A fogueira ardia no centro da aldeia, cuspindo faíscas que subiam ao céu como pequenas estrelas. Ao redor dela, a noite escutava. Foi ali que o jovem Nayrã, com os olhos curiosos e o coração inquieto, rompeu o silêncio e perguntou ao velho Nidé, que descansava sobre uma pedra antiga como a própria terra:
— Meu grande cacique, o que é o Toré? Desde quando ele existe? E para que serve?
O ancião demorou a responder. Fitou o fogo como quem consulta os espíritos e, em seguida, falou com voz baixa, mas firme, como se cada palavra tivesse peso sagrado:
— O Toré, meu neto, é o som que vem da flauta e ecoa no mundo invisível. É som sagrado. Ele nasce do trovão de Tupã e corre pelo vento até encontrar nossos corpos. Vem desde o começo do mundo, desde quando nossos antepassados aprenderam a escutar a terra.
Nidé explicou que o Toré não acontece por acaso. Ele nasce de um motivo, de uma necessidade do povo. Serve para agradecer a colheita, celebrar nascimentos, unir casamentos, honrar os mortos, fortalecer a paz, curar feridas do corpo e da alma, e também para afirmar a luta, a identidade e a memória.
Os anos passaram como passam as águas do rio São Francisco. Nayrã cresceu, tornou-se adulto, e em muitas fogueiras ouviu novamente as histórias do Toré. Soube então que, em 1859, quando o Imperador Dom Pedro II visitou a Aldeia Kariri de Colégio, foi recebido com um Toré conduzido pelo pajé Manoel Baltazar e por um grupo de indígenas. Mesmo diante do poder do Império, foi o som ancestral que falou primeiro.
Mais tarde, conversando com o velho Irecê, Nayrã compreendeu algo ainda mais profundo. O Toré foi essencial para o reconhecimento étnico dos Kariri de Colégio. Os grupos eram liderados pelos Duboheriá, os Mestres do saber: Manoel Ibá, Antônio Tinga, Giriçá e outros que, em 1935, dançaram e cantaram diante do pesquisador Carlos Estevão. Daquele registro nasceu, anos depois, em 1944, o Posto Indígena Padre Alfredo Dâmaso.
Mas o Toré não ficou preso às páginas dos estudos. Ele seguiu vivo. Em 1973, o cacique Irecê levou um grupo Kariri-Xocó para além da aldeia. Foram até Aracaju, capital sergipana, onde apresentaram o Toré ao mundo de fora. O som ecoou nos jornais, na televisão, e atravessou fronteiras invisíveis.
Com o tempo, muitos grupos de Toré nasceram, como sementes espalhadas pelo vento. Na década de 1990 surgiram o Seregê, liderado pelo cacique José Tenório; o Thydjo, sob a liderança de Cará; o Suré, do soprador mágico Ademir Cruz; o Wakái, do líder Mocó; e o Dzubukuá, conduzido por Nido. Esses grupos não apenas dançavam: vendiam artesanato, arrecadavam alimentos, curavam, ensinavam, falavam ao mundo.
Nos anos 2000, novos passos se somaram à roda. Vieram o Etçãmy, de Batoré; o Sabucá, de Pawanã; o Kaçafeita, de Coção; o Yegeri, das grandes chamadoras de chuva, liderado por Nelcide; e o Subatekié, do conhecimento, conduzido por Idiane Crudzá. Muitos outros ainda nasceram, tantos que a lista já não cabe na memória escrita.
Naquela mesma fogueira, agora já homem feito, Nayrã entendeu: o Toré nunca foi apenas dança ou canto. Ele é raiz viva. Enquanto houver quem escute o trovão de Tupã e bata o pé na terra, o Toré continuará renascendo, mais forte, mais firme, como esperança que não se apaga.
E o fogo, em silêncio, concordou.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó

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