A velha Soyá acordava antes do sol. Suas mãos, marcadas pelo tempo, conheciam o barro como quem conhece o próprio corpo. Sentada à sombra de um juazeiro, às margens do Opará, ela amassava a argila com calma, enquanto a neta Aramã observava em silêncio, aprendendo mais com o gesto do que com as palavras.
— Vê, Aramã… — dizia Soyá, sem levantar os olhos. — O barro escuta a gente. Se a mão estiver pesada, ele racha. Se estiver mansa, ele vira ruñohú.
A cerâmica sempre foi assim para o povo Kariri-Xocó: mais que trabalho, era vida. Desde antiga data, as mulheres moldavam potes e panelas de barro, o ruñohú, e seguiam em taioiará, vendendo e trocando com os carai, os brancos. Em troca vinham o taiu, o dinheiro; a sabucá, a galinha; e o sekiki, a farinha que sustentava a casa.
Soyá lembrava bem do tempo da Rua dos Índios, quando ainda não tinham a terra reconquistada. As mulheres seguiam pelo rio na Ubacródzu, a canoa do Porto das Pedras, levando a cerâmica para os Atserácroraí, os povoados ribeirinhos. O rio era estrada, mercado e companhia.
Depois veio a retomada da Terra Indígena, já nos anos de 1990.
A aldeia se firmou às margens do Opará, cercada por lagoas fartas de midzé, os peixes. A vida mudou. Agora, junto com os potes de barro, as mulheres carregavam setu, balaios cheios de peixe fresco, para vender e trocar nos Atserácaddá, os povoados do interior.
— Foi o tempo mais bonito, Aramã — contou Soyá certa vez. — A terra voltou pra gente, e o peixe vinha como presente.
Já não era mais a canoa. As mulheres seguiam nos Ibáchiddá, os carros compridos da terra, atravessando Apreaca, Angico, Girau, Salomé e Xinaré.
A Nova Aldeia trouxe estrada, luz elétrica, casa de alvenaria e água encanada. Trouxe conforto, mas também trouxe silêncio para o barro.
Agora, Soyá estava aposentada. Muitas das velhas ceramistas também. As mãos cansaram, os olhos falharam, e poucas jovens quiseram aprender o ofício. O barro começou a esfriar.
Aramã, porém, escutava tudo com atenção. Naquele dia, ajoelhou-se ao lado da avó e pediu:
— Ensina de novo, vó. Quero aprender a ouvir o barro.
Soyá sorriu. Um sorriso lento, profundo, como quem vê o futuro respirando.
— Então senta, minha neta. Enquanto houver mão jovem pra aprender, o ruñohú não morre. A tradição só dorme quando ninguém chama por ela.
E ali, entre o barro úmido, o rio antigo e a memória viva, Soyá passou à neta não apenas a técnica da cerâmica, mas a história de um povo que troca, vende, resiste e permanece.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó

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