sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

WOROBÜYÉ – FÁBULAS KARIRI-XOCÓ Os Guardiões das Lagoas do Opará, Volume 9 – Coletânea, Nhenety Kariri-Xocó






📜 FALSA FOLHA DE ROSTO



WOROBÜYÉ – FÁBULAS KARIRI-XOCÓ

Os Guardiões das Lagoas do Opará

Volume 9 – Coletânea

Nhenety Kariri-Xocó





📜 VERSO DA FALSA FOLHA DE ROSTO



Este livro é parte do projeto literário e cultural desenvolvido por

Nhenety Kariri-Xocó,

Guardião da Palavra, contador de histórias de seu povo e preservador do legado ancestral das terras do Opará.


Todos os direitos desta obra pertencem ao autor.

Reprodução parcial ou total somente com autorização prévia.





📜 FOLHA DE ROSTO



WOROBÜYÉ – FÁBULAS KARIRI-XOCÓ

Os Guardiões das Lagoas do Opará

Volume 9 – Coletânea


Nhenety Kariri-Xocó


Porto Real do Colégio – Alagoas

2025





📜 FICHA CATALOGRAFICA (MODELO PADRÃO)



(A ficha abaixo é um modelo pronto para o livro; caso eu deseje, posso colocar o nome do ilustrador, editora, ano específico, ou adaptar conforme normas da biblioteca.)


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, Brasil)


Kariri-Xocó, Nhenety

WOROBÜYÉ – FÁBULAS KARIRI-XOCÓ, Os Guardiões das Lagoas do Opará – Volume 9 – Coletânea / Nhenety Kariri-Xocó. – Porto Real do Colégio (AL), 2025.


72 p. : il. ; 21 cm.


Inclui glossário indígena e apêndices.


ISBN: 000-0-0000-0000-0 (colocar quando definido)


Literatura indígena brasileira.


Povo Kariri-Xocó – Cultura.


Fábulas – Tradição oral.


Mitologia indígena.

I. Título.


CDD: 398.20981

CDU: 398.2(=81)





📜 DEDICATÓRIA



Dedico este livro aos

Ancestrais Kariri-Xocó,

que caminham comigo desde o primeiro sopro de vida

e iluminam minha mente com histórias que brotam

como raízes profundas às margens sagradas do Opará.


Dedico também às crianças de meu povo,

flores vivas da aldeia,

para que nunca esqueçam que a palavra é um espírito

que guarda, ensina, cura e fortalece.


E dedico, por fim,

a todos os que escutam com o coração aberto

as vozes das lagoas, das matas e dos ventos do tempo.





📜 AGRADECIMENTOS



Agradeço aos Espíritos dos Ancestrais no Opará,

que conduzem meus passos na arte de narrar.

Aos sábios e sábias de minha aldeia,

por cada ensinamento transmitido no silêncio das noites

e no brilho das brasas da fogueira.


Agradeço ao meu povo Kariri-Xocó,

que resiste, cria e floresce

na força do sagrado e na memória de nossos antigos.


Aos leitores que acolhem estas fábulas,

meu profundo respeito.

Cada pessoa que lê estas histórias

se torna um Guardião

do que permanece vivo dentro de nós.





📜 EPÍGRAFE



"A palavra que nasce do coração dos povos

não morre:

transforma-se em vento,

em água,

em memória que atravessa gerações."

— Sabedoria Kariri-Xocó





📜 SUMÁRIO



Sumário


Prefácio .................................................... 07


Apresentação .......................................... 11


Introdução ............................................... 15



Fábulas ( 01 a 10 )


01. O Irerê e a Marreca-oveira, Guardiãs da Lagoa do Povo; 


02. Sanãs e Jaçanãs, Pintos, Frangos e Galinha-d'água; 


03. Socó-yobi e Guaratingaçú, Aves Azuis e Branca das Águas; 


04. Ieende-ku-homoechi bae na doyé, A Garça e a Capivara; 


05. Pará-'y-pyrî e Ariramba, Aves Mergulhadoras e Pescadoras;


06. Wãmyhé Doicli, A Soberba da Traíra; 


07. Acaraçu e a Piranha, Os Peixes Aguçados;


08. Mandi-amarelo e Bagre-capadinho, A Disputa das Águas;


09. Guiápi e Guiraápi, O Rato e o Pássaro do Arroz; 


10. Quiriquiri e o Socó, As Aves Caçadora e a Pescadora. 


Glossário Indígena ...................................... 89


Apêndices ................................................. 95


Dados Biográficos do Autor ......................... 103


Orelha do Livro ........................................ 109





📜 PREFÁCIO



Este livro nasce da força espiritual que acompanha o povo Kariri-Xocó desde tempos imemoriais. Cada fábula aqui reunida carrega o sopro da tradição oral, que floresce nas aldeias como eco dos antigos, guardiões invisíveis que continuam caminhando conosco ao longo das margens do Opará.


No mundo indígena, contar histórias é um gesto sagrado. Não é apenas entretenimento, mas um ato de memória, ensinamento e resistência. As palavras expressas neste volume pertencem à linhagem de vozes que atravessam gerações, moldando visões, caráteres e valores que sustentam a vida comunitária.


Ao longo destas páginas, o leitor encontrará seres espirituais, animais sábios, forças da natureza e mensagens profundas que dialogam com o coração. Cada fábula guarda um espírito próprio, um ensinamento antigo que renasce em forma de narrativa para continuar vivendo.


Este livro é, portanto, mais do que literatura.

É um documento vivo, um testemunho da continuidade cultural Kariri-Xocó e uma ponte entre mundos — o mundo de nossos ancestrais e o mundo presente, que ainda precisa aprender a ouvir a natureza.


Que estas palavras encontrem caminhos de luz em quem as acolher.





📜 APRESENTAÇÃO



Apresento ao leitor mais um volume da coletânea WOROBÜYÉ – FÁBULAS KARIRI-XOCÓ, dedicado aos Guardiões das Lagoas do Opará, seres espirituais e forças da natureza que habitam, inspiram e orientam a vida de meu povo.


Esta obra integra um projeto contínuo de preservação cultural, cujo propósito é registrar e fortalecer a tradição oral Kariri-Xocó, valorizando a memória dos antigos e oferecendo às novas gerações um espelho de sua identidade.


Cada fábula foi escrita com o mesmo respeito que se tem ao sentar-se em roda à beira do fogo, escutando o mais velho da aldeia narrar histórias que iluminam o caminho.

Aqui, o leitor encontra simbolismos, mensagens e reflexões que dialogam com a ancestralidade, com a espiritualidade e com a sabedoria da vida simples e profunda da aldeia.


Que estas histórias reforcem a importância de proteger as águas, as matas, os seres e os encantos que guardam a história do Opará.

E que inspirem leitores de todos os cantos a valorizar e respeitar a riqueza dos povos originários do Brasil.





📜 INTRODUÇÃO



As fábulas deste volume nasceram da escuta atenta das águas das lagoas sagradas do Opará, lugares onde a espiritualidade Kariri-Xocó se manifesta com força e delicadeza. A natureza é a grande mestra do povo indígena, e dela surgem histórias que orientam a vida, mostram o caminho correto e ensinam o valor da harmonia.


Este livro reúne narrativas que dialogam com temas como coragem, respeito, equilíbrio espiritual, convivência entre mundos e responsabilidade com a terra. Em cada fábula, personagens humanos, animais e seres espirituais se entrelaçam, transmitindo lições que atravessam fronteiras culturais.


A linguagem aqui usada preserva o encantamento que caracteriza a tradição oral, mantendo a simplicidade poética que brota do cotidiano da aldeia. As histórias são sementes lançadas no tempo, cada uma com seu espírito e singularidade.


Que estas fábulas encontrem ressonância no coração de quem lê, e que possam fortalecer o elo entre passado, presente e futuro — como um rio que nunca deixa de correr.





📜 FÁBULAS  ( 01 A 10 )




01. O IRERÊ E A MARRECA-OVEIRA, GUARDIÃS DA LAGOA DO POVO 

 




A Fábula das Guardiãs dos Lagos



Num tempo em que as águas eram mais limpas e as matas mais fartas, um povo indígena vivia em harmonia com a Lagoa Grande. Essa lagoa não era apenas fonte de alimento, mas também de histórias e ensinamentos passados de geração em geração. Lá viviam o Irerê, com seu canto que avisava sobre as chuvas, e a Marreca-oveira, viajante incansável que trazia notícias de terras distantes.


Certo dia, o povo percebeu que a lagoa estava secando mais cedo do que o habitual. Os peixes rareavam e as margens estavam cobertas de lama. O Irerê chamou a Marreca-oveira e disse:


— Minha amiga, as águas estão tristes. Se continuarem assim, não teremos onde criar nossos filhotes.


A Marreca-oveira respondeu:


— Eu viajo por muitas lagoas e já vi esse mal antes. Quando os homens esquecem de cuidar da água e caçam sem medida, o espírito da Lagoa se afasta.


O cacique da aldeia, ao ouvir o diálogo das aves, reuniu os anciãos. Eles lembraram que, desde tempos antigos, havia um pacto: só caçar o que fosse necessário e sempre devolver à natureza mais do que se tirava.


Inspiradas, as crianças passaram a limpar as margens da lagoa, os pescadores respeitaram os tempos de defeso, e os caçadores só abatiam aves quando o alimento da aldeia era escasso.


Com o tempo, as chuvas voltaram e a Lagoa Grande encheu novamente. O Irerê voltou a cantar suas notas de chuva e a Marreca-oveira partia e regressava, trazendo notícias de que a harmonia havia sido restaurada.


Moral da história


Quem cuida da água e respeita a vida garante não só o alimento do presente, mas o canto e o voo para as gerações que virão.


Simbolismo indígena presente


Irerê → mensageiro das chuvas e guardião local.


Marreca-oveira → ponte entre terras e culturas.


Lagoa → símbolo de abundância, vida e conexão espiritual.


Povo indígena → guardião da memória e das regras sagradas de uso da natureza.





02. SANÃS E JAÇANÃS, PINTOS, FRANGOS E GALINHA-D'ÁGUA 





A Fábula de Aves Aquáticas 



No coração do brejo, onde o sol fazia brilhar as águas e os capins dançavam ao vento, viviam três aves muito diferentes: a Sanã, o Franguinho-d’água e a Jaçanã.


A Sanã, pequena e ligeira, era conhecida por seu canto barulhento de “turu-turu”, que ecoava sem parar pelas margens. Gostava de se exibir e acreditava que sua voz era a mais importante do brejo.


O Franguinho-d’água, esperto e curioso, vivia a procurar alimento em todos os cantos. Se precisava, tirava larvas do estrume do gado ou até enfrentava pequenas cobras-d’água. Era astuto e sabia se virar em qualquer situação.


A Jaçanã, elegante e atenta, caminhava sobre a vegetação flutuante como se fosse dona do brejo. Cuidava dos ninhos e ensinava seus filhotes a se equilibrar sobre as folhas largas, mantendo sempre o olhar alerta para qualquer perigo.


Certo dia, um gavião sobrevoou o brejo.


— Turu-turu! Turu-turu! — gritava a Sanã, sem perceber que chamava a atenção do predador.


O Franguinho, ao notar a sombra no céu, correu para se esconder entre a lama e as touceiras de capim.


Já a Jaçanã, firme e corajosa, espalhou seus filhotes pela vegetação e, com seu canto forte e repetido, confundiu o gavião, que não conseguiu distinguir se era um bando imenso ou apenas uma ave.


Cansado da confusão, o gavião desistiu da caçada e voou para longe.


A Sanã, envergonhada por ter atraído o perigo com seu barulho, abaixou o bico. O Franguinho, sujo de lama, riu de si mesmo, mas agradeceu por estar vivo. A Jaçanã, com serenidade, apenas disse:


— No brejo, cada um tem seu valor, mas é o cuidado e a vigilância que sustentam a vida.


Moral da fábula:


“Quem fala demais atrai perigos, quem observa protege a todos. Mas só a união das diferenças mantém o equilíbrio do brejo.”






03. SOCÓ-YOBI E GUARATINGAÇU, AVES AZUIS E BRANCA DAS ÁGUAS 





A Fábula dos Socós Azuis e Garça Branca



Às margens de um grande rio da floresta, viviam três aves muito diferentes entre si.


O Socó-Yobi, tímido e azul, preferia esconder-se nos cipós e nas sombras da mata, onde pescava em silêncio, quase invisível.


A Garça-Azul-Grande, imponente e ousada, vivia caçando em águas abertas, roubando peixes de outras aves e orgulhando-se de sua força.


Já a Guaratingaçú, a garça-branca-grande, brilhava ao sol como um raio de luz. Alta e elegante, todos a viam de longe, e até os homens a desenharam em uma moeda de valor.


Certo dia, ao entardecer, as três aves se encontraram em uma lagoa de águas rasas.


— Eu sou a melhor caçadora! — disse a Garça-Azul-Grande. — Posso pegar desde pequenos peixes até grandes animais. Nada me escapa!


— Mas eu, com minha beleza branca, represento a pureza das águas — respondeu Guaratingaçú. — Os homens me admiram, me respeitam e até me colocaram em seus tesouros.


O tímido Socó-Yobi apenas observava, silencioso, escondido entre os galhos baixos da margem. Não queria disputar, apenas viver em paz.


Enquanto as duas aves discutiam, a lagoa foi ficando agitada. Barcos de pescadores chegaram, lançando redes e espantando os peixes.


A Garça-Azul-Grande tentou mergulhar, mas as águas se turvaram. Guaratingaçú, com seu porte alto, logo foi avistada e espantada pelos homens. Nenhuma conseguiu alimento.


Foi então que, em silêncio, Socó-Yobi entrou entre as raízes e cipós, onde as redes não alcançavam. Paciente, esperou. Logo um cardume se aproximou, escondido da confusão. Com um movimento rápido, ele pescou e se alimentou sem ser notado.


Quando saiu do breu da mata com o bico ainda úmido, as outras aves o olharam com espanto.


— Como pode ter pescado, se nada havia nas águas abertas? — perguntou Guaratingaçú.


— A força e a beleza chamam atenção, mas é no silêncio e na paciência que a vida se renova — respondeu Socó-Yobi.


As duas aves, envergonhadas, compreenderam que cada uma tinha seu valor, mas que a floresta também recompensa a humildade e o equilíbrio.


Moral da fábula:


Nem sempre a força ou a beleza garantem a vitória. Muitas vezes, é o silêncio e a paciência que trazem o verdadeiro alimento da vida.





04. IEENDE-KU-HOMOECHI BAE NA DOYÉ A GARÇA E A CAPIVARA 





A Fábula da Garça e a Capivara 



Nas margens sagradas do rio Opará, junto às várzeas alagadas de Itiúba, onde o céu beija a terra e os ventos sopram os cantos dos antigos, viviam muitos seres: aves chamadas ieendeá, animais chamados keruá, e peixes chamados wãmyá.


Entre todos esses seres, dois tornaram-se conhecidos por sua amizade: Ieende-ku-homoechi, a Garça-branca-de-pescoço-comprido, e Doyé, a Capivara serena das águas.


Certo dia, enquanto o sol dourava o espelho do rio, a garça pousou perto da capivara, que descansava entre os capins molhados.


— Olá, amiga Doyé, grasnou a garça com gentileza. Precisas de alguma coisa?


A capivara levantou a cabeça com gratidão no olhar e respondeu:


— Sim, dona garça. Os carrapatos estão a me incomodar. Não alcanço todos com meus dentes.


A garça, com seu bico longo e preciso, começou a retirar os carrapatos do dorso da capivara. Um a um, bicava e comia, enquanto a capivara suspirava aliviada.


Desde aquele dia, todos os animais da várzea viam a garça e a capivara sempre juntas. Uma ajudava a outra. A garça alimentava-se com os parasitas, e a capivara mantinha-se limpa e saudável. Era uma parceria de sabedoria e respeito.


E assim a floresta aprendeu:


“Na natureza, ninguém caminha sozinho. A amizade verdadeira nasce da ajuda mútua e do equilíbrio com o outro.”





05. PARÁ-'Y-PYRÎ E ARIRAMBA, AVES MERGULHADORAS E PESCADORAS 





A Fábula das Aves Mergulhadoras 



Nos tempos antigos, quando os rios ainda falavam com os homens e as florestas guardavam segredos profundos, viviam duas aves muito especiais.


Uma delas era Pará-’y-pyrî, o Pato-mergulhão. Chamavam-no assim porque tinha o dom de sumir dentro d’água, mergulhando tão fundo que parecia desaparecer. Ele conhecia os segredos escondidos no leito do rio e era guardião da pureza das águas cristalinas.


A outra era Ariramba, o Martim-pescador-grande. Seu nome lembrava o som de suas asas e de sua voz, pois era uma ave ruidosa que anunciava sua presença nos ares. Ariramba observava de cima, com olhos atentos, e avisava sobre tudo o que acontecia às margens do rio.


Durante muitos ciclos, Pará-’y-pyrî e Ariramba viviam em harmonia, cada qual cumprindo sua missão. Mas os homens, esquecidos de sua aliança com a natureza, começaram a sujar o rio, pescar além da medida e ferir as matas. O rio adoeceu, os peixes sumiram, e o povo começou a sentir fome.


Foi então que Pará-’y-pyrî mergulhou mais fundo do que nunca. Nas pedras do fundo do rio, encontrou a memória da primeira água, pura e cintilante como cristal. Ele a trouxe em seu bico, mas sabia que sozinho não poderia salvar o povo.


Ariramba, que o observava do alto, abriu suas asas e com forte ruído percorreu as margens, anunciando:


— Ouçam, filhos da terra! O rio pede respeito, o peixe pede cuidado, e a floresta pede silêncio. Se não cuidarem do que alimenta, não terão fartura.


O povo então compreendeu. Passaram a pescar apenas o necessário, a não envenenar as águas, a respeitar o tempo dos peixes e a proteger as margens. Aos poucos, o rio recuperou sua força, os peixes voltaram, e a fartura renasceu.


E assim, até hoje, contam os antigos que Pará-’y-pyrî mergulha para guardar o segredo da vida, e Ariramba voa para lembrar os homens de sua aliança com as águas.


Quem escuta essa história aprende que a abundância só existe quando há equilíbrio entre o silêncio das profundezas e o canto que ressoa nos céus.


✨ Essa fábula pode ser contada em roda de histórias, como memória viva, ou registrada em calendário cultural. 





06. WÃMYHÉ DOICLI, A SOBERBA DA TRAÍRA  





Uma Fábula da Soberba da Traíra 



Antigamente, quando as águas do Rio Opará corriam livres e fartas, os peixes — chamados wãmyá — nadavam felizes, brincavam entre as pedras e se reproduziam no leito natural do rio, o antse.


Tudo era equilíbrio e harmonia.


Mas com o tempo, os homens chegaram com suas grandes construções de concreto e ferro. Levantaram barreiras que chamamos maecrótçawo — "cerca de pedra que corta o rio". As águas deixaram de correr livres e muitas lagoas começaram a secar. O sofrimento dos peixes foi grande.


Dentre todos, havia um peixe conhecido por sua mordida e arrogância: a Traíra, a quem chamamos Wãmyhé.


Quando os outros peixes reclamavam da falta de água, Wãmyhé zombava:


— “Ah, vocês são fracos! Isso é só uma poça! Eu vivo bem até na lama!”


Com sua boca cheia de dentes e orgulho, ria do sofrimento alheio.


Mas um tempo depois, a lagoa Dzurió, onde Wãmyhé morava, secou por completo. Sozinha e presa na lama, sem forças, a Traíra gritou por socorro.


Foi então que apareceu Sãmbá, o velho e sábio cágado.


— “Ora, Wãmyhé... onde está toda aquela força? Eu me lembro de você zombando dos outros peixes, chamando-os de fracos... E agora?”


Wãmyhé, envergonhada, baixou os olhos.


Apesar de tudo, Sãmbá, com seu coração bondoso, se penalizou. Cuidadosamente, retirou a Traíra da lama e a carregou de volta para o rio.


Ao sentir a água fresca novamente, Wãmyhé agradeceu:


— “Obrigado, Sãmbá. Se não fosse você, eu não teria sobrevivido.”


O cágado sorriu e respondeu com calma:


— “Por isso, Wãmyhé, nunca zombe da dor dos outros. O mundo gira, e um dia, você pode precisar de quem desprezou.”


Moral da história:


Quem se envaidece da própria força e zomba da fraqueza alheia pode um dia cair — e depender da compaixão de quem humilhou





07. ACARAÇU E A PIRANHA, OS PEIXES AGUÇADOS 





A Fábula dos Peixes Aguçados 



Nas águas profundas do grande rio, vivia o Acaraçu, conhecido por muitos nomes. Forte, com esporões no lombo, era chamado de o lutador do rio, pois nenhum predador ousava enfrentá-lo sem risco de se ferir.


Certa manhã, nadando pelas correntezas, o Acaraçu encontrou a Piranha-vermelha, famosa por seus dentes afiados e por atacar os peixes descuidados.


— Ora, ora, se não é o Acaraçu, o defensor dos fracos! — zombou a Piranha. — Será que sua coragem resiste aos meus dentes?


O Acaraçu, sereno, respondeu:


— Piranha, não busco briga, mas não fujo dela. Meus espinhos não são para atacar, mas para proteger.


A Piranha deu uma gargalhada de água e espuma:


— Quem protege acaba sendo o primeiro a cair! Melhor ser predadora do que guardião.


Mas quando se lançou contra o Acaraçu, recebeu um golpe certeiro dos esporões do peixe lutador. Ferida, recuou rapidamente, percebendo que a força não estava só nos dentes, mas também na defesa firme e sábia de quem sabe lutar apenas quando é preciso.


Envergonhada, a Piranha afastou-se, aprendendo que nem sempre o mais temido é o mais vitorioso.


Moral da história:


A verdadeira força não está em atacar sem pensar, mas em saber se defender com coragem e sabedoria.






08. MANDI-AMARELO E BAGRE-CAPADINHO, A DISPUTA DAS ÁGUAS 





A Fábula do Mandi e o Capadinho



Conta-se que, num tempo em que os rios falavam com o mar, surgiu uma contenda entre dois peixes famosos.


De um lado vinha o Mandi-amarelo, peixe de carne clara e macia, orgulho dos rios do interior.


Do outro, o Bagre-capadinho, guardião dos manguezais, companheiro fiel do povo litorâneo.


O Mandi falou primeiro, cheio de vaidade:

— Nos rios caudalosos, sou festejado!

Minha carne branca entra em caldeiradas,

nas mesas de fé sou sempre lembrado.

Sou o peixe da Semana Santa,

quem me prova nunca me esquece.


Mas o Bagre não se calou e respondeu firme:

— Eu venho das águas salobras do mangue,

sou sustento diário de pescador humilde.

Na fritada com farinha, sou rei;

no ensopado com coco, ninguém me vence!

Não vivo apenas em festa —

sou pão de cada dia para quem precisa.


Os dois discutiram tanto que o povo se reuniu.

Uns defendiam o Mandi, peixe de fé e tradição.

Outros exaltavam o Bagre, peixe do povo e do chão.


Então, uma anciã se levantou com voz serena:

— Não briguem, filhos das águas.

O rio corre para o mar, e o mar devolve vida ao rio.

O povo precisa de ambos:

o Mandi, para as celebrações da alma,

e o Bagre, para a força do dia a dia.


Assim os dois entenderam.

A disputa virou respeito,

e de lá para cá aprenderam

que cada um tem seu lugar no coração popular.



Moral da história:


Na mesa da vida, há espaço para todos os sabores.

A grandeza não está em ser o mais querido,

mas em saber reconhecer o valor do outro.





09. GUAIÁPI E GUIRAÁPI, O RATO E O PÁSSARO DO ARROZ 





A Fábula do Rato e o Pássaro do Arroz 



Há muito tempo, nas florestas sombreadas e cobertas por altos dosséis, vivia Guaiápi, o rato do capim. Era pequeno, ágil e astuto, sempre atento às sementes que a mata lhe oferecia. Entre folhas caídas e frutos vermelhos, corria sem descanso, alimentando-se do que a natureza lhe dava.


Não muito longe dali, nos brejos e taboais, vivia Guiráapi, o pássaro-do-capim. Suas penas negras brilhavam ao sol e, no peito, trazia a marca vermelha de fogo, como se carregasse o coração da mata. Ele cantava alegre, vivendo em bandos, alimentando-se de grãos, insetos e frutos.


Por muitos ciclos, Guaiápi e Guiráapi não se encontravam, cada qual em seu mundo de florestas e águas. Mas um dia, os homens chegaram. Cortaram árvores, queimaram capinzais, secaram os brejos. O alimento natural começou a faltar.


— O que será de nós? — chorava Guaiápi. — As sementes da mata estão rareando, e até os frutos vermelhos sumiram.


— Também sofro — respondeu Guiráapi. — Onde havia água e taboal, agora há fogo e fumaça.


Os homens, contudo, trouxeram um novo alimento, vindo de terras distantes: o arroz. Plantaram-no em grandes campos alagados, onde antes a floresta e o brejo reinavam.


Guaiápi, faminto, aproximou-se e descobriu grãos fartos espalhados pelo chão.


— Que sementes são estas? Não vêm da mata, mas alimentam bem!


Guiráapi, curioso, voou baixo e bicou um punhado.


— São duras e diferentes… mas saborosas! Talvez este seja o presente que a terra nos dá para sobreviver.


Assim, o rato e o pássaro passaram a visitar os campos dos homens. De inimigos naturais, tornaram-se companheiros de banquete, dividindo o arroz que não lhes pertencia. Os homens, porém, os chamaram de praga e tentaram expulsá-los.


Certa tarde, enquanto comiam juntos, Guaiápi disse a Guiráapi:


— Não fomos nós que mudamos a terra. Foram os homens que mudaram nossos caminhos. Se comemos o arroz, é porque eles nos tiraram o capim e as sementes da mata.


Guiráapi, erguendo o peito vermelho, respondeu:


— Sim, irmão. Somos parte da mesma história. Não somos pragas, somos sobreviventes.


E assim, entre plantações e perseguições, Guaiápi e Guiráapi aprenderam a dividir não apenas os grãos, mas também a mesma sorte. Unidos pelo destino, lembravam em silêncio que um dia foram filhos livres da floresta e do brejo, e que ainda guardavam em seus nomes o sopro antigo do Tupi:


Guaiápi, o roedor do capim. Guiráapi, o pássaro do capim.


🌱 Moral da Fábula:


Quando o homem muda a terra para satisfazer sua fome, muda também o destino das criaturas.


O que chamamos de praga pode ser apenas sobrevivência.





10. QUIRIQUIRI E O SOCÓ, AS AVES CAÇADORA E A PESCADORA 





A Fábula do Gaviãozinho e o Socó 



No entardecer de um rio largo, o Socó permanecia imóvel, como se fosse parte das árvores que se refletiam na água. Esperava o momento certo: um pequeno peixe desavisado, um movimento leve, e então seu bico certeiro romperia o silêncio das águas.


De repente, o céu foi cortado pelo voo rápido do Quiriquiri, o gaviãozinho caçador. Ele pousou num galho próximo e, curioso, falou:


— Socó, por que perdes tanto tempo parado? Eu, com minhas asas ligeiras e minha vista aguçada, caço em instantes o que preciso.


O Socó ergueu o pescoço devagar, sem se apressar:


— Cada um tem seu modo, pequeno falcão. Eu aprendi com as águas que a paciência também é uma força.


O Quiriquiri riu:


— Força é a velocidade! Quem se move rápido conquista o mundo antes dos outros.


Nesse momento, um cardume passou rente à superfície. O Quiriquiri lançou-se do galho, veloz como flecha, mas suas garras não alcançaram os peixes escondidos sob a água. Voltou de asas vazias.


O Socó, firme no mesmo lugar, abaixou o bico num gesto certeiro e, sem esforço, pescou um peixe reluzente.


— Vês, Quiriquiri? A terra, o ar e a água ensinam caminhos diferentes. A tua pressa é útil para caçar no campo, mas não te serve nas águas profundas.


O pequeno falcão refletiu, e então sorriu com humildade:


— Tens razão, Socó. Cada um carrega sua sabedoria. Eu sou o caçador do ar; tu és o pescador da água. Juntos, mostramos que a vida é feita de muitos modos de vencer a fome e o silêncio.


E assim, desde aquele dia, o Quiriquiri e o Socó, quando se encontram, não disputam mais. O vento e a correnteza lembram sempre que a força pode estar no movimento rápido ou na paciência firme, mas ambas têm valor.


✨ Moral:


A pressa e a paciência são forças diferentes. Nenhuma é melhor que a outra: cada ser deve honrar o dom que lhe foi dado pela natureza.




Autor das Fábulas: Nhenety Kariri-Xocó 





📘 APÊNDICES



Apêndice A — Sobre os Guardiões das Lagoas do Opará


As lagoas do Opará são espaços de profunda espiritualidade para o povo Kariri-Xocó. Cada lagoa guarda um espírito ancestral que protege suas águas, suas margens, seus seres e seus mistérios.

Os Guardiões podem se manifestar em forma de animais, elementos naturais ou presenças luminosas que orientam e alertam.


Seu papel principal é manter o equilíbrio entre o mundo visível e o invisível, lembrando à comunidade que tudo o que existe é interligado.


Apêndice B — O Papel das Fábulas na Tradição Oral Kariri-Xocó


As fábulas funcionam como conselhos, ensinamentos, advertências e celebração da vida.

Elas são contadas ao entardecer, nas caminhadas pela mata, nas rodas de conversa e nas cerimônias.

Além de transmitir sabedoria, reforçam laços familiares, mostram caminhos éticos e preservam a memória dos ancestrais.


Apêndice C — O Opará na Cosmologia Kariri-Xocó


O Opará (Rio São Francisco) é mais do que um rio: é um ser espiritual, um caminho vivo que liga mundos e pessoas.

Sua água é símbolo de cura, força, continuidade e conexão com os ancestrais.

As lagoas ligadas ao Opará são consideradas extensões desse grande espírito, locais de passagem e morada de forças que ressoam desde tempos antigos.





📘 GLOSSÁRIO INDÍGENA



Ancestrais – Espíritos dos antigos, protetores e guias das gerações vivas.


Antepassados / Espíritos – Seres espirituais presentes na cosmologia indígena, guardiões e mensageiros.


Ariramba – O Martim-pescador-grande.


Doyé – A Capivara, maior roedor do mundo. 


Dzurió – Lagoa do rio Opará. 


Forças da Mata – Espíritos, animais e energias que habitam os caminhos e protegem os povos da floresta.


Ieendeá – O nome de aves na língua Kariri 


Ieende-ku-homoechi – A  Garça-branca-de-pescoço-comprido.


 Irerê –  O pato selvagem 


Jaçanã – A ave silvestre de terras alagadas.


Guaiápi – O rato do capim.


Guiráapi – O pássaro-do-capim, também conhecido como o pássaro-do-arroz.


Guaratingaçú – A garça-branca-grande.


Kariri-Xocó – Nome do povo indígena que habita a região do baixo São Francisco, em Alagoas.


Keruá – Animais 


Maecrótçawo — A "cerca de pedra que corta o rio", barragem, hidroelétrica, na língua Kariri-Xocó. 


Opará – Nome indígena do Rio São Francisco; significa “rio-mar”, “caminho das águas sagradas”.


Pajé – Líder espiritual da aldeia, responsável por rituais, curas e conexões com o mundo invisível.


Pará-’y-pyrî – O Pato-mergulhão.


Quiriquiri – O gaviãozinho caçador.


Sãmbá – O cágado, jabuti, na língua Kariri. 


Sanã – O Franguinho-d’água, ave silvestre dos lagos. 


Socó-Yobi – A ave aquática de coloração azul. 


Toré – Ritual sagrado realizado com danças, cantos e cantorias; celebração da força ancestral.


Wãmyá — Os peixes. 


Worobüyé – Caminho dos ensinamentos; palavra que remete a saberes transmitidos.


Wãmyhé –  O peixe Traíra. 





📘 DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR



Nhenety Kariri-Xocó

Escritor, contador de histórias, guardião da memória e da espiritualidade do povo Kariri-Xocó de Porto Real do Colégio (AL).

Dedica sua vida a registrar e fortalecer a tradição oral de seu povo, transformando saberes antigos em narrativas que celebram a cultura, a identidade e a espiritualidade indígena.


Seus livros, contos, cordéis e fábulas dialogam com a ancestralidade, valorizam os seres espirituais do Opará e honram o legado dos antigos.

O autor também mantém o blog kxnhenety.blogspot.com, onde publica suas reflexões, histórias e pesquisas culturais.


Nhenety escreve como quem caminha com os ancestrais. Suas palavras são sementes lançadas nos caminhos da memória — sementes que florescem no coração de quem lê.





📘 ORELHA DO LIVRO



WOROBÜYÉ – FÁBULAS KARIRI-XOCÓ, Os Guardiões das Lagoas do Opará – Volume 9

é uma celebração viva da tradição oral do povo Kariri-Xocó.

Neste volume, o autor Nhenety Kariri-Xocó apresenta fábulas que brotam das águas sagradas, das matas antigas e dos seres que habitam o invisível.


Cada história carrega um ensinamento profundo, revelando valores como respeito, equilíbrio, coragem e conexão espiritual.

Os Guardiões das lagoas — seres de luz, animais sábios e espíritos antigos — se manifestam através de narrativas que misturam poesia e sabedoria ancestral.


Este livro é um presente para quem deseja conhecer o universo indígena não apenas pela visão acadêmica, mas pela voz de quem vive, sente e honra a tradição.

Uma obra que toca o coração e desperta o olhar para o sagrado que existe na natureza e em nós.





Autor: Nhenety Kariri-Xocó 







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