quinta-feira, 31 de julho de 2025

IEENDE-CRÚ-UNÁ E O GROU DE COROA DOURADA






Uma Fábula Sobre a Andorinha e o Grou de Coroa Dourada


Era uma vez uma ave de cauda repartida, chamada Ieende-crú-uná, a Andorinha-do-mar-ártica, que cruzava os céus com leveza e sabedoria. Conhecida como ave viajante, ela era respeitada pelos que habitavam os ventos, pois carregava histórias dos quatro cantos do mundo.


Certo dia, em sua longa jornada, Ieende-crú-uná pousou sobre a savana árida da África. O sol dourava a terra seca, e dali ela avistou uma figura majestosa: era o Grou-coroado-cinzento, com uma coroa de penas douradas a brilhar sob o céu.


— Olá, ave elegante de coroa dourada! Moras nestas terras quentes e secas? — perguntou a andorinha com respeito.


— Sim, nobre viajante dos ares — respondeu o Grou com voz tranquila. — Meu povo vive entre o leste do Congo e Uganda, somos conhecidos também em Angola e por toda a África Austral.


A Andorinha olhou com encanto:


— És uma das aves mais belas que já vi. Teu corpo cinza reluz sob o sol, tuas asas brancas dançam com o vento, e tens penas pretas e marrons como se fosses pintado pela natureza. Teu rosto é claro como nuvem, e essa bolsa vermelha em tua garganta te faz ainda mais singular.


O Grou sorriu e, com generosidade, ofereceu pequenos peixes colhidos de uma das poucas águas que restavam na savana.


— Obrigado, Ieende-crú-uná. Tua visita alegra este solo seco. Aqui, mesmo com tão pouca água, aprendemos a viver com o que temos e a dividir com os que passam.


A Andorinha agradeceu com reverência, e antes de partir disse:


— Levo contigo uma lição: mesmo em terras áridas, há beleza, gentileza e partilha.


E alçou voo, sumindo no horizonte, levando consigo mais uma história a ser contada.


Moral da fábula: Quem viaja pelo mundo aprende que a verdadeira riqueza está em saber acolher e partilhar, mesmo com pouco.



Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





IEENDE-CRÚ-UNÁ, A Andorinha-do-Mar e as Palancas do Deserto







Fábula da Andorinha e as Palancas


Em tempos antigos, quando as aves ainda se reuniam para contar histórias aos ventos, uma andorinha de cauda repartida, chamada Ieende-crú-uná, cruzava os céus do mundo. Era uma ieende itohikiete, ave viajante, conhecida por muitos como a andorinha-do-mar-ártica.


Depois de sobrevoar geleiras, mares e ilhas distantes, Ieende-crú-uná chegou ao litoral africano, onde o sol beija a savana e o vento sussurra em língua ancestral. Ali, entre as árvores douradas e o capim dançante, encontrou duas criaturas imponentes: a Palanca-negra-gigante, chamada Palala, e sua companheira, a Palanca-vermelha, conhecida como Palanca-roana.


— Olá, nobres herbívoras! — saudou a pequena ave com elegância — Qual é a origem do nome que vocês carregam com tanta nobreza?


A Palanca-negra-gigante, erguendo seus chifres em forma de lua crescente, respondeu com sabedoria:


— Nosso nome vem da antiga língua bantu. “Mpalanca” é como chamam o antílope — é o sopro da raiz que habita nosso sangue.


A Palanca-vermelha, de pelagem avermelhada como a terra ao entardecer, curvou-se gentilmente e perguntou:


— E tu, pequena ave das águas e dos ventos, de onde vens?


Ieende-crú-uná respondeu, pousando com leveza sobre uma pedra quente:


— Venho das ilhas geladas e das marés do norte. Sigo os caminhos do céu, cruzando oceanos para contar histórias às aves e aprender com os seres da Terra. E aqui, neste continente tão vasto, vi animais keríá maravilhosos: zebras que dançam em listras, girafas que conversam com as estrelas, gnus velozes como o trovão, e elefantes que guardam a memória dos tempos. Aqui vive o Rei dos Animais, o leão.





— Sim, é verdade — confirmou a Palanca-negra-gigante — Nosso continente é morada de muitos espíritos da natureza.


— E agora, para onde voará, andorinha-dos-mares? — perguntou a Palanca-roana.


— Vou seguir meu destino — respondeu Ieende-crú-uná — atravessarei o oceano para visitar o Brasil, a terra das florestas verdejantes e dos povos sábios como os Kariri-Xocó.


Com um bater de asas, a pequena viajante alçou voo, deixando para trás o calor da savana e levando no coração a memória das palancas e das terras africanas.


Desde então, contam os antigos que os animais do mundo aprenderam com aquele encontro que mesmo sendo diferentes, podem compartilhar o mesmo ambiente, respeitando seus limites, suas histórias e suas existências.


Moral da Fábula:

Os caminhos da Terra são longos e diversos, mas quem respeita o outro encontra em cada encontro uma nova morada para a alma.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





quarta-feira, 30 de julho de 2025

WÃMYÁ AINDZU OPARÁ, A Fábula dos Peixes do Rio e do Mar







Há muito tempo, quando os espíritos das águas ainda conversavam com os humanos, o grande Rio Opará e o imenso Mar Aindzu resolveram se encontrar.


Do Mar Aindzu vinha a Curimã, uma peixe alegre, saltitante e cheia de energia, conhecida pelos outros peixes como "a criança do mar". Ela adorava brincar com as ondas e dançar entre as algas, sua risada ecoava pelas conchas e chegava até a areia da praia.


Do Rio Opará deslizava a Curimatã, uma peixe calma e sábia, que nadava com doçura pelas águas doces e barrentas do Velho Chico. Os ribeirinhos diziam que ela trazia paz a quem a observava, como se carregasse o espírito de uma anciã.


Um dia, durante a Piracema, quando os peixes sobem o rio para se reproduzirem, a Curimã sentiu uma vontade no coração: conhecer o Rio Opará e seus habitantes. Subiu as correntezas com alegria, fazendo amizade com a Pescada, o Bagre, o Dourado e até mesmo com o arisco Niquim.


No caminho, Curimã encontrou Curimatã descansando entre as pedras do rio. Uma vinha do mar, a outra vivia no rio — e mesmo assim, pareciam se reconhecer de outras vidas.


— Olá, irmã das águas doces! — disse Curimã com brilho nos olhos.

— Salve, irmã das águas salgadas — respondeu Curimatã com serenidade.

— Você nada tão devagar… não tem vontade de brincar?

— E você… já experimentou parar para sentir a correnteza?


Assim nasceu uma amizade sagrada: uma era o espírito da infância, a outra o espírito da maturidade. Juntas, aprenderam que o rio e o mar, mesmo diferentes, se completam. Que há valor tanto na calma quanto na alegria.


Outros peixes, como a Ubarana, o Surubim, o Cará-peba e a Piaba, logo se juntaram à festa dessa união. O encontro entre Rio e Mar virou uma celebração. E todos aprenderam que a Piracema é um tempo sagrado — tempo de nascimento, de respeito e de equilíbrio entre todos os seres aquáticos.


Desde então, os anciãos contam aos jovens que, todo ano, Curimã visita sua amiga Curimatã, levando as brincadeiras do mar para o coração do rio. E que, nesse encontro, nasce a vida que mantém o ciclo das águas vivas.


Moral da fábula:


Mesmo com naturezas diferentes, o respeito e a amizade fortalecem a vida. O rio e o mar se unem na dança da renovação.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 



IEENITOKIETE RADDA, A Fábula da Ave Viajante do Mundo






Era uma vez, à beira do grande mar Aindemodzu, uma andorinha de cauda repartida chamada Ieende-crú-uná. Vinha de longe, muito longe, cortando os céus do mundo com suas asas ágeis e o coração cheio de histórias do vento.


Naquele dia, mergulhou nas águas salgadas e prateadas para se alimentar dos peixes que dançavam entre as ondas. Depois do banquete, pousou na praia para descansar suas asas cansadas. Foi então que ouviu um tilintar alegre entre as folhas: era Maracanã, a ave verde que cantava como um chocalho.


— Olá, pássaro verde! — disse a andorinha.

— Olá, Andorinha do céu! Estavas pescando?

— Sim. Após uma longa viagem. Venho de muito longe.


Maracanã inclinou a cabeça curiosa.


— E de onde vens com tanta pressa e graça?

— Sou da linhagem de Ieende Itohikiete, as Aves Viajantes. Cruzamos céus e mares, passamos por terras que o olho não alcança. Sou uma Ieenitokiete Radda — uma Ave Viajante do Mundo.


Maracanã bateu as asas de alegria.


— Ah! Agora entendo tua beleza. Tua cauda bifurcada, tuas penas cinzentas e brancas, o barrete preto com listras brancas, o bico vermelho-alaranjado que brilha como o sol na aurora... És mesmo uma maravilha do mundo!


Ieende-crú-uná enrubesceu de timidez.


— Assim me deixas sem palavras, Maracanã.


— Mas fui sincero — respondeu o Maracanã com o tilintar do peito —, pois toda ave migratória carrega a força das rotas e a sabedoria dos ventos.


A Andorinha sacudiu as asas, sorriu com o bico e disse:


— Agora preciso partir. O mundo me espera do outro lado do oceano.


— Vai em paz, Ave do Mundo. E que sempre haja alimento e descanso em tua jornada.


E assim, Ieende-crú-uná alçou voo novamente, cruzando os ventos de norte a sul, levando nas penas o segredo da resistência e no peito o espírito livre das Aves Viajantes.


Moral da fábula:

A liberdade das aves migratórias ensina que todo viajante precisa de alimento, descanso e respeito para seguir sua jornada no grande ciclo da vida.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




RETSEANTOÁ, A Fábula do Santuário da Floresta






Em tempos antigos, quando o céu ainda cantava com as vozes dos ventos e as florestas dançavam sob os passos dos espíritos da natureza, existia uma mata sagrada chamada Retsé Aindzu — a Floresta da Alma do Mundo. Era ali que a Mãe Natureza, a anciã Antsé, guardava seus maiores segredos: nascentes cristalinas, árvores sábias chamadas Sutuá, peixes dourados Wãmyá, plantas curadoras e uma multidão de animais, os Keríá, que cantavam a harmonia do planeta.


Mas com o tempo, chegaram homens de fala estranha e mãos impacientes. Eram os colonizadores, que com seus machados, destruíram grande parte da floresta. O choro das árvores subiu aos céus e os ninhos se calaram.


Foi então que o Papagaio Sábio, chamado Krêre, reuniu os pássaros mensageiros — as araras flamejantes, o gavião da justiça, o sabiá da memória e o beija-flor da esperança. Eles voaram em grande nuvem até Brasília, a aldeia dos homens-governo. O céu se encheu de asas e cores. Todos pararam para olhar.


Krêre desceu sobre a praça principal e, junto aos seus irmãos Ieendeá, cantou a canção da floresta ferida. Seu canto dizia:


“Se a mata morrer, os rios secarão, os ventos adoecerão, e nenhum ser — nem bicho, nem gente — poderá viver em paz.”


A comoção foi tamanha que os ouvidos dos homens finalmente se abriram. Eles escreveram leis e criaram os Retseantoá, os Santuários da Floresta, onde a vida voltaria a florescer.


Os pássaros retornaram em voo cerimonial à Retsé Aindzu. Lá, os Keríá dançaram, os Sutuá balançaram suas copas em saudação, os Wãmyá saltaram nas águas e toda a floresta celebrou com alegria.


E desde aquele dia, todo ser da mata lembra que até os menores podem proteger o todo, quando voam juntos por um bem maior.


Moral da fábula:

Mesmo as menores vozes podem mudar o mundo quando cantam juntas pela vida da Terra.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




IDJÉ BRUAN IEENYEMOE, O Encontro da Ema e Avestruz






A Fábula das Aves Gigantes


Nos tempos em que o vento ainda dançava entre as árvores do Opará e as estrelas ouviam as histórias da Terra, reinava na Caatinga uma ave de longas pernas e olhar atento: era Bruan, a Ema, guardiã dos caminhos secos e dos segredos do Sertão.


Bruan caminhava sozinha entre cactos e mandacarus, sempre atenta ao farfalhar do mundo. Certo dia, ao dobrar um caminho de pedras quentes, deparou-se com uma criatura alta, de pescoço longo e olhos saudosos. Nunca havia visto tal ave.


— Quem és tu, que tens o pescoço como vara de ingazeira e és ainda mais alta que eu? — perguntou Bruan, surpresa.


A grande ave respondeu com voz serena:


— Sou chamada de Ieeniemoe, “a ave grande de pescoço comprido”, vinda de uma terra distante, além do mar, chamada África.


Bruan se aproximou com curiosidade e viu que havia tristeza nos olhos da visitante.


— Minha alma pesa — confessou Ieeniemoe — deixei para trás minha terra e minha gente. Aqui tudo me é estranho.


Bruan então abriu suas asas como quem acolhe o vento e disse:


— Irmã Ieeniemoe, não temas. Nossa Caatinga pode parecer árida, mas é cheia de vida e calor. Aqui és bem-vinda. Esta terra é de Raddadé, a Mãe Terra que não rejeita nenhum de seus filhos.


E assim, Bruan e Ieeniemoe caminharam juntas pelos caminhos do Sertão, descobrindo que a Caatinga e a Savana têm mais em comum do que parecem — pois onde há sol, vento e liberdade, também há amizade.


E desde aquele dia, contam os anciãos que se escutarmos com atenção, podemos ouvir o som de duas grandes aves correndo juntas pelos caminhos do mundo.


Moral da fábula:

Mesmo vindos de terras distantes, os que têm bom coração são recebidos como irmãos pelos filhos da Mãe Terra. A amizade não conhece fronteiras — ela voa alto, como as grandes aves livres do mundo.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




terça-feira, 29 de julho de 2025

IDJÉ CRADZÓ KUKRYT – A Fábula do Encontro do Touro e da Anta






Em tempos distantes, quando o céu ainda escutava as vozes da terra, vivia na caatinga do Opará uma anta forte e silenciosa chamada Kukryt. Ela caminhava entre os espinhos e as trilhas secas, rumo à floresta densa de Retsé, a montanha de árvores que os Tupi chamavam Ybytyra – a sagrada Mata Atlântica.


Enquanto caminhava com passos firmes, Kukryt avistou, pela primeira vez, um estranho animal de grandes chifres e olhos altivos. Era Cradzó, o Touro, recém-chegado do outro lado do mundo.


– Quem é você? – perguntou Kukryt, parando diante do estranho.


– Sou Cradzó, o boi do Velho Mundo – respondeu o Touro, com voz grave. – Fui honrado por babilônios, sumérios, egípcios e gregos. Minha força e minha presença são tão grandes que fui colocado entre as estrelas. Tenho constelações no céu.


Kukryt ergueu a cabeça, firme e serena:


– E eu sou Kukryt, a anta do Novo Mundo, a caça respeitada por povos ancestrais. Sou lembrada em pinturas, cantos e rituais. Também alcancei o céu e tenho minha constelação.


Cradzó franziu o cenho. Kukryt bateu o casco no chão. Cada um queria provar seu valor, e a floresta começou a ecoar o som da teima.


Foi então que apareceu Xáj, o pica-pau de penas vivas e olhar atento. Ele pousou num galho e gritou:


– Parem já com isso! Kukryt e Cradzó, vocês não são inimigos. Ambos vieram da terra sagrada. Ambos vivem no céu das memórias dos povos. Seus caminhos se cruzaram não para competir, mas para ensinar.


Os dois se entreolharam em silêncio.


– Este encontro é sinal de união, não de disputa – continuou Xáj. – Novo e Velho Mundo podem andar juntos. Quando animais se respeitam, os povos aprendem a viver em paz.


Daquele dia em diante, Kukryt e Cradzó passaram a caminhar juntos nas histórias. O Novo Mundo e o Velho Mundo selaram, ali, uma amizade feita de estrelas, sabedoria e respeito.


E até hoje, nas noites claras, se você olhar para o céu, verá a constelação do Touro ao lado da constelação da Anta.


Moral da fábula:

Quando o respeito caminha ao lado da sabedoria, até mundos distantes podem se tornar irmãos.



Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





KERUÁ UANIEÁ, Animais Criados na Aldeia Indígena






Uma Fábula de Amor aos Animais 


Era uma vez, na aldeia encantada de Natiá, um círculo de casas coletivas chamado erá, construídas com sabedoria dos antigos e voltadas para o grande terreiro Iworó, onde os passos da vida ecoavam no modo tradicional nhenetí. Ali, tudo vivia em harmonia com as árvores sutuá, que sussurravam histórias ao vento.


Nessa aldeia moravam não só os parentes humanos, mas também os parentes de penas, de pelos e de casco. Araras de mil cores voavam sobre os tetos de palha. Papagaios tagarelas repetiam as falas dos pequenos. Macacos brincavam de esconder com as crianças, enquanto o quati curioso vasculhava panelas e a cutia ligeira fazia correr os pequenos guerreiros.


Tinha ainda os jabutis pacientes e os patinhos amarelinhos, que andavam desajeitados como quem dança ao som da vida. Os animais não estavam presos — viviam soltos, como os ventos que sopravam entre os troncos do mato. As crianças falavam com os bichos, e os bichos respondiam com gestos, olhares e sons cheios de afeto.


Enquanto os homens iam pescar e caçar, as mulheres cuidavam da casa e do alimento, e os pequenos viviam entre risos, brincadeiras e histórias vivas com os animais.


Um dia, chegaram os colonizadores, trazendo novos animais em suas canoas e carregamentos: galinhas cacarejantes, bodes que teimavam em pular cercas, ovelhas macias como nuvem, porcos rosados, perus barulhentos e até um pavão que parecia carregar um pedaço do arco-íris em sua cauda.


Os antigos olharam, os pequenos se encantaram, e a aldeia passou a acolher esses novos seres com o mesmo respeito dado aos primeiros. Mas entre todos os bichos que vieram e os que já viviam ali, o pato-do-mato era o mais antigo amigo do povo. Dizem os velhos que ele foi o primeiro a aceitar viver ao lado dos humanos, e até hoje faz parte das casas e dos quintais pelo Brasil afora.


Assim, entre voos e passos, entre penas e risadas, os animais da aldeia cresceram junto ao povo. E o ensinamento ficou:


"Todos os animais são importantes para nosso alimento, mas criar com amor é o que faz bem para a alma e para o corpo."


E assim termina essa fábula, que vive em cada aldeia, em cada criança, em cada bicho solto que ainda corre no terreiro da memória.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




BEWOÁ TOKENHÉ SUTUÁ, Os Troncos Antepassados de Árvores







Uma Fábula dos Troncos Antepassados 


Era uma vez, no coração verde da floresta encantada, três sementes de esperança que andavam, brincavam e sonhavam como crianças. Uma delas era Uanie, de pele cor da terra e olhos que refletiam o rio. A outra era Caraí, branca como a flor do algodão. E a terceira era Iró, com os cabelos em caracol e a força do tambor no peito.


Certo dia, as três se encontraram sob a sombra de uma grande árvore e começaram a conversar sobre suas origens. Uanie apontou para o céu e disse:


— Meus ancestrais vivem no jequitibá, árvore frondosa e sábia, que escuta o tempo e fala com o vento. Suas raízes bebem a alma da terra.


Caraí sorriu e respondeu:


— Meus troncos vêm de terras além-mar, onde cresce o carvalho, firme e resistente, que guarda os segredos dos trovões.


Iró, com orgulho, bateu no peito e falou:


— O meu povo nasceu onde dança o sol, debaixo do baobá, o gigante da savana. Seus galhos abraçam histórias que atravessam desertos.


As três olharam uma para a outra, compreendendo que suas árvores eram diferentes, mas todas profundas em raiz, antigas de tronco e generosas de galhos — como famílias que crescem de um mesmo solo.


De repente, desceu dos céus um papagaio de penas verdes, amarelas e azuis, chamado Krêre. Ele trazia consigo mais uma criança: o Caboclinho, que tinha os olhos da floresta, os pés do sertão, o sangue de todos.


Krêre pousou num galho e falou com voz alegre:


— Este aqui é o Beworobé, o filho da mistura sagrada. Ele carrega em si o jequitibá, o carvalho e o baobá. É ele que floresceu da união de vocês e de tantos outros. É o que chamam de povo brasileiro.


As crianças sorriram, deram-se as mãos e dançaram em volta das árvores. E o papagaio, com as cores do céu da pátria, alçou voo como quem leva ao alto a mensagem dos deuses:

Nossas raízes podem ser diferentes, mas é o mesmo vento que balança os galhos.


E desde então, na floresta encantada e nos corações atentos, ecoa a lição:


Quem respeita o tronco dos outros fortalece a floresta do amanhã.


Fim.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 



segunda-feira, 28 de julho de 2025

DIMÉCRO KAPLAN, O Senhor da Pedra






Uma Fábula do Kaplan o Jabuti 


Em tempos antigos, quando os ventos ainda cantavam o nascimento das montanhas e os rios falavam com as árvores, a Terra chamada Radda era habitada por muitos seres vivos — os ba — que dançavam a canção da vida sob o sol do Brasil.


Entre todos os animais, havia um que caminhava devagar, mas com o coração cheio de histórias: o Jabuti, conhecido entre os Kariri do Sertão como Kaplan. Sua carapaça era como uma pedra antiga e sagrada, marcada pelos caminhos do tempo. Kaplan era velho, muito velho — e todos os animais o respeitavam por sua sabedoria.


Um dia, uma criança curiosa — um Inghé — se aproximou dele à beira do rio, onde o sol aquecia suavemente as pedras. Sentou-se perto do velho Kaplan e perguntou:


— Kaplan, como você vive há tanto tempo nesta floresta?


O Jabuti olhou com olhos lentos e profundos, e respondeu:


— Ora, Inghé... vivo tanto porque tenho memória. Tenho Samy.


A criança inclinou a cabeça, intrigada:


— Memória? Como assim?


Kaplan sorriu com serenidade:


— Ter memória, meu pequeno, é andar no ritmo da vida. É seguir devagar, como o tempo da terra. É ouvir os passos dos outros seres e sentir o vento antes que ele sopre. É aprender a se adaptar, a fugir do perigo — e a fazer amigos entre árvores, águas e pedras. É respeitar o caminho.


O Inghé abriu um sorriso:


— Que bonito, Kaplan! Então você conhece cada pedaço do mundo?


— Sim... — disse o Jabuti com orgulho. — Conheço os Keríá, os animais da mata. Os Ieendeá, os pássaros do céu. Os Wãmyá, peixes dos rios. E até os Cró, as pedras que dormem em silêncio. Eles me chamam de Dimécro, o Senhor da Pedra.


Os olhos do Inghé brilharam de encanto:


— Gratidão, velho Kaplan... Dimécro. Que conselho o Senhor me dá?


Kaplan pousou uma pata sobre o chão e disse com voz firme e terna:


— Ande no seu ritmo, criança. Assim você aprenderá a viver.


E assim, o Inghé seguiu seu caminho mais devagar, aprendendo a escutar a floresta com os ouvidos da alma, e a caminhar como fazem os sábios: com Samy, a memória que conecta todos os seres da vida.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




📜CORDEL: DIMÉCRO KAPLAN, O Senhor da Pedra





Em tempos de sol nascente,

Onde os ventos tinham voz,

A Terra era reluzente

Com seus bichos e seus pós.

Radda era o nome sagrado,

Um chão vivo, encantado.


Viviam os seres “ba”,

Na floresta e no sertão,

Cada qual na sua cá,

Com respeito e conexão.

E o mais velho da jornada

Era o Kaplan, pé de estrada.


Era um Jabuti sagrado,

Com a carapaça de chão,

Caminhava sossegado

Com história no coração.

Era lento, era ancião,

Mas guardava a tradição.


Certo dia um “Inghé” curioso,

Uma criança a perguntar,

Chegou com olhar garboso

Querendo se orientar:

— Kaplan, qual o segredo

Do teu tempo tão sem medo?


Kaplan disse com ternura:

— Vivo tanto por saber.

Tenho “Samy”, a estrutura

Da memória do viver.

Ando lento, mas atento,

Vejo o mundo num só tempo.


— Como assim? — disse o menino.

E o velho explicou com calma:

— No silêncio tem destino,

Na lembrança vive a alma.

Cada passo em sintonia

Faz brotar sabedoria.


— Conheço bicho e madeira,

Pássaro e peixe no rio.

Keríá da ribanceira,

Ieendeá que canta frio.

Wãmyá das correntezas

E Cró, as pedras acesas.


As pedras me dão respeito,

Me chamam Dimécro então.

Carrego em mim o conceito

Do tempo da criação.

O Senhor da Pedra sou,

Na memória que ficou.


O Inghé, emocionado,

Disse: — O que me aconselhas?

Kaplan, com olhar sagrado,

Disse: — Que tu nunca te espelhas

No correr sem direção…

Vá no teu tempo, irmão.


Assim o Inghé seguiu

Seu caminho, passo a passo,

Ouvindo o que o vento riu

E entendendo o velho traço.

Aprendeu com Dimécro

Que viver é ser concreto.


E até hoje a floresta,

Quando o sol beija o chão,

Sussurra em brisa modesta

A canção da conexão:

— Lembre sempre de Samy...

E ande com o coração.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 






CURIMATÃ, A Fábula dos Sabores do Opará






Certa manhã clara, quando o sol espelhava seu brilho nas águas calmas do Opará, os peixes se reuniram em meio às pedras e algas, como de costume. Mas naquele dia, a conversa tomou outro rumo.


— Sou eu quem tem o melhor sabor, disse o Curimatã, inflando o peito como quem já esperava aplausos.

— Que nada! — resmungou o Surubim Pintado — ninguém supera o meu teor de carne, firme e suculenta!

— Vocês estão esquecendo de mim, o Mandim Amarelo, interrompeu com voz grave, enquanto balançava sua cauda. — A preferência é minha, todo mundo sabe.


Logo veio a Corvina, ondulando com elegância:

— Com licença, senhores! As pessoas me adoram. Vocês apenas sonham com minha fama.


O Niquim, peixe de couro e espinhos, se incomodou:

— Todo mundo gosta de mim! Do menino curioso ao ancião que sabe preparar o caldo perfeito.


O Piau, de dentes rápidos e fala ligeira, caiu na gargalhada:

— Ora, ora... Vocês estão enganados! Eu sou o preferido nos almoços e jantares. Isso é fato!


A discussão crescia, cada peixe exaltando seu valor, esquecendo-se do silêncio sábio do rio.


Foi quando, nadando com suavidade, surgiu a pequena Piaba Lambari.

Com voz serena, disse:

— Meus irmãos, todos vocês têm razão. Cada pessoa tem um gosto, um paladar, uma história com cada um de nós. Ninguém é melhor que o outro. Todos alimentamos a vida do povo do Opará.


Houve silêncio. As bolhas pararam de subir. Os peixes se entreolharam e, como se iluminados por uma sabedoria antiga, sorriram com os olhos. Cada um voltou a nadar em paz, levando consigo a verdade da pequena Piaba.


Desde então, nunca mais discutiram. Entenderam que no Opará, cada peixe carrega um sabor único, e que o mais importante é a harmonia entre as espécies. Afinal, a diversidade é o verdadeiro tempero da vida.


✨ Moral da Fábula:


Ninguém é mais importante que o outro. Cada ser tem seu valor. Assim como os sabores do rio, o respeito à diversidade alimenta a sabedoria dos povos.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




BESÍ BUCUTÉ, A Fábula do Cachorro Sem Lar






Era uma vez, na bela Ilha de São Pedro, cercada pelas águas do rio Opará, onde o sol beijava as plantações e o vento dançava entre os coqueiros, vivia um povo sábio e alegre: o Povo Xocó. Ali todos viviam em harmonia com a natureza e com os seus animais domésticos, chamados com carinho de keruá.


Entre os keruá, havia um cachorro esperto e leal chamado Bucuté, que corria livre pelas matas e guardava com coragem as roças e os caminhos da aldeia. Ao seu lado viviam Sabucá, o galo altivo; Poió, o gato curioso; Curé, o porco brincalhão; Erintuca, a ovelha mansa; Igaborou, o cavalo ligeiro; Pobifi, a cabra trepadora; Wathõ, o bode valente; e Krêre, o papagaio contador de histórias.


Mas um dia, nuvens escuras cobriram o céu da Ilha. Fazendeiros cobiçosos desejavam as terras sagradas de São Pedro e Caiçara. Vieram com gritos e ameaças, forçando o Povo Xocó a abandonar sua morada.


Com tristeza no coração, os Xocó reuniram seus pertences, subiram na grande canoa Ubáuaçú e seguiram rio a baixo em busca de refúgio na Aldeia Kariri, em Porto Real do Colégio, Alagoas. Todos partiram às pressas, levando os utensílios e os keruá... mas esqueceram-se de um.


Bucuté, o cachorro caçador, estava na mata atrás de um tatu quando tudo aconteceu. Quando voltou, encontrou o silêncio. As redes vazias, as cinzas frias das fogueiras, os rastros das canoas já longe. Seu coração de cão valente se encheu de tristeza. Latia para o rio, chorava para a lua, esperando um reencontro que parecia nunca chegar.


Durante um ano inteiro, Bucuté sobreviveu só, guardando as lembranças do seu povo. Dormia à sombra da jaqueira do cacique e corria pela trilha da saudade.


Até que, certo dia, cortando as águas do rio, uma pequena canoa surgiu entre as margens. Era o Cacique Muirá, que voltava à Ilha para lembrar os encantos do seu povo. Quando viu o velho amigo, Bucuté correu, pulou, latiu de alegria. O reencontro foi tão forte que até os pássaros silenciaram para escutar a emoção.


Muirá acolheu o cão em seus braços e o levou de volta à aldeia, onde todos celebraram o retorno de Bucuté, o keruá fiel, que jamais esqueceu sua gente.


Desde então, na Aldeia Kariri, sempre se conta a história de Bucuté, o cachorro que provou que mesmo quando tudo parece perdido, a saudade pode guiar de volta ao lar.


🌿 Moral da Fábula:


Quem guarda no peito o amor verdadeiro, mesmo perdido encontra o caminho do reencontro.


Autor: Nhenety Kariri-Xocó






Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




BATÉ WOROBY, A Fábula da Nova Morada






Era uma vez, numa terra onde o sol beijava as folhas e o vento dançava com os galhos, uma floresta sagrada chamada Retséá. Nela viviam em harmonia os animais da terra Kariri: o Porco-do-mato Murawó, o Macaco Bugio Dziku, a Iguana Granharó, o Coati Bizaui, o Gambá Kerícohé, e muitos outros irmãos do mato.


Mas um dia, máquinas de ferro e mãos humanas chegaram destruindo o verde, abrindo espaço para construções e estradas. Árvores tombaram, rios choraram, e os animais, desabrigados, correram sem rumo. A tristeza espalhou-se como fumaça no ar.


Entre eles, a ave corredora e sábia, a Seriema Imbuam, observava o desespero. Viu seus irmãos keríá vagando, com olhos perdidos e corações aflitos. O macaco Bugio, com lágrimas no rosto, disse:


— Dona Seriema, para onde iremos? Nossa floresta foi destruída.


Com o olhar firme e voz cheia de esperança, Imbuam respondeu:


— Sigam-me, irmãos! Ao leste há uma floresta sagrada dos Kariri chamada Ouricuri. Lá poderemos recomeçar.


Guiando os passos como se seguisse um mapa antigo das estrelas, Imbuam conduziu não apenas os amigos mais próximos, mas todos os seres vivos que haviam perdido seu lar.


Ao chegarem às bordas do Ouricuri, foram recebidos pelo Coelho Miriu, guardião da entrada da mata, que saudou os irmãos com alegria:


— Sejam bem-vindos! Esta terra também é vossa. Aqui podem habitar em paz.


Logo, o Sabiá Gongá, cantando nos galhos, completou com sua melodia:


— É verdade! Em tempos difíceis, os que não voam sofrem mais. Nós, aves ieendeá, podemos partir quando necessário. Mas todos somos irmãos. Que a união nos fortaleça na preservação da vida na Terra.


E assim, entre abraços, cantos e novos ninhos, os animais reconstruíram sua morada. A floresta Ouricuri floresceu com nova vida, protegida pela força da coletividade.


Desde então, contam os ventos e os rios que quando os animais se unem, até a floresta renasce.


Moral da Fábula:

Quando há união e respeito entre os seres da Terra, sempre haverá um caminho de volta para casa.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




domingo, 27 de julho de 2025

KERÍ MORETSÉ – A Fábula dos Guardiões da Floresta






Há muito tempo, bem antes dos homens caminharem pelas trilhas da terra, existia um reino profundo, verde e mágico chamado Moretsé, o Reino da Floresta. Ali, tudo era vida. Os ventos sussurravam entre as folhas, os rios cantavam canções antigas, e cada ser vivente tinha um papel sagrado.


No coração de Moretsé, viviam os Keríá, os animais da terra; os Wãmyá, os peixes dos rios; e as Ieende, as aves do céu. Cada um com um dom especial dado pela própria Mãe Natureza, chamada de Antse.


A Rainha da floresta era a poderosa Rõti, a Onça. Seu rugido fazia as árvores se curvarem, e seu olhar impunha respeito. Reinava com justiça, protegendo os mais frágeis e mantendo a harmonia.


Mas Rõti sabia que governar sozinha não bastava. Chamou então um Conselho dos Guardiões da Floresta. Vieram todos, cada um com sua virtude:


— Chorecá, a Raposa, trouxe sua astúcia e sabedoria nas decisões.

— Pocro, o Veado-do-Mato, chegou ligeiro, com olhos atentos e pés velozes.

— Kaplan, o Jabuti, andava devagar, mas pensava com profundidade e lembrava das histórias antigas.

— Bruan, a Ema, deslizava como o vento, exibindo a beleza simples da elegância.

— Granharó, o Camaleão, desaparecia aos olhos, mas observava tudo, ensinando o valor do silêncio.

— Kukryt, a Anta, forte como o tronco da gameleira, sempre insistente diante dos obstáculos.

— Kerícohé, o Gambá, cheirava mal aos inimigos, mas bom era em manter a paz por onde passava.

— Wewe, a Borboleta, voava leve entre as flores, ensinando que beleza e delicadeza também são força.

— Krêre, o Papagaio, era o mensageiro da palavra justa, voz do equilíbrio.

— Kukõj, o Macaco, subia nas alturas e descia com ideias novas, mostrando que a brincadeira pode ser sabedoria.


Juntos, decidiram que cada um protegeria a floresta à sua maneira. E assim, sem guerras nem gritos, o Reino de Moretsé se manteve vivo por gerações, em paz com a terra, o ar e a água.


Mas um dia, surgiram passos desconhecidos. O som de machados e fumaça pairou no ar. Os Guardiões se reuniram novamente. A Rainha Rõti disse:


— Só venceremos esse novo perigo se cada um usar sua virtude com coragem e união. A floresta é de todos, e todos devem lutar por ela.


E assim fizeram. Com astúcia, força, beleza, paciência e diplomacia, os animais enfrentaram os invasores. Alguns foram embora, outros aprenderam com os bichos e passaram a ouvir a voz da floresta.


Desde então, Moretsé ainda respira, pois seus guardiões nunca dormem. E se um dia você entrar no coração da mata e escutar um rugido, um canto ou um farfalhar entre os galhos, saiba: os Keríá ainda vivem lá — guardando o mundo da vida.


Moral da Fábula:


Cada ser tem sua importância. A força verdadeira nasce da união das diferenças, do respeito pela natureza e da sabedoria de viver em equilíbrio com a terra.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




XÕN-NAƝE, O Urubu-Rei e a Limpeza do Mundo






Uma fábula de sabedoria ancestral


Dizem os mais velhos que, quando os homens começaram a ferir a Mãe-Terra com suas máquinas, derrubadas e fogueiras, algo terrível começou a acontecer. As florestas choravam com os troncos tombando, os rios se engasgavam com a sujeira, e o céu se tornava pesado de fumaça.


Do alto, observando tudo com seus olhos profundos, estava Xõn-naɲe, o Urubu-Rei, o Chefe de todos os urubus. Ele morava nas alturas, onde os ventos são livres, mas seu coração batia forte por tudo que vive e respira.


Vendo tanta destruição, Xõn-naɲe bateu suas grandes asas e chamou uma assembleia nos céus.


— Irmãos de penas, o mundo está doente. Os homens esqueceram o respeito pela Terra. Mortes, doenças e podridão tomam conta dos campos e cidades. É hora de voarmos em união e limparmos o mundo, como nossos ancestrais sempre fizeram.


Atenderam ao chamado:


Xõn-tsebu-iró, o Urubu-de-cabeça-preta, forte e silencioso como as noites sem lua;


Xõn-tsebu-cutçu, o Urubu-de-cabeça-vermelha, veloz como o fogo que consome a mata;


Xõn-tsebu-erã, o Urubu-de-cabeça-amarela, sábio como o sol do entardecer;


Xõn-retsé, o Urubu-da-mata, guardião dos cantos escondidos da floresta.


Juntos, planaram sobre os lugares mais esquecidos, limparam os restos deixados pela guerra dos homens contra a natureza. Mas não foi fácil. Os céus estavam cheios de máquinas voadoras que não respeitavam o caminho das aves. Ainda assim, os urubus persistiram, pois sabiam que, se não fizessem sua parte, o mundo afundaria ainda mais na sujeira e na doença.


Ao final da grande missão, Xõn-naɲe pousou no topo da montanha mais alta e, com voz firme como o trovão, falou:


— Irmãos, vocês foram corajosos. Enquanto houver urubus no céu, ainda há esperança de limpeza, de renascimento. Somos feios aos olhos dos homens, mas somos guardiões do equilíbrio.


E assim, os urubus voltaram a seus voos sagrados, silenciosos e atentos, esperando o dia em que os homens voltem a ouvir o sussurro da Terra.


Moral da fábula:

Mesmo os seres mais desprezados podem ser os grandes guardiões da vida. Quem cuida da Terra com coragem e união, mantém o mundo vivo.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 



TUCUNARÉ, A Fábula do Peixe Voraz






Era uma vez, nas águas sagradas do grande rio Opará, uma crise que deixou muitos peixes preocupados. O rio, que antes era farto de peixes "wãmyá", agora estava empobrecido. As barragens construídas pelos humanos haviam mudado o fluxo da vida.


Preocupados com a escassez, os homens trouxeram peixes de longe. Da África veio a Tilápia; do Sudeste Asiático, o Panga; da Amazônia, chegaram o Tambaqui e o temido Tucunaré — um peixe belo, mas de apetite feroz.


Logo, os peixinhos do Opará começaram a desaparecer. O Tucunaré, predador esperto e rápido, devorava sem piedade os alevinos e os pequenos nativos. Entre eles, uma piaba corajosa chamada Lambari viu o perigo e não ficou calada.


— Não podemos permitir isso! — exclamou Lambari.

Reuniu os peixes nativos e procurou o Camurupim, o mais velho e respeitado do rio, para contar o que estava acontecendo.


O Camurupim, sábio e justo, chamou o Tucunaré e falou:


— Forasteiro Tucunaré, entendemos sua natureza, mas aqui, no Opará, há regras. Você não pode devorar os filhotes de outros peixes. Se quiser viver entre nós, coma apenas o necessário e apenas os peixes adultos que sua dieta exige.


O Tucunaré ouviu e, envergonhado, concordou.


Assim, o Opará passou a acolher em harmonia os quatro forasteiros: o valente Tucunaré, o sereno Tambaqui, a ágil Tilápia e o calmo Panga. Aprenderam que cada rio tem suas leis, seu equilíbrio e suas vozes.


E a lição ficou gravada nas águas:


"Nem todo ecossistema é igual. Cada ambiente tem suas regras, e viver em harmonia é respeitá-las."




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 



🎣 O TUCUNARÉ NO OPARÁ

Em cordel por Nhenety Kariri-Xocó


No Opará, grande rio encantado,

Onde o peixe era abençoado,

Veio a crise, tristeza e lamento,

Por barragens sem sentimento.

O "wãmyá" sumiu da corrente,

O silêncio era quase pungente.


Com o peixe sumindo do chão,

Trouxeram de fora solução:

Tilápia da África chegou,

O Panga do Oriente aportou,

Da Amazônia vieram também

Dois forasteiros, como ninguém:


O Tambaqui e o Tucunaré,

Mas um deles causou maré...

O Tucunaré, peixe feroz,

Comeu sem medida e sem voz.

Peixinho pequeno engolia,

E os alevinos nem via!


A Lambari, piaba esperta,

Viu que a coisa não estava certa.

Reuniu os peixes do lugar

E foi ao velho Camurupim falar:

— O Tucunaré tá sem razão,

Devorando toda geração!


O Camurupim, com ar respeitável,

Chamou o forasteiro instável:

— Ouça bem, ó peixe voraz,

Se quiser viver em paz,

Coma só o que for necessário,

E adulto, no cardápio diário.


O Tucunaré ouviu calado,

E ficou bem envergonhado.

Prometeu mudar seu caminho

E não devorar mais filhotinho.


Desde então, no rio sagrado,

Cada peixe é respeitado.

Os quatro de fora ficaram,

E com os nativos se integraram.


Opará voltou a sorrir,

E os peixes puderam seguir.

A lição ficou pelo ar:

“Cada rio tem seu lugar.

Nem todo ambiente é igual,

Tem regra, tem ordem natural!”


🌊



Auto: Nhenety Kariri-Xocó 



EHE BUKÉ RETSÉ – A Fábula da Fuga do Veado na Floresta






Era tempo de calor intenso na floresta Retsé. O sol queimava alto no céu e faltavam poucas luas para a chuva chegar. Lá no alto da árvore sutu, o saguim de olhos ligeiros, chamado Ibozoim, deu um grito agudo:


— Buyê Retsé! Fogo na floresta!


Logo o alvoroço se espalhou. Todos os animais – os Kerí – correram como podiam: macaco, cutia, anta, quati, tatu… todos tentando escapar das labaredas que se aproximavam.


Mas entre os animais viviam dois que não tinham a mesma agilidade: o Bicho-Preguiça, chamado Hamo-Inhiconete, e o velho Jabuti Kaplan. Lentos por natureza, não conseguiriam fugir do fogo a tempo.


Foi então que o Veado, Buké – o mais veloz da mata – teve uma ideia. Correu até seu amigo Macaco Kukõj e pediu:


— Ajude-me, irmão! Coloque Hamo-Inhiconete e Kaplan sobre minhas costas. Vou levá-los para longe do fogo!


Kukõj, ágil como sempre, pegou a Preguiça e o Jabuti e os colocou com cuidado nas costas de Buké. E sem perder tempo, o veloz veado correu mata afora, saltando sobre raízes e troncos, até alcançar a margem do grande Rio Opará.


Ali, sãos e salvos, Buké deixou os dois amigos. Pouco depois, chegou Kukõj, ofegante mas feliz.


— Escapamos! Todos juntos, conseguimos! — exclamou.


Desde aquele dia, conta-se nas noites ao redor da fogueira que a verdadeira força da floresta está na união. Quando os mais rápidos ajudam os mais lentos, todos sobrevivem.


Moral da fábula:

Quem ajuda o outro, salva a si mesmo. A união é a força da vida.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





sábado, 26 de julho de 2025

WÃMYHÉ DOICLI, A Soberba da Traíra






Uma Fábula da Soberba da Traíra 


Antigamente, quando as águas do Rio Opará corriam livres e fartas, os peixes — chamados wãmyá — nadavam felizes, brincavam entre as pedras e se reproduziam no leito natural do rio, o antse.


Tudo era equilíbrio e harmonia.


Mas com o tempo, os homens chegaram com suas grandes construções de concreto e ferro. Levantaram barreiras que chamamos maecrótçawo — "cerca de pedra que corta o rio". As águas deixaram de correr livres e muitas lagoas começaram a secar. O sofrimento dos peixes foi grande.


Dentre todos, havia um peixe conhecido por sua mordida e arrogância: a Traíra, a quem chamamos Wãmyhé.


Quando os outros peixes reclamavam da falta de água, Wãmyhé zombava:

— “Ah, vocês são fracos! Isso é só uma poça! Eu vivo bem até na lama!”


Com sua boca cheia de dentes e orgulho, ria do sofrimento alheio.


Mas um tempo depois, a lagoa Dzurió, onde Wãmyhé morava, secou por completo. Sozinha e presa na lama, sem forças, a Traíra gritou por socorro.


Foi então que apareceu Sãmbá, o velho e sábio cágado.


— “Ora, Wãmyhé... onde está toda aquela força? Eu me lembro de você zombando dos outros peixes, chamando-os de fracos... E agora?”


Wãmyhé, envergonhada, baixou os olhos.


Apesar de tudo, Sãmbá, com seu coração bondoso, se penalizou. Cuidadosamente, retirou a Traíra da lama e a carregou de volta para o rio.


Ao sentir a água fresca novamente, Wãmyhé agradeceu:

— “Obrigado, Sãmbá. Se não fosse você, eu não teria sobrevivido.”


O cágado sorriu e respondeu com calma:

— “Por isso, Wãmyhé, nunca zombe da dor dos outros. O mundo gira, e um dia, você pode precisar de quem desprezou.”


Moral da história:

Quem se envaidece da própria força e zomba da fraqueza alheia pode um dia cair — e depender da compaixão de quem humilhou.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




YMOÁ E A MOÇA DE AREIA







Uma fábula dos tempos do Opará


Há muito tempo, quando as águas do Rio Opará ainda cantavam aos ouvidos de todos os seres, existia um menino chamado Ymoá, filho dos Kariri-Xocó. Ele amava brincar, nadar e pescar nos bancos de areia dourada que o povo chamava de Pykitci, as coroas do rio. Ali, as famílias se reuniam para tomar banho, sorrir e celebrar a vida que brotava da Mãe Terra.


Mas o tempo passou.

As pessoas foram se afastando do rio.

Trocaram o Opará pelas águas presas do banheiro encanado.

O Pykitci ficou vazio. O rio, esquecido.


Um dia, a saudade apertou no peito de uma família indígena.

Pai, mãe e filhos subiram numa ubá, uma canoa leve como folha, e remaram até o antigo Pykitci.

Lá, mergulharam nas águas doces e brincaram como nos tempos antigos.


Enquanto a família se alegrava, Ymoá, o menino curioso, começou a moldar a areia com suas mãos.

Fez dela o contorno de uma moça.

A escultura ficou tão perfeita que parecia viva.

O menino olhou e disse:

— Essa imagem parece que respira... Qual seria o nome dela?


Então, para sua surpresa, a escultura abriu os olhos.

Sorriu.

E falou com voz de vento suave:

— Me chamo Tibuadda, sou a Moça da Areia, filha da Mãe Terra, Raddadé.

Que alegria ver vocês aqui! O Opará está feliz outra vez.


Ymoá sentou-se ao lado dela, e os dois conversaram por longas horas.

A Moça da Areia contou segredos do rio, das estrelas, dos peixes e das árvores.

Disse que o Opará sente tristeza quando é esquecido.

Mas renasce de alegria quando os povos retornam.


Ao entardecer, a família voltou para a Aldeia Natiá, levando no coração a lembrança daquele dia mágico.

E Ymoá nunca mais esqueceu o que aprendeu:


"A natureza é um templo vivo.

Deve ser respeitada, não sujada.

Quem cuida da Mãe Terra, recebe saúde, alegria e sabedoria."


Moral da fábula:

🌿 Quem abandona a natureza, esquece parte de si mesmo.

Mas quem retorna a ela, reencontra a alegria e a ancestralidade. 🌿




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




TIBUDINA E AS AVES VIAJANTES






Uma Fábula da Moça e as Aves Viajantes 


Num final de tarde, nas margens sagradas do Rio Opará, a jovem Tibudina, uma moça sábia do povo Kariri, sentou-se em silêncio, ouvindo o sussurro do vento e observando o céu que começava a se tingir de ouro.


De repente, um som de asas suaves preencheu o ar. Eram as arribaçãs — Ieende-idabá, os "pássaros que chegam a um lugar".


Tibudina se levantou e perguntou à líder do bando:


— De onde vêm vocês?


A líder, com o peito estufado e brilho nos olhos, respondeu:


— Viemos do sertão, onde o sol castiga e os espinhos florescem.


Logo em seguida, cortando o céu em danças elegantes, vieram as andorinhas — Ieende-crú-uná, as aves de cauda repartida.


Tibudina sorriu e perguntou:


— E vocês, de onde vêm voando tão ligeiras?


Elas responderam:


— Viemos das terras geladas do Norte, fugindo do frio e buscando o calor de Opará.


Mal acabaram de falar, chegaram os ágeis maçaricos — Ieende-wõ-kempé-bü, os "pássaros-perna-fina-corredores".


Curiosa, a moça indagou:


— Também estão chegando agora? Qual o caminho de vocês?


A líder respondeu:


— Viemos das terras frias e nebulosas. Viajamos muito até encontrar esse lugar de fartura.


Por fim, cortando o ar com majestade, apareceu o gavião — Ieende-sitó, a ave caçadora. Mas dessa vez quem falou foi a andorinha:


— E você, senhor dos céus, de onde vem?


O gavião respondeu com voz grave:


— Venho do Sul, voando sobre as ondas do mar e seguindo o vento.


Tibudina então ergueu os braços ao céu e disse:


— Chamarei todos vocês de Ieende Itohikiete, "As Aves Viajantes". Mesmo sabendo que há muitas outras que também cruzam os céus para cá, é por respeito que darei esse nome.


Ela se pôs de pé e disse em voz firme:


— Avisarei meu povo que, quando vocês chegarem, não devem ser caçadas. Vocês precisam se alimentar e se reproduzir. Só assim a vida se renova.


Desde então, sempre que as aves viajantes chegam ao Opará, todos lembram do ensinamento de Tibudina.


🌱 Moral da Fábula:


A sabedoria respeita o ciclo da vida. Proteger quem viaja para viver é honrar a Terra que nos sustenta.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




sexta-feira, 25 de julho de 2025

KERUÁ AINDHÊ RETSÉ, A Fábula dos Animais que Plantaram a Floresta






Numa época em que a floresta ainda se vestia de silêncio e sonho, os Keruá, os animais da mata, reuniram-se com uma missão invisível aos olhos dos humanos: plantar o verde do mundo.


Gongá, o sabiá cantor, pousou num galho e, entre um canto e outro, avistou Kukryt, a anta jardineira, saboreando frutas maduras perto do rio.

— Olá, dona Anta! — disse o sabiá com alegria — O que comes por aí, tão feliz?


A anta olhou com olhos serenos e respondeu:

— Frutas doces, irmão sabiá. Mas o mais importante é o que deixo depois: as sementes que irão brotar em novas árvores.


Gongá sorriu, balançando as penas:

— Ah, então és também jardineira da floresta! Eu, que voo e canto, também como frutas. Talvez eu também seja semeador...


Nesse momento, chegou Kukên, a esperta cutia, com um fruto de Sapucaia, chamado Prõti.

— Olá, companheiros! — disse ela — Vim enterrar as sementes que não comi. Algumas dormem debaixo da terra até acordarem com as chuvas.


Kukryt e Gongá se entreolharam.

— Então todos nós somos plantadores?


— Sim, irmãos — disse Kukên — Cada um cuida de uma parte: uns espalham voando, outros enterram, outros deixam cair pelo caminho. A floresta cresce com nossos passos, voos e mastigadas.


Naquela roda viva de saber, os animais entenderam que a floresta só é floresta porque eles existem. São os jardineiros invisíveis, os semeadores silenciosos, os verdadeiros guardadores do verde.


Por isso, proteger os animais é proteger a própria floresta. Cuidar da mata é dar segurança às nascentes dos rios e a todos os seres que nela vivem.


E assim, a cada lua nova, novos frutos nasciam, e com eles, novas sementes, novos brotos, novas vidas.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




IEENDE-IRÓ-KENDÉ, O Pássaro Preto Avisador






Uma Fábula do Pássaro Anũ


Era uma vez, na floresta chamada Retsé, um lugar sagrado onde tudo tinha espírito e som, onde os animais — os Keruá — viviam atentos ao menor estalo, ao mais leve cheiro e ao sussurro do vento.


Entre tantos seres da mata, havia uma ave especial, negra como o céu antes do trovão: o Ieende-Iró-Kendé, o pássaro-preto-avisador, que todos chamavam apenas de Anũ. Ele não era o mais forte, nem o mais veloz. Mas tinha algo que o tornava valioso: seu grito de alerta.


Sempre que um predador rondava, tentando capturar os mais frágeis, o Anũ subia ao topo das árvores e soltava um canto sofrido, quase chorado, como se dissesse:

— "Ein-hé... o perigo está vindo!"


Esse aviso ecoava pelos galhos, pelos campos Merá, pelas margens das águas Dzu, e todos os animais corriam para se esconder. Não importava se era tatu, cutia, veado ou passarinho: todos confiavam no Anũ.


Por isso, os animais começaram a viver mais próximos dele. Onde o Anũ pousava, ali era lugar seguro. Ele se tornara o guardião invisível da floresta, o olho que vê antes, o ouvido que escuta longe.


Diziam os mais velhos que também existia o Anũ-branco, que fazia o mesmo grito de alarme. Ambos, preto e branco, carregavam a missão de proteger os que não sabiam lutar.


Assim, todos na floresta aprenderam uma lição valiosa:

A força nem sempre está nas garras ou nos dentes. Às vezes, ela vive no aviso, na união e na escuta.


E quem ouve o pássaro avisador, vive mais um dia.


Moral da fábula:

Na floresta da vida, quem escuta os avisos e anda com os sábios, escapa dos perigos mais sombrios.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




IEENDE-KU-HOMOECHI BAE NA DOYÉ A Garça e a Capivara






A Fábula da Garça e a Capivara 


Nas margens sagradas do rio Opará, junto às várzeas alagadas de Itiúba, onde o céu beija a terra e os ventos sopram os cantos dos antigos, viviam muitos seres: aves chamadas ieendeá, animais chamados keruá, e peixes chamados wãmyá.

Entre todos esses seres, dois tornaram-se conhecidos por sua amizade: Ieende-ku-homoechi, a Garça-branca-de-pescoço-comprido, e Doyé, a Capivara serena das águas.


Certo dia, enquanto o sol dourava o espelho do rio, a garça pousou perto da capivara, que descansava entre os capins molhados.


— Olá, amiga Doyé, grasnou a garça com gentileza. Precisas de alguma coisa?


A capivara levantou a cabeça com gratidão no olhar e respondeu:


— Sim, dona garça. Os carrapatos estão a me incomodar. Não alcanço todos com meus dentes.


A garça, com seu bico longo e preciso, começou a retirar os carrapatos do dorso da capivara. Um a um, bicava e comia, enquanto a capivara suspirava aliviada.


Desde aquele dia, todos os animais da várzea viam a garça e a capivara sempre juntas. Uma ajudava a outra. A garça alimentava-se com os parasitas, e a capivara mantinha-se limpa e saudável. Era uma parceria de sabedoria e respeito.


E assim a floresta aprendeu:


“Na natureza, ninguém caminha sozinho. A amizade verdadeira nasce da ajuda mútua e do equilíbrio com o outro.”



📜 Autor: Nhenety Kariri-Xocó



quinta-feira, 24 de julho de 2025

SITÉ KERUÁ, A Fábula dos Animais Domésticos






A Fábula Encontro dos Animais Domésticos e Silvestres 


Há muito tempo, quando o sol ainda acordava devagar sobre o Rio Opará, os ventos sopraram uma mudança. Vieram navegando os "caraí", homens de além-mar, trazendo em suas canoas sementes brilhantes que diziam crescer alto como a esperança. Mas o que mais espantou os povos da mata não foram as sementes, foram os estranhos seres que os acompanhavam — animais que não conheciam as florestas, os campos ou os rios.


Eram os Keruá Sité, “os animais que vieram”:

– o Curé, porco de focinho inquieto;

– o Tute, pombo de asas macias;

– a Erintuca, ovelha de lã fofa;

– o Poió, gato de olhos de lua;

– o Igaborou, cavalo que dançava com o vento;

– o Sabucá, galo que cantava para o sol;

– o Bucuté, cachorro de faro esperto;

– a Pobifi, cabra que saltava rochas;

– e o Kradzo, boi de força silenciosa.


Esses keruá não corriam livres como os Keruá Retsé, os animais da floresta. Viviam presos em cercas, amarrados por cordas, vigiados pelos caraí.


Os Keruá Retsé:


Um dia, antes mesmo da aurora abrir os olhos, o Sabucá cantou alto, rasgando o silêncio da mata. Todos os animais silvestres estremeceram. O Pãn Cracú, a arara-azul mensageira do céu, voou até o canto e encontrou os novos animais. Curiosa e sem medo, pousou diante do galo:


— Quem és tu que canta para o sol antes mesmo dele nascer? — perguntou a arara.


O Sabucá respondeu, batendo as asas:


— Sou o arauto do dia. Trago comigo o tempo novo.


Intrigada, a arara chamou os outros animais da floresta: o veado, o macaco, a anta e o tamanduá. Foram todos ver os visitantes. E, para surpresa de todos, não houve briga nem temor. Houve silêncio. Depois, um gesto simples: o Bucuté abanou o rabo, o Poió ronronou, e o Igaborou baixou a cabeça em respeito.


Os Keruá Retsé:


- Arara-azul ( Pãn-cracú );

- Veado ( Buké );

- Tamandoá  ( Hazú );

- Raposa ( Chorecá );

- Urubu ( Xõn );

- Coati ( Bizaui );

- Camaleão ( Granharó );

- Anta ( Kukryt );

- Gambá ( Kerícohé ).


Desde aquele dia, os animais da casa e os animais da mata aprenderam a viver lado a lado. Keruá Sité e Keruá Retsé, diferentes, mas agora irmãos da mesma terra.


Vivem assim até hoje, ensinando aos humanos que é possível compartilhar o chão sagrado da vida — mesmo vindo de mundos distintos.


Moral da fábula:

Quando o respeito é o primeiro canto do dia, até os que vêm de longe encontram lugar no coração da terra.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




UTUÁ SITÉ DINHI, A Fábula das Frutas que Vieram de Longe






A Fábula das Frutas 


Há muito tempo, no coração da floresta Retséá, os Uanieá — os verdadeiros filhos da terra — viviam em harmonia com os hamo, kerí, pipire, kukõj e as pequenas kati que zumbiam entre as flores nativas.


Certo dia, vieram de longe os Carai, os brancos, navegando pelo grande rio Opará. Trouxeram suas ferramentas afiadas e, com elas, cortaram as árvores sagradas da mata. Nas terras Radda dos povos originários Kariri e de seus parentes Etçamyá, os Carai plantaram novas sementes, desconhecidas dos animais e da floresta. Chamavam-se Utuá Sité Dinhi, "as frutas que vieram de fora". São elas: maçã, uva, jaca, manga, laranja, café, cana, além de legumes e verduras.


Essas frutas eram vistosas, coloridas, diferentes. Mas os bichos da mata desconfiaram. “Não têm o cheiro da mata”, diziam as kati. “Não crescem como as nossas”, gritavam os pipire. Os kukõj, desconfiados, apenas observavam. Ninguém se atrevia a provar.


Um Krêre, papagaio falador e curioso, foi capturado pelos Carai e levado para viver entre eles. Viu como os brancos cuidavam das frutas novas e como as comiam com gosto. O tempo passou, as estações giraram, e um dia o Krêre escapou e voltou à Retséá.


Logo os animais o cercaram:


— Krêre, tu que esteve com os Carai, nos diga: essas frutas novas são veneno ou alimento? — perguntou o velho Kukõj.


O papagaio pousou num galho alto e respondeu:


— As frutas são doces, algumas têm sabor nunca visto! Mas atenção, irmãos! Nem tudo o que brilha é bom para todos. Cada bicho deve experimentar com sabedoria. O que faz bem ao Carai pode ser ruim para o Kerí. Observem, provem com calma, descubram quais frutas combinam com sua natureza.


— E se gostarmos, poderemos comer sempre? — quis saber a abelha Kati.


— Sim, mas com moderação, pois até o doce em excesso vira amargor — respondeu o sábio Krêre, batendo as asas.


E assim, com o tempo, os animais aprenderam a conhecer as frutas novas. Uns as adotaram com alegria, outros as deixaram para lá. E a floresta seguiu viva, entre sabores antigos e frutos vindos de longe.


Moral da fábula:

Nem tudo que é novo é ruim, nem tudo que é belo é bom. A sabedoria está em conhecer, escolher e respeitar os limites do próprio ser.





Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




SAMY RADDA, A Fábula de Aynã e a Memória da Terra







A Fábula Aynã e a Memória da Terra


Há muito tempo, na aldeia chamada Natiá, viviam crianças que corriam livres pelos caminhos, anciões que contavam histórias à sombra dos cajueiros, e mulheres e homens que plantavam, caçavam, festejavam e moldavam com as mãos o que precisavam: objetos de barro, madeira, ossos e penas. Tudo era vida. Tudo tinha espírito.


Quando um objeto se quebrava, não era jogado fora. Era entregue de volta à Terra, chamada Radda, para que ela guardasse em sua memória, a Samy, como quem confia um segredo ao coração de uma avó. Assim como os corpos das pessoas que partiam eram colocados nas igaçabas, urnas que dormiam no ventre da Terra.


Um dia, a menina Aynã, curiosa e sábia para a sua idade, caminhou até o monte sagrado Boêdo, que os antigos chamavam de Echi Aiby Wathõ, o Alto do Bode. Ao colocar os pés naquela terra, ouviu um som suave, como um eco antigo:

— Toklikli... Menina, o que fazes na Terra Sagrada?


Era a voz da própria Mãe Terra, Raddadé, que falava através do solo e das pedras.


Aynã, com respeito e coragem, respondeu:

— Mãe Raddadé, vim buscar um pouco de tua argila para fazer cerâmica com minhas mãos pequenas.


A voz da Terra então soprou como o vento:

— Cuidado, menina, pois aqui dormem objetos dos teus antepassados. Eles são a memória dos tempos antigos. Cada pote, cada brinquedo, cada panela carrega uma história.


Aynã, então, com seu dehebá, um cavador simples feito de madeira, começou a retirar a argila. E entre as camadas da terra, encontrou pedaços de runhú (panelas de barro), ruño (potes), benhekié (brinquedos) e outras maravilhas que a Terra havia guardado por gerações.


Com carinho, a menina olhou, sorriu, e recolocou cada peça no mesmo lugar, como se devolvesse um segredo ao silêncio.


Ao final, agradeceu:

— Obrigada, Mãe Raddadé, por me dar tua argila e tua memória.


E desde esse dia, todas as crianças da aldeia aprenderam que cada grão de barro é uma história, e que a Terra fala — se soubermos escutá-la.


Moral da Fábula:


A Terra não é apenas chão, é também livro antigo que guarda a memória de quem veio antes. Respeitar a Terra é respeitar a história do nosso povo.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




VERSÃO EM CORDEL: SAMY RADDA, A Fábula de Aynã e a Memória da Terra



Na aldeia Natiá se vivia

Com fartura, alegria e saber,

Gente sábia plantando o futuro,

Gente antiga ensinando a viver.

Tudo ali tinha alma e memória,

Cada festa, brinquedo e história

Era o tempo querendo crescer.



O que era de barro ou madeira,

De osso, de pena ou raiz,

Servia pra caça, pra canto,

Pra curar ou pra ser mais feliz.

E se algo quebrava no uso,

Não se via como um recluso,

Mas voltava à Terra, em bom condiz.



Enterravam-se os velhos objetos,

Como gente que volta ao sertão,

Pois a Terra, chamada Radda,

Guardava em si cada porção.

Era a Samy, sua grande memória,

O baú sagrado da história,

Do tempo e da tradição.



Certa vez, a menina Aynã,

Com os pés descalços no chão,

Foi subindo o monte sagrado,

Chamado de Boêdo em união.

Também diziam “Alto do Bode”,

Onde ecoa saber que explode

Do seio da Mãe Criação.



E eis que a Terra falou: Toklikli,

Com voz forte, mas sem agressão:

“Menina, o que vens fazer

Nos domínios da consagração?”

Aynã respondeu com respeito:

“Vim buscar um barro perfeito

Pra moldar com devoção.”



A Mãe Terra então lhe advertiu:

“Cuidado, pequena irmã,

Pois aqui estão guardadas lembranças

Dos que vieram antes de Aynã.

Cada pote, panela ou brinquedo

É memória viva sem segredo,

Dormindo em meu divã.”



Com o dehebá, seu cavador,

A menina com doçura agiu.

Achou runhú, panela ancestral,

Ruño e brinquedo infantil.

Mas com todo o amor, devolveu,

Na terra sagrada os recolheu,

Como quem ao tempo sorriu.



E agradeceu à Mãe Raddadé:

“Teu barro me inspira a criar.

Teus segredos eu guardei com zelo,

Tua voz eu pude escutar.”

E voltou à aldeia dançando,

Com a alma leve, cantando,

E o barro pronto pra modelar.



Desde então, se conta entre os velhos:

A Terra tem língua e saber,

Quem cava por barro ou lembrança

Precisa primeiro entender:

A argila é mais que matéria,

É raiz, é canto, é matéria

Da vida que segue a crescer.


⭐ Moral do Cordel:


Quem escuta a voz da Mãe Terra

Não cava só pra fazer panela,

Cava fundo a alma do povo,

E aprende a cuidar dela!




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




quarta-feira, 23 de julho de 2025

PRÕTI ENEVI, A Sapucaia e o Menino da Esperança






A Fábula da Velha Sapucaia e o Menino da Esperança


Há muito tempo, nas margens do sagrado rio Opará, existia uma floresta imensa chamada Retsé, guardiã dos cantos e espíritos do povo Kariri. No coração da floresta vivia uma árvore imponente e sábia: Prõti, a Sapucaia. O Enewi ou Enevi significa "Viver solitário" e Prõti "Sapucaia" na língua desse povo originário. 

Mas um dia, chegaram os Karai, os homens brancos, que transformaram a aldeia Natiá numa cidade de pedra e ruído, chamada Natiacró. Com suas ferramentas de corte e pressa, derrubaram quase todas as árvores. O campo Merá ficou vazio. Somente Prõti permaneceu de pé, testemunha solitária do que fora a floresta.


Anos se passaram, e um menino de olhos atentos e espírito ancestral chamado Ybaná caminhava pelo campo seco, quando viu a grande árvore sozinha. Encantado, aproximou-se dela.


— Por que me olhas com tanta atenção, Ybaná? — perguntou Prõti, com sua voz rouca de tempo e vento.


— Porque és grande, forte… e tão solitária, Prõti — respondeu o menino.


A velha árvore suspirou com tristeza e contou sua história:

— Um dia, eu tinha muitas irmãs. Brincávamos com o vento, dançávamos com a chuva. Mas os Karai cortaram tudo. Só eu fiquei. Desde então, vivo em silêncio, esperando o fim.


Ybaná olhou para o chão, pensou, e então disse com coragem:


— Não chores mais, Prõti. Vou levar tuas sementes e replantar a floresta. Tu não estarás mais sozinha.


O tempo passou. As sementes lançadas por Ybaná cresceram. Primeiro tímidas, depois firmes. Quando o menino virou homem, o campo Merá já era novamente verde, e o Retsé renascia. Pássaros voltaram, o vento brincava de novo nas folhas.


E a velha Prõti, agora cercada por suas filhas e netas, sorriu pela primeira vez em muitos anos.


🌱 Moral da fábula:


Mesmo a última árvore pode ser o começo de uma nova floresta. Quem planta esperança colhe vida.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 



YARA TOKLIKLI WÃMYÁ HAMOÁ, A Mãe D'água Fala Com Peixes e Bichos








A Fábula da Mãe D’água que Falava com Peixes e os Bichos



(Versão infantil)


Lá no fundo do rio grande chamado Opará, onde a água é clara e cheia de segredos, mora um encanto muito especial: Yara Toklikli, a Mãe D’água.


Ela vive no perau, um lugar bem profundo no rio, que parece esconder um mundo mágico só dela.


Mas Yara não está sozinha.


Ela fala com os peixes e com os bichos usando uma língua antiga que só quem vive no rio entende. Quando ela diz “toklikli”, todos os animais param para escutar!


Yara cuida de tudo e ensina cada bichinho a viver em paz e ajudar o rio:


🌟 Camurupim, o peixe forte e valente, é o guardião da justiça. Ele ajuda os peixes pequenos e vigia para que ninguém brigue à toa.


🌟 Piranha, a peixinha de dentes afiados, ajuda a manter a ordem. Quando o rio fica muito cheio de peixes, ela aparece para lembrar que é preciso equilíbrio.


🌟 Curimã, o peixe travesso, adora brincar! Ele faz cócegas nas plantas do fundo do rio e diverte todos com suas danças saltitantes.


🌟 Surubim, o peixe pintadinho, é o limpador do rio. Ele come os restinhos deixados pelos outros peixes e deixa tudo limpinho.


Mas Yara não fala só com peixes!


🐢 Com o sãmbá, o cágado devagarzinho, ela ensina a ter paciência.


🦦 Com a klimi, a lontra brincalhona, ela conta histórias antigas para que o passado nunca seja esquecido.


🐊 Com o mé, o jacaré de olhos espertos, ela fala sobre cuidar do rio e só usar sua força quando for preciso.


🦫 E com a doyé, a capivara tranquila, Yara ensina a viver entre a água e a terra, com equilíbrio no coração.


Desde então, cada bicho do rio tem uma missão, e todos ajudam a manter o Opará feliz e em harmonia.


Dizem que, se a gente ficar bem quietinho perto da beira do rio e escutar com atenção... pode ouvir a voz da Mãe D’água dizendo “toklikli”, chamando seus amiguinhos para conversar.


💡 Moral da história:


Todos os seres são importantes! Cada um tem um dom especial que ajuda o mundo a ser melhor.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó