmão Antônio fizeram aratacas. Pegamos muitos. Nossas mães preparavam cozidos e carnes moqueadas — comida boa, lembrança viva até hoje.
Lembro também de 1980, quando Jaime trouxe um toca-discos. No alpendre da Casa Grande dançamos ao som da música popular brasileira. A alegria também fazia parte da luta.
Certo dia, perguntei a Miguel Suíra:
— Miguel, o senhor sabe quando essa Casa Grande foi construída?
Ele respondeu com calma:
— Sei sim, Nhenety. Trabalhei aqui como servente de pedreiro, fazendo a argamassa. Essa casa foi construída em 1960 para ser sede da Fazenda Escola. Funcionou até 1978 como Fazenda Modelo. Nós, Kariri-Xocó, fomos a mão de obra dessa fazenda por décadas.
Agradeci. A Casa Grande, então, ganhou mais uma camada de memória.
Quando a terra foi conquistada, fizemos um Toré na Casa Grande. Antônio Tinga puxou o canto. Gente de todas as casas chegou para celebrar. Foi um momento forte, daqueles que não se esquecem.
Em 1981, chegou o projeto das 110 casas. Cada família deveria fabricar dez mil tijolos, queimar, trabalhar na construção. O governo fornecia cimento, madeira e telhas. Assim nasceu a Nova Aldeia. Em 1982, as casas ficaram prontas. As famílias deixaram a Casa Grande, que passou a ser sede do Posto Indígena Kariri-Xocó até 2003.
Depois disso, outras famílias ali viveram: Esso e Rita, Vânio e Cil, Galego e esposa, Mudinha e esposa, Zé Van e esposa, Vânia de Zeire e esposo, Ara e filhos. A Casa Grande continuou acolhendo.
Hoje, a Eráye é a Creche Tia Marieta. Nela, crianças pequenas aprendem a dar os primeiros passos na vida. Onde antes houve luta, hoje há riso. Onde houve enchente, hoje há futuro.
A Casa Grande permanece.
Não como ruína, mas como memória viva, fazendo novas histórias nascerem todos os dias.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó

Nenhum comentário:
Postar um comentário