A Aldeia Kariri-Xocó costuma receber muitos passos de fora. São passos curiosos, atentos, às vezes apressados. Vêm estudantes, turistas, parentes de outros povos e pessoas da cidade. Cada um chega trazendo perguntas nos olhos.
Numa dessas visitas, um grupo de estudantes atravessou o Opará, vindo da cidade de Propriá, em Sergipe. Entre eles estava a jovem Mariana, que caminhava observando tudo: as casas, os fios de luz, os carros parados à sombra. Aquilo lhe parecia tão próximo de sua própria cidade que a dúvida lhe nasceu natural.
Ela se aproximou do cacique Seregê e perguntou, com respeito e curiosidade:
— Ô cacique Seregê, a aldeia é assim tão urbanizada? Tem televisão, luz elétrica, automóveis… como a nossa cidade?
Seregê sorriu devagar, como quem sabe que uma pergunta carrega muitas outras dentro dela. Olhou em volta, depois para o rio, e respondeu:
— Sim, Mariana. Mas temos outras aldeias aqui, bem diferentes dessa. Vou contar para todos como é o nosso povo.
E então, como se abrisse um mapa invisível no ar, Seregê começou a narrar.
Disse que, ao longo dos séculos de convivência com a sociedade brasileira, o povo Kariri-Xocó aprendeu a caminhar entre mundos sem perder o próprio passo. Desenvolveu estratégias de preservação cultural diante das mudanças do mundo civilizado, sem romper o fio que liga os vivos aos antepassados.
— Em nosso território indígena — explicou — existem três formas de aldeia, três modos de estar no mundo.
Primeiro, falou da Natierácró, a Aldeia Urbana, localizada próxima à cidade de Porto Real do Colégio, em Alagoas. Ali, as casas são de alvenaria, há tecnologia, luz elétrica, água encanada. Os costumes dialogam com a sociedade nacional e com o mundo da globalização. É um espaço de convivência direta com a cidade, sem que o povo deixe de ser quem é.
Depois, sua voz ganhou outro tom, mais profundo, quase como um canto antigo.
— Na mata do Ouricuri — disse — está a Natianhe, a Aldeia Tradicional, também chamada Matkaí. É território sagrado. Ali, as casas, os rituais, os costumes e as tradições seguem como nos tempos dos antepassados. Não existe nada da civilização. É uma floresta de cem hectares, cheia de plantas e animais silvestres da nossa região. Os brancos não podem visitar. É o lugar onde a espiritualidade respira livre.
Mariana ouvia em silêncio, sentindo que cada palavra carregava um ensinamento.
Então Seregê concluiu o mapa:
— Entre a Aldeia Urbana e a Aldeia Tradicional, a partir dos anos de 1990, surgiram as Natisamyá, as Aldeias Culturais. Foram construídas pelos grupos de toré: Sabucá, Baca, Etçâmy, Pahankó, Opará Taré, Kaçafeita, entre outros. Nessas aldeias, os visitantes podem chegar, conhecer, comprar artesanato, assistir e participar da nossa cultura viva.
O cacique fez uma breve pausa, como quem sela o ensinamento.
— Por isso dizemos assim: Samytsedé — a cultura está no povo. Não é a casa, nem a mata, nem a cidade que definem quem somos. São as pessoas, com seus saberes nativos, que moldam o ambiente e configuram o mundo segundo sua visão cultural, social e espiritual.
O vento passou leve entre as árvores. Mariana entendeu, sem precisar perguntar mais.
— Essa — concluiu Seregê — foi a maneira que encontramos de viver em comunidade, dialogar com a sociedade e preservar nossa espiritualidade em comunhão com os antepassados sagrados, sem jamais esquecer quem somos.
E naquele instante, entre o rio, a aldeia e a escuta, Samytsedé deixou de ser apenas uma palavra. Tornou-se presença.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó

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