domingo, 14 de dezembro de 2025

WOROBÜYÉ – FÁBULAS KARIRI-XOCÓ, A Convivência dos Seres Humanos e a Vida Silvestre, Volume 11 – Coletânea, Nhenety Kariri-Xocó






📜 FALSA FOLHA DE ROSTO



WOROBÜYÉ – FÁBULAS KARIRI-XOCÓ

A Convivência dos Seres Humanos e a Vida Silvestre

Volume 11 – Coletânea


Nhenety Kariri-Xocó





📜 VERSO DA FALSA FOLHA DE ROSTO



Esta obra é fruto da tradição oral indígena Kariri-Xocó, transcrita, recriada e preservada por meio da escrita literária, respeitando a memória ancestral, os valores culturais e a convivência harmoniosa entre os seres humanos e a vida silvestre.


Todos os direitos autorais pertencem ao autor.





📜 FOLHA DE ROSTO (FRONTISPÍCIO)



WOROBÜYÉ – FÁBULAS KARIRI-XOCÓ

A Convivência dos Seres Humanos e a Vida Silvestre

Volume 11 – Coletânea


Autor: Nhenety Kariri-Xocó

Povo Kariri-Xocó – Porto Real do Colégio (AL)


Brasil, 2025





📜 FICHA CATALOGÁFICA (MODELO)



KARIRI-XOCÓ, Nhenety.

Worobüyé – Fábulas Kariri-Xocó: a convivência dos seres humanos e a vida silvestre. – Volume 11 – Coletânea / Nhenety Kariri-Xocó. – Brasil, 2025.


Livro indígena. Literatura oral. Fábulas indígenas. Cultura Kariri-Xocó. Relação homem-natureza.





📜 DEDICATÓRIA



Dedico este livro aos Espíritos Ancestrais do meu povo Kariri-Xocó, aos mais velhos guardiões da memória, às crianças que mantêm viva a escuta da floresta e a todos os seres visíveis e invisíveis que ensinam a convivência e o respeito pela vida.





📜 AGRADECIMENTOS 



Agradeço, antes de tudo, aos meus ancestrais Kariri-Xocó, guardiões do tempo, da palavra e da memória, que me ensinaram a escutar a natureza como quem escuta um parente antigo. Agradeço aos mais velhos da aldeia, fontes vivas de sabedoria, que mantêm acesa a chama da tradição oral.


Agradeço às crianças, que inspiram a pureza do olhar e a continuidade do contar histórias. Aos animais, visíveis e invisíveis, silvestres e domésticos, que são mestres silenciosos da convivência e do equilíbrio.


Agradeço ao povo indígena do Brasil, que resiste, ensina e reafirma diariamente que a terra não é mercadoria, mas vida. Agradeço também aos leitores, educadores, pesquisadores e amantes da cultura indígena, que acolhem estas fábulas como sementes de reflexão e respeito.





📜 EPÍGRAFE 



"A floresta fala, os animais ensinam e o ser humano aprende quando escuta com o coração."

— Sabedoria indígena





📜 SUMÁRIO/ÍNDICE 



Dedicatória


Agradecimentos


Epígrafe


Prefácio


Apresentação


Introdução



Fábulas ( 01 a 11 )



01. Keruá Uanieá, Animais Criados na Aldeia Indígena; 


02. Krêre bae Uidzi, O Papagaio Falante e a Menina; 


03. Jaguatirica e o Tetéu; 


04. Preá, Mocó e Çauiá, Os Roedores Silvestre e o Doméstico; 


05. Tanhyra Tîbíra e a Saúva, Os Comedores de Folhas; 


06. Erí Kukõj Bae a Bruan, A Fábula do Macaco e a Ema; 


07. Táybygaraí e Táîagûara’i, A Formiga-leão e a Formiga-oncinha; 


08. Besí Bucuté, A Fábula do Cachorro Sem Lar; 


09. Erí Buké Bae Erí Kaplan, A Fábula do Veado e do Jabuti; 


10. Tucura e Y-apuã, O Gafanhotão e a Sopradora-d’Água; 


11. Keríá Kutoabá, Os Animais Silvestres Livres. 



Apêndices


Glossário Kariri-Xocó


Dados Biográficos do Autor


Orelha do Livro





📜 PREFÁCIO


Este livro nasce do chão antigo onde os pés indígenas caminham desde antes da escrita.

As fábulas aqui reunidas não são apenas histórias para ensinar crianças; são memórias vivas, guardadas na oralidade, no convívio diário entre humanos, animais, rios, matas e espíritos do tempo.


Em WOROBÜYÉ – Fábulas Kariri-Xocó, Volume 11, o autor nos conduz por um universo onde os animais falam, sentem, ensinam e convivem. Não como fantasia vazia, mas como expressão do pensamento indígena, onde todos os seres possuem palavra, função e espírito.


Este livro é um chamado à escuta.

Escutar a floresta.

Escutar os animais.

Escutar os povos originários.


Que cada leitor compreenda que a moral destas fábulas não está apenas no fim de cada história, mas no modo de viver que elas propõem: respeito, equilíbrio, convivência e amor à vida.





📜 APRESENTAÇÃO



A coletânea WOROBÜYÉ – Fábulas Kariri-Xocó apresenta narrativas inspiradas na tradição oral indígena, recriadas pela sensibilidade contemporânea de Nhenety Kariri-Xocó, contador de histórias do povo Kariri-Xocó, do Baixo São Francisco.


As fábulas aqui reunidas dialogam com crianças, jovens e adultos, pois tratam de temas universais:

– convivência entre os seres;

– respeito à natureza;

– ética, humildade e responsabilidade;

– liberdade e proteção da vida silvestre.


Cada texto carrega palavras indígenas, personagens da fauna brasileira e ensinamentos que ultrapassam o tempo. O livro se propõe não apenas a entreter, mas a educar para o bem viver, fortalecendo o elo entre humanidade e natureza.





📜 INTRODUÇÃO



Desde os tempos antigos, os povos indígenas ensinam por meio das histórias.

A fábula é uma dessas formas ancestrais de ensinar sem impor, corrigir sem ferir e orientar sem dominar.


Neste Volume 11, as fábulas revelam a convivência entre seres humanos e a vida silvestre, mostrando que nenhum ser existe sozinho. Cada animal, pequeno ou grande, doméstico ou livre, possui um papel essencial no equilíbrio do mundo.


O autor reafirma, por meio da palavra escrita, aquilo que sempre foi dito ao redor do fogo:

quem respeita a natureza, permanece;

quem rompe o equilíbrio, perde o caminho.





📜 FÁBULAS  ( 01 A 11 )




01. KERUÁ UANIEÁ, ANIMAIS CRIADOS NA ALDEIA INDÍGENA 





Uma Fábula de Amor aos Animais 



Era uma vez, na aldeia encantada de Natiá, um círculo de casas coletivas chamado erá, construídas com sabedoria dos antigos e voltadas para o grande terreiro Iworó, onde os passos da vida ecoavam no modo tradicional nhenetí. Ali, tudo vivia em harmonia com as árvores sutuá, que sussurravam histórias ao vento.


Nessa aldeia moravam não só os parentes humanos, mas também os parentes de penas, de pelos e de casco. Araras de mil cores voavam sobre os tetos de palha. Papagaios tagarelas repetiam as falas dos pequenos. Macacos brincavam de esconder com as crianças, enquanto o quati curioso vasculhava panelas e a cutia ligeira fazia correr os pequenos guerreiros.


Tinha ainda os jabutis pacientes e os patinhos amarelinhos, que andavam desajeitados como quem dança ao som da vida. Os animais não estavam presos — viviam soltos, como os ventos que sopravam entre os troncos do mato. As crianças falavam com os bichos, e os bichos respondiam com gestos, olhares e sons cheios de afeto.


Enquanto os homens iam pescar e caçar, as mulheres cuidavam da casa e do alimento, e os pequenos viviam entre risos, brincadeiras e histórias vivas com os animais.


Um dia, chegaram os colonizadores, trazendo novos animais em suas canoas e carregamentos: galinhas cacarejantes, bodes que teimavam em pular cercas, ovelhas macias como nuvem, porcos rosados, perus barulhentos e até um pavão que parecia carregar um pedaço do arco-íris em sua cauda.


Os antigos olharam, os pequenos se encantaram, e a aldeia passou a acolher esses novos seres com o mesmo respeito dado aos primeiros. Mas entre todos os bichos que vieram e os que já viviam ali, o pato-do-mato era o mais antigo amigo do povo. Dizem os velhos que ele foi o primeiro a aceitar viver ao lado dos humanos, e até hoje faz parte das casas e dos quintais pelo Brasil afora.


Assim, entre voos e passos, entre penas e risadas, os animais da aldeia cresceram junto ao povo. E o ensinamento ficou:


"Todos os animais são importantes para nosso alimento, mas criar com amor é o que faz bem para a alma e para o corpo."


E assim termina essa fábula, que vive em cada aldeia, em cada criança, em cada bicho solto que ainda corre no terreiro da memória





02. KRÊRE BAE UIDZI, O PAPAGAIO FALANTE E A MENINA 





Uma Fábula do Papagaio e a Menina



Numa clareira onde a mata sussurra histórias antigas, entre galhos verdes e o som dos ventos das florestas do Brasil, vivia um papagaio-verdadeiro chamado Krêre, nome herdado do idioma ancestral dos Kariri sertanejos.


Krêre era mais que um simples papagaio. Era guardião de palavras, conhecedor de vozes e línguas que o tempo não apaga. Seu canto não imitava, ensinava.


Certo dia, uma menina curiosa chamada Uidzi, que vivia entre as árvores e os riachos, aproximou-se de seu amigo de penas verdes e olhos atentos. Com um sorriso nos lábios e o brilho da infância no olhar, perguntou:


— Krêre, você fala só a nossa língua?


O papagaio, ajeitando-se num galho iluminado pelo sol, respondeu com sabedoria:


— Sim, Uidzi, falo sua língua. Mas não apenas ela. Eu sou ave das florestas e dos povos. Falo ieendeá, a língua das aves, e toklikli, todas as línguas dos povos indígenas da América do Sul.


Na caatinga, na mata, nas aldeias do Kariri, do Tupi, do Guarani, do Xavante, do Kamayurá… Em cada canto onde vivem os povos da floresta, eu aprendi a linguagem de cada um. Pois onde há povo indígena, há também papagaios que ouvem, aprendem e falam.


Uidzi ficou maravilhada. Seus olhos se arregalaram como quem descobre um segredo da Terra. Com Krêre, aprendeu que os animais não apenas sentem, mas também compreendem. E quando há respeito e escuta verdadeira, até mesmo um papagaio pode nos ensinar sobre a grande teia da vida.


Desde então, a menina passou a escutar a natureza com mais atenção, pois entendeu que falar é pouco quando não se escuta o coração da floresta.


Moral da fábula:


A sabedoria da natureza fala em muitas línguas. Quem escuta com o coração, entende todas.





03. JAGUATIRICA E O TETÉU





A Fábula da Jaguatirica e o Tetéu 



Nas margens de um lago, em dia de calor, a Jaguatirica caminhava em silêncio. Seus olhos brilhavam atentos, pois avistara uma manada de veados. Preparava-se para o salto certeiro, quando, de repente, um grito ecoou pelo campo:


— Tetéééu! Tetéééu!


Era o Tetéu, o espanta-boiada, que voava baixo e alvoroçado. Ao ouvir o alarme, os veados dispararam em corrida, salvando-se do ataque.


A Jaguatirica, contrariada, rosnou:


— Por que fez isso, Tetéu? Estava com fome e espantaste a minha caça!


O pequeno vigia respondeu com firmeza:


— Não esqueças, amiga, que sou o guardião da Caipora. Cabe a mim avisar quando um predador quer caçar sem sua permissão. A floresta tem suas leis, e até mesmo os fortes precisam respeitar.


A Jaguatirica refletiu e, com humildade, disse:


— Tens razão, Tetéu. Da próxima vez, pedirei à Caipora, por meio de ti, a licença para caçar.


Assim, felino e ave fizeram um acordo. E desde aquele dia, sempre que a Jaguatirica rondava o campo, lembrava-se que, acima da força, existe o respeito que mantém a harmonia entre todos os seres.


Moral da Fábula


Mesmo os mais poderosos precisam aprender que a natureza vive em equilíbrio, e só há verdadeira força quando existe respeito e convivência.





04. PREÁ, MOCÓ E ÇAUIÁ, OS ROEDORES SILVESTRE E O DOMÉSTICO 





A Fábula dos Roedores Silvestres e o Doméstico 



Na imensidão da Caatinga, entre pedras quentes e arbustos espinhosos, vivia o Preá, pequeno e ligeiro, sempre atento aos caminhos que cruzavam sua toca. Seu nome, dado pelos antigos, significava “o que mora no caminho”, pois onde houvesse passagem entre pedras ou terras soltas, ali ele faria seu lar.


Certo dia, em meio ao silêncio do sertão, o Mocó, forte e resistente, surgiu arrastando galhos secos para se alimentar. Diferente do Preá, seu instinto era roer troncos e caules, sobrevivendo mesmo quando a chuva tardava em vir. Orgulhoso, dizia:


— Eu sou o verdadeiro filho da Caatinga! Se a água falta, eu resisto. Se a comida escasseia, eu arranjo.


O Preá, mais humilde, respondeu:


— Mas cada um de nós tem seu papel, amigo Mocó. Eu sou alimento para as aves e serpentes. Sem mim, o equilíbrio se quebraria.


Enquanto conversavam, ouviram um som estranho: uiii... uiii...


Era um pequeno ser arredondado, de olhos brilhantes, que se escondia atrás de uma pedra.


— Quem é você? — perguntou o Mocó, desconfiado.


O animalzinho respondeu tímido:


— Eu sou o Çauiá, o roedor doméstico, conhecido por Porquinho-da-índia, mas vim dos Andes, onde meus ancestrais viveram junto dos povos que nos criavam para alimento e companhia. Sou dócil e me escondo fácil, mas aprendi a viver ao lado dos humanos.


O Preá arregalou os olhos:


— Como pode um roedor viver tão próximo do homem sem medo?


O Çauiá explicou:


— O medo nunca me abandonou, mas descobri que a confiança também alimenta. Os humanos me dão cuidado, e em troca, ofereço minha docilidade.


O Mocó, sempre altivo, riu:


— Então você não sobreviveria aqui, entre pedras secas e predadores famintos!


Mas o Preá, pensativo, falou:


— Cada um de nós guarda uma sabedoria. Você, Mocó, conhece a resistência da seca. Eu, Preá, sei me esconder e sustentar os ciclos da natureza. E o Çauiá aprendeu a conviver com os homens, ensinando que até o menor ser pode despertar ternura.


O vento soprou entre os galhos retorcidos, e os três compreenderam que, embora diferentes, carregavam dentro de si a marca do equilíbrio: um vivia para a natureza, outro para a resistência, e o terceiro para a convivência.


Moral da Fábula:


Cada ser, silvestre ou doméstico, tem seu valor. A força da vida não está apenas em resistir ou se esconder, mas também em aprender a conviver.





05. TANHYRA TÎBÍRA E A SAÚVA, OS COMEDORES DE FOLHAS 





A Fábula do Gafanhoto e a Saúva



No coração do sertão, sob a sombra amarela de um ipê florido, viviam muitos seres em busca de alimento.


Um bando de Tanhyra Tîbíra, os gafanhotos-soldados, pousou nos galhos verdes e começou a devorar as folhas tenras. Saltavam de um lado a outro, armados de mandíbulas, como pequenos guerreiros do mato.


De repente, um exército de Saúvas, as temidas içás cortadeiras, começou a subir pelo tronco, organizadas em fileiras apressadas. Logo surgiu a disputa:


— Essas folhas são nossas! — gritaram os Tanhyra Tîbíra. — Chegamos primeiro!


As Saúvas, firmes e trabalhadeiras, responderam:


— Ninguém é dono das árvores! A floresta é livre e quem trabalha merece colher!


A briga estava prestes a começar, quando apareceu o Sagui-de-tufos-brancos, esperto e ligeiro, saltando de galho em galho. Com olhar vivo e voz firme, ele declarou:


— Escutem, amigos! Vejo gafanhotos e formigas brigando por folhas, mas saibam que eu como tanto uns quanto outros. Se não houver acordo, talvez eu seja o único a me fartar.


Os insetos silenciaram. O sagui então completou:


— Vi que os Tanhyra Tîbíra chegaram primeiro ao ipê. É justo que fiquem aqui. As Saúvas, com sua força e união, podem encontrar outra árvore para cortar. Assim, cada qual terá seu sustento sem guerras.


As Saúvas, embora contrariadas, aceitaram a palavra do sagui. Os Tanhyra Tîbíra continuaram a refeição, e a paz voltou à floresta.


🌱 Moral da fábula:


Na natureza e na vida, cada um tem seu espaço. A sabedoria está em dividir, não em destruir.





06. ERÍ KUKÕJ BAE A BRUAN, A FÁBULA DO MACACO E A EMA 





Era tempo de festa na casa do Porco-do-mato, o velho Murawó, que convidou todos os animais kerí da floresta. Mas havia uma regra: apenas um representante de cada família poderia entrar.


A mãe do Macaco Kukõj foi escolhida para representar sua família. Kukõj, então, teve que ficar do lado de fora, cercado pelas palhas e troncos que delimitavam o espaço da festa. Sentiu-se excluído, ficou com raiva. Do alto de um krow, o coqueiro da clareira, Kukõj observava os risos, as danças e a alegria.


Tomado pela inveja e pela mágoa, colheu um fruto de coco e o lançou no meio da multidão. O impacto foi grande: o alvoroço se espalhou, os tambores silenciaram e a festa terminou de repente. Todos correram.


No caminho de volta, a Ema Bruan, que fora das primeiras a sair, encontrou o pequeno Kukõj entre as árvores. O macaco, curioso, perguntou:


— Ora, Bruan, já terminou a festa?


— Sim — respondeu a Ema com tristeza. — Jogaram um coco em meio ao povo, e, veja só... a sua própria mãe foi atingida, Kukõj.


O macaquinho paralisou. Baixou os olhos, sentiu o peso da culpa. O mal que ele lançara ao mundo retornara a ele mesmo, ferindo quem mais amava.


Tempos depois, sua mãe se recuperou. Kukõj aprendeu, com dor, uma lição importante:


Quem semeia o mal colhe a tristeza. E muitas vezes, a pedra lançada ao outro retorna para o próprio peito.





07. TÁYBYGARAÍ E TÁÎAGÛARA’I, A FORMIGA-LEÃO E A FORMIGA-ONCINHA 





A Fábula das Formigas Leão e Oncinha



Na beira da mata, onde a areia é fina como pó de estrela caída, vivia Táybygaraí, o caçador da areia, conhecida como Formiga-leão. 


Silencioso, escondido em seu funil, esperava pacientemente que as formigas deslizassem para sua boca de jaguarzinho da terra.


Nada passava despercebido ao seu olhar profundo, e sua força vinha da espera, da paciência e do abrigo na areia.


Mais adiante, nas folhas secas que guardavam os segredos da floresta, caminhava Táîagûara’i, a formiga-oncinha.


Não era formiga verdadeira, mas todos assim a chamavam.


Sua pele trazia manchas que lembravam o manto da onça, e sua picada ardia como fogo de cipó queimando no peito.


Era corajosa e caminhava sozinha, sem medo de quem cruzasse seu caminho.


Um dia, os dois se encontraram.


Táîagûara’i se aproximou da armadilha de areia e, ao sentir a terra ceder, parou.


Lá embaixo, Táybygaraí preparava-se para puxá-la com suas mandíbulas.


Mas a onçinha das formigas, esperta, ergueu-se firme e disse:


— “Eu não caio, caçador da areia. Minha força não está em esconder-me, mas em mostrar que ninguém deve me tocar.”


Táybygaraí, surpreso, respondeu do fundo de sua cova:


— “E eu, irmã da floresta, aprendi que a vida é esperar o momento certo. Quem cai em minha areia, não levanta.”


As duas ficaram em silêncio, sentindo o vento que soprava sobre a mata.


Não havia ódio, apenas diferença.


Então, perceberam que cada uma tinha o seu modo de viver: uma caçava pela espera, outra pela coragem e pela dor que trazia em sua defesa.


Naquela tarde, afastaram-se sem lutar.


E a floresta aprendeu com elas que existem muitas formas de ser forte:


a força da paciência e a força da coragem.


✨ Moral da Fábula:


Na vida, alguns vencem com a espera e outros com a coragem.


Nem sempre a força é visível: às vezes está escondida na areia, às vezes estampada no manto da onça.





08. BESÍ BUCUTÉ, A FÁBULA DO CACHORRO SEM LAR 





Era uma vez, na bela Ilha de São Pedro, cercada pelas águas do rio Opará, onde o sol beijava as plantações e o vento dançava entre os coqueiros, vivia um povo sábio e alegre: o Povo Xocó. Ali todos viviam em harmonia com a natureza e com os seus animais domésticos, chamados com carinho de keruá.


Entre os keruá, havia um cachorro esperto e leal chamado Bucuté, que corria livre pelas matas e guardava com coragem as roças e os caminhos da aldeia. Ao seu lado viviam Sabucá, o galo altivo; Poió, o gato curioso; Curé, o porco brincalhão; Erintuca, a ovelha mansa; Igaborou, o cavalo ligeiro; Pobifi, a cabra trepadora; Wathõ, o bode valente; e Krêre, o papagaio contador de histórias.


Mas um dia, nuvens escuras cobriram o céu da Ilha. Fazendeiros cobiçosos desejavam as terras sagradas de São Pedro e Caiçara. Vieram com gritos e ameaças, forçando o Povo Xocó a abandonar sua morada.


Com tristeza no coração, os Xocó reuniram seus pertences, subiram na grande canoa Ubáuaçú e seguiram rio a baixo em busca de refúgio na Aldeia Kariri, em Porto Real do Colégio, Alagoas. Todos partiram às pressas, levando os utensílios e os keruá... mas esqueceram-se de um.


Bucuté, o cachorro caçador, estava na mata atrás de um tatu quando tudo aconteceu. Quando voltou, encontrou o silêncio. As redes vazias, as cinzas frias das fogueiras, os rastros das canoas já longe. Seu coração de cão valente se encheu de tristeza. Latia para o rio, chorava para a lua, esperando um reencontro que parecia nunca chegar.


Durante um ano inteiro, Bucuté sobreviveu só, guardando as lembranças do seu povo. Dormia à sombra da jaqueira do cacique e corria pela trilha da saudade.


Até que, certo dia, cortando as águas do rio, uma pequena canoa surgiu entre as margens. Era o Cacique Muirá, que voltava à Ilha para lembrar os encantos do seu povo. Quando viu o velho amigo, Bucuté correu, pulou, latiu de alegria. O reencontro foi tão forte que até os pássaros silenciaram para escutar a emoção.


Muirá acolheu o cão em seus braços e o levou de volta à aldeia, onde todos celebraram o retorno de Bucuté, o keruá fiel, que jamais esqueceu sua gente.


Desde então, na Aldeia Kariri, sempre se conta a história de Bucuté, o cachorro que provou que mesmo quando tudo parece perdido, a saudade pode guiar de volta ao lar.


🌿 Moral da Fábula:


Quem guarda no peito o amor verdadeiro, mesmo perdido encontra o caminho do reencontro.





09. ERÍ BUKÉ BAE ERÍ KAPLAN, A FÁBULA DO VEADO E DO JABUTI 





Numa floresta antiga chamada Retsé, onde os ventos sussurram os segredos dos bichos, havia trilhas entrelaçadas feitas pelos passos dos animais, os keríá.


Certa manhã dourada, Kaplan, o jabuti de casco firme e olhar sereno, caminhava lentamente pela trilha comprida. Seu corpo avançava com calma, como quem ouve a terra antes de cada passo.


De repente, Buké, o veado ligeiro como relâmpago, surgiu entre os arbustos com saltos velozes. Ao ver Kaplan, zombou com risos saltitantes:


— Ora, Kaplan! Para onde vais com tanta pressa? Não tens patas que voam como as minhas!


Kaplan ergueu os olhos, sem raiva nem espanto, e respondeu com doçura:


— Vou devagar, mas sei onde quero chegar.


Buké deu uma gargalhada e saiu em disparada, feliz por mostrar sua velocidade. Mas logo adiante, seus cascos tropeçaram numa raiz oculta, e ele caiu, ferido e sem forças para continuar.


Enquanto isso, Kaplan continuava em seu ritmo, passo após passo, até alcançar sua morada sob a velha jabuticabeira. Lá, colheu os frutos doces e se alimentou com alegria.


E assim, o lento chegou antes do veloz.


Desde então, os anciões da floresta ensinam:


"Nunca zombes da forma de caminhar de alguém, pois cada um tem seu jeito de chegar ao destino."





10. TUCURA E Y-APUÃ, O GAFANHOTÃO E  A SOPRADORA-D’ÁGUA 





A Fábula do Gafanhotão e a Libélula



Nas terras onde a floresta encontra o rio, vivia Tucura, o gafanhotão.


Suas asas eram fortes como folhas secas ao vento,


e seu apetite não tinha fim: devorava folhas verdes, brotos, até mesmo plantas dos roçados dos homens.


Tucura se orgulhava da sua força e dizia:


— Eu sou o dono da terra! Sem mim, a mata não conhece quem manda.


Um dia, pousou perto dele uma pequena criatura de asas brilhantes,


que refletiam a luz como se fossem cristais verdes.


Era Y-apuã, a sopradora-d’água,


que voava leve sobre as lagoas e riachos, tocando a superfície com o sopro de suas asas.


Tucura riu alto:


— Que podes tu, pequena e frágil? Eu sou grande, salto alto e como o que quero. Tu não passas de um brinquedo do vento!


Mas Y-apuã não se irritou.


Com a calma de quem conhece o tempo e a água, respondeu:


— Grande és no corpo, Tucura, mas pequeno és na visão.


Tu vives da terra, mas não vês o rio.


Tu comes as folhas, mas não sabes que sem a água que protejo, nada verde brotaria.


Tucura se enfureceu:


— Quem és tu para me desafiar?


Então Y-apuã voou baixo, sobre o espelho do rio.


Ali, mostrou a dança de sua espécie:


devorava mosquitos, limpava o ar, protegia as águas.


— Vês? Eu sou guardiã do que corre e do que nasce.


Sem mim, o ar seria cheio de pragas, e o rio, doente.


Tu comes por viver, mas eu caço para equilibrar.


O gafanhotão ficou em silêncio.


Nunca havia pensado que seres pequenos também guardavam grande poder.


No fim do dia, Tucura disse com humildade:


— Y-apuã, aprendi contigo que cada ser tem sua força,


e que não é no tamanho que se mede a importância.


A terra precisa de mim, mas também da água e do ar que tu proteges.


E desde então, a floresta passou a ouvir dois cantos:


o estrondo das asas de Tucura saltando pelos campos,


e o sopro suave de Y-apuã dançando sobre os rios.


✨ Moral da fábula


Na natureza, ninguém é dono de tudo.


O grande precisa do pequeno, assim como a terra precisa da água e do ar.


Cada ser tem seu lugar no equilíbrio do mundo.





11. KERÍÁ KUTOABÁ, OS ANIMAIS SILVESTRES LIVRES. 





Uma Fábula da Liberdade dos Animais 



O sol nascia dourando as folhas da grande floresta. Ará, a arara-vermelha, voava cantando alto:


— Bom dia, Tupã! Bom dia, Iaci!


Tupã, a onça-pintada, espreguiçou-se e respondeu:


— Bom dia, Ará. Hoje o rio está chamando…


Iaci, a tartaruga dos rios, apareceu devagarinho:


— Chamando para quê, Tupã?


— Para brincar! — disse Tupã — O dia está lindo e Uché, o espírito do tempo, trouxe um vento suave.


Os três seguiram juntos, aproveitando a liberdade que a floresta lhes dava. Mas, de repente, um som estranho ecoou.


— Ouviram isso? — perguntou Ará, pousando num galho.


Iaci ficou séria:


— Ouvi… parece barulho de homens.


Tupã farejou o ar:


— Eles estão perto… e não vêm para ajudar.


Pouco depois, surgiram homens carregando redes, gaiolas e armas. Começaram a capturar pássaros, macacos e até peixes grandes.


Ará gritou:


— Não! Soltem meus amigos!


Mas os homens riram. Tupã, furioso, rosnou:


— Por que fazem isso?


Um dos homens respondeu:


— Porque dá dinheiro! Animais bonitos valem muito.


Ará, Tupã e Iaci se esconderam atrás de um tronco caído.


— Precisamos fazer alguma coisa… — disse Ará.


— Mas como? — perguntou Iaci.


Foi então que Anhangá, o vento protetor, soprou forte e sussurrou:


— Chamem os humanos de bom coração. Eles podem lutar contra esses caçadores.


Ará voou longe, levando o recado. Tupã guiou defensores da natureza até o acampamento dos caçadores. Iaci conduziu guardas florestais pelo rio até a armadilha principal.


Quando os protetores chegaram, libertaram os animais e aplicaram as leis contra os caçadores. Depois, criaram um santuário e prometeram proteger aquele lugar para sempre.


Na manhã seguinte, a floresta estava cheia de sons novamente. Ará voava alto, Tupã corria entre as árvores e Iaci sorria à beira do rio.


— Somos livres de novo! — gritou Ará.


— E assim vamos ficar — completou Tupã.


— Porque agora há quem nos proteja — disse Iaci, orgulhosa.


Lição moral: A liberdade é o direito de todos os seres. Quem protege a natureza, protege a si mesmo.





Autor das Fábulas: Nhenety Kariri-Xocó 





📜 APÊNDICES



Apêndice I – Sobre os Animais nas Fábulas


Os animais apresentados nas fábulas representam seres reais da fauna brasileira e sul-americana, muitos deles profundamente ligados ao cotidiano indígena. Não são personagens imaginários, mas parentes da floresta, observados, respeitados e compreendidos ao longo de gerações.


Apêndice II – A Fábula na Tradição Indígena


Para os povos indígenas, a fábula não é apenas literatura. É instrumento de educação espiritual, social e ambiental, transmitido de geração em geração pela oralidade.





📜 GLOSSÁRIO INDÍGENA (SELEÇÃO)




Anhangá – Espírito protetor da floresta


Bruan — A ema, ave de grande porte.


Bucuté — O nome de cachorro doméstico. 


Çauiá — O roedor doméstico, conhecido por Porquinho-da-índia.


Curé — O porco-doméstico, trazido pelos colonizadores.


Erá – Casa coletiva indígena


Erintuca — A ovelha, carneiro doméstico. 


Iaci – Lua


Ieendeá — O nome de aves, pássaros de modo geral.


Igaborou — O cavalo doméstico. 


Iworó – Terreiro central da aldeia


Jaguatirica — A pequena onça, espécie de jaguarzinho. 


Kaplan — O jabuti de casco firme. 


Keruá – Animais domésticos

Kerí / Keríá – Animais silvestres


Krêre — O papagaio do sertão nordestino, ave que imita a fala dos humanos. 


krow — O coqueiro doméstico. 


Kukõj — O macaco.


Mocó — Um tipo de roedor silvestre, comestível do nordeste. 


Murawó — O Porco-do-mato, entre os povos Kariri.


Natiá — A aldeia tradicional dos povos Kariri. 


Opará – Rio São Francisco


Poió — O gato doméstico. 


Pobifi — A cabra trepadora.


Preá — O pequeno roedor silvestre da Caatinga. 


Sabucá — O galo doméstico, galinha caipira. 


Tanhyra Tîbíra — A espécie de gafanhotos-soldados. 


Táîagûara’i — A formiga-oncinha.


Táybygaraí — O caçador da areia, conhecida como Formiga-leão. 


Tetéu — A ave conhecida como espanta-boiada, que dar alarme aos outros bichos a presença do predador. 


Toklikli — A língua, a fala, linguagem. 


Tucura — O gafanhotão, grande gafanhoto de cor verde.


Tupã – Força do trovão, energia criadora


Ubáuaçú – Grande canoa


Uché — O espírito do tempo.


Uidzi — O nome de menina entre os Kariri-Xocó. 


Y-apuã — A sopradora-d’água, conhecida como Cachimbal, a libélula. 


Wathõ — O bode doméstico. 





📜 DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR



Nhenety Kariri-Xocó é escritor, contador de histórias, pesquisador da cultura indígena e membro do povo Kariri-Xocó, do município de Porto Real do Colégio, Alagoas.


Autor de contos, fábulas, cordéis e narrativas históricas, dedica sua produção literária à valorização da memória indígena, da tradição oral escrita e da convivência harmoniosa entre os seres humanos e a natureza.


Mantém publicações no blog:

kxnhenety.blogspot.com





📜 ORELHA DO LIVRO



WOROBÜYÉ – Fábulas Kariri-Xocó é um convite ao reencontro com o essencial.

Nesta coletânea, os animais falam, ensinam e revelam verdades profundas sobre o mundo e sobre nós mesmos.


Com linguagem poética e raízes ancestrais, Nhenety Kariri-Xocó constrói fábulas que educam para o respeito, a convivência e a proteção da vida.


Um livro para ler, reler e contar — como se fazia antigamente, à sombra das árvores e ao redor do fogo.





Autor: Nhenety Kariri-Xocó 









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