A Fábula Aynã e a Memória da Terra
Há muito tempo, na aldeia chamada Natiá, viviam crianças que corriam livres pelos caminhos, anciões que contavam histórias à sombra dos cajueiros, e mulheres e homens que plantavam, caçavam, festejavam e moldavam com as mãos o que precisavam: objetos de barro, madeira, ossos e penas. Tudo era vida. Tudo tinha espírito.
Quando um objeto se quebrava, não era jogado fora. Era entregue de volta à Terra, chamada Radda, para que ela guardasse em sua memória, a Samy, como quem confia um segredo ao coração de uma avó. Assim como os corpos das pessoas que partiam eram colocados nas igaçabas, urnas que dormiam no ventre da Terra.
Um dia, a menina Aynã, curiosa e sábia para a sua idade, caminhou até o monte sagrado Boêdo, que os antigos chamavam de Echi Aiby Wathõ, o Alto do Bode. Ao colocar os pés naquela terra, ouviu um som suave, como um eco antigo:
— Toklikli... Menina, o que fazes na Terra Sagrada?
Era a voz da própria Mãe Terra, Raddadé, que falava através do solo e das pedras.
Aynã, com respeito e coragem, respondeu:
— Mãe Raddadé, vim buscar um pouco de tua argila para fazer cerâmica com minhas mãos pequenas.
A voz da Terra então soprou como o vento:
— Cuidado, menina, pois aqui dormem objetos dos teus antepassados. Eles são a memória dos tempos antigos. Cada pote, cada brinquedo, cada panela carrega uma história.
Aynã, então, com seu dehebá, um cavador simples feito de madeira, começou a retirar a argila. E entre as camadas da terra, encontrou pedaços de runhú (panelas de barro), ruño (potes), benhekié (brinquedos) e outras maravilhas que a Terra havia guardado por gerações.
Com carinho, a menina olhou, sorriu, e recolocou cada peça no mesmo lugar, como se devolvesse um segredo ao silêncio.
Ao final, agradeceu:
— Obrigada, Mãe Raddadé, por me dar tua argila e tua memória.
E desde esse dia, todas as crianças da aldeia aprenderam que cada grão de barro é uma história, e que a Terra fala — se soubermos escutá-la.
Moral da Fábula:
A Terra não é apenas chão, é também livro antigo que guarda a memória de quem veio antes. Respeitar a Terra é respeitar a história do nosso povo.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
VERSÃO EM CORDEL: SAMY RADDA, A Fábula de Aynã e a Memória da Terra
Na aldeia Natiá se vivia
Com fartura, alegria e saber,
Gente sábia plantando o futuro,
Gente antiga ensinando a viver.
Tudo ali tinha alma e memória,
Cada festa, brinquedo e história
Era o tempo querendo crescer.
—
O que era de barro ou madeira,
De osso, de pena ou raiz,
Servia pra caça, pra canto,
Pra curar ou pra ser mais feliz.
E se algo quebrava no uso,
Não se via como um recluso,
Mas voltava à Terra, em bom condiz.
—
Enterravam-se os velhos objetos,
Como gente que volta ao sertão,
Pois a Terra, chamada Radda,
Guardava em si cada porção.
Era a Samy, sua grande memória,
O baú sagrado da história,
Do tempo e da tradição.
—
Certa vez, a menina Aynã,
Com os pés descalços no chão,
Foi subindo o monte sagrado,
Chamado de Boêdo em união.
Também diziam “Alto do Bode”,
Onde ecoa saber que explode
Do seio da Mãe Criação.
—
E eis que a Terra falou: Toklikli,
Com voz forte, mas sem agressão:
“Menina, o que vens fazer
Nos domínios da consagração?”
Aynã respondeu com respeito:
“Vim buscar um barro perfeito
Pra moldar com devoção.”
—
A Mãe Terra então lhe advertiu:
“Cuidado, pequena irmã,
Pois aqui estão guardadas lembranças
Dos que vieram antes de Aynã.
Cada pote, panela ou brinquedo
É memória viva sem segredo,
Dormindo em meu divã.”
—
Com o dehebá, seu cavador,
A menina com doçura agiu.
Achou runhú, panela ancestral,
Ruño e brinquedo infantil.
Mas com todo o amor, devolveu,
Na terra sagrada os recolheu,
Como quem ao tempo sorriu.
—
E agradeceu à Mãe Raddadé:
“Teu barro me inspira a criar.
Teus segredos eu guardei com zelo,
Tua voz eu pude escutar.”
E voltou à aldeia dançando,
Com a alma leve, cantando,
E o barro pronto pra modelar.
—
Desde então, se conta entre os velhos:
A Terra tem língua e saber,
Quem cava por barro ou lembrança
Precisa primeiro entender:
A argila é mais que matéria,
É raiz, é canto, é matéria
Da vida que segue a crescer.
⭐ Moral do Cordel:
Quem escuta a voz da Mãe Terra
Não cava só pra fazer panela,
Cava fundo a alma do povo,
E aprende a cuidar dela!
Autor: Nhenety Kariri-Xocó