domingo, 21 de dezembro de 2025

NATIÁDÉ OPARÁMÜ – A ALDEIA MÃE DO BAIXO SÃO FRANCISCO






O sol descia lento sobre as águas largas do rio quando Anawany, sentada à sombra de um velho juazeiro, quebrou o silêncio da tarde. Seus olhos acompanhavam o caminho do Opará, que seguia firme, como quem conhece todos os destinos.


— Tia Maiara, — perguntou a menina, com a curiosidade própria de quem começa a escutar os chamados da memória — por que sempre dizem que aqui é Natiádé Oparámü, a Aldeia Mãe do São Francisco?

A anciã respirou fundo. Seus olhos, marcados pelo tempo, pareciam atravessar séculos. Tocou a terra com a mão aberta, como quem pede licença aos espíritos antigos, e começou a falar.


— Antes de qualquer bandeira, antes das cruzes e dos nomes estrangeiros, este rio já se chamava Opará. Ele era — e ainda é — caminho, ventre e palavra. Foi às margens dele que muitos povos viveram livres: Kariri, Karapotó, Aconãs, Tupinambás, Chocó, Natu, Caxagó, Progê… Cada um com sua língua, seu canto e sua maneira de existir.


Maiara apontou para o rio, que refletia o céu avermelhado.

— Quando os colonizadores chegaram, trouxeram a divisão. Aldearam nossos povos em missões: Colégio, Jaciobá, São Brás, Pacatuba, Ilha de São Pedro. Diziam que era proteção, mas era controle. Mesmo assim, nossos parentes resistiram, guardando o saber como semente enterrada.


A voz da anciã ficou mais grave.

— No tempo em que Portugal transformava aldeias em vilas, muitas missões foram apagadas. Aqui, em Colégio, tentaram fazer o mesmo. Em 1876, nos chamaram de Vila de Porto Real do Colégio. Mas a terra lembrava quem éramos. E ajudou o fato de termos, por um tempo, um indígena na administração: Alferes Firmino José dos Santos. Foi assim que muitos parentes de outras missões vieram buscar abrigo aqui.


Anawany escutava atenta, como quem recebe um presente invisível.

— Vieram Natu, Xocó, Prakiô, Caxagó, Carnijó, Pankararu, Romari, Xucuru… Cada chegada reforçava o espírito acolhedor da aldeia. Por isso ela se tornou mãe.

O vento passou entre as folhas, como se confirmasse a palavra.


— Alguns seguiram novos caminhos — continuou Maiara. — Em 1912, parentes fundaram o Tingui-Botó. Em 1944, o Posto Indígena Padre Alfredo Dâmaso trouxe assistência, mas também vigilância. Em 1966, os Xocó daqui se reencontraram com os Xokó da Ilha de São Pedro, e em 1979 veio a retomada. Mais tarde, surgiram os Karapotó de Terra Nova, os Fulkaxó, os Aconãs, os Caxagó, os Pankariri…


A anciã sorriu, com ternura.

— Todos partiram, mas todos levaram um pouco daqui. E agora muitos retornam às suas terras antigas, formando novas aldeias. É o ciclo do Opará: ir, voltar, renascer.


Anawany olhou novamente o rio. Pela primeira vez, entendeu que ele não apenas corria — ele lembrava.

— Então, tia… — disse a menina, em voz baixa — a Aldeia Mãe nunca deixa de ser mãe.


Maiara assentiu.

— Natiádé Oparámü não é só um lugar. É um espírito. E enquanto houver memória, ele continuará vivo, correndo junto com o São Francisco.

O rio seguiu seu curso. E a história, mais uma vez, foi contada.





Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




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